quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Aprender a amar a estranheza

Foi justamente assim que aprendemos a amar todas as coisas que agora amamos. Afinal sempre somos recompensados pela nossa boa vontade, nossa paciência, equidade, ternura para com o que é estranho, na medida em que a estranheza tira levemente o véu e se apresenta com uma nova e indizível beleza: é a sua gratidão pela nossa hospitalidade. Também quem ama a si mesmo aprendeu-o por esse caminho: não há outro caminho. Também o amor há que ser aprendido. 

in A Gaia Ciência - Friedrich Nietzsche

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

A reforma de Soderbergh

Bacon fumado

Na semana em que se descobriu que não se deve fumar bacon, decidi contribuir com um cigarro para a sopa. Como isto não faz grande sentido mais vale ler.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

domingo, 25 de outubro de 2015

Crimson Peak: do barro à argila


Guillermo del Toro é um homem engenhoso. Não apenas como cineasta construtor de mundos fantásticos e personagens dantescas com rabinhos e unhas crescidas, mas também pela forma como evita esses outros monstros chamados circunstancialismos de produção. Neste Crimson Peak o verdadeiro fantasma real é Ghost de Jerry Zucker, mais concretamente na ameaça de certas cenas do romance entre Tom Hiddleston e Mia Wasikowska terem o dever de rever os sustos do filme com uma mãozinha no ombro da menina no cinema. Entre o susto e o beijinho, a produção de Crimson não desdenha um lento resvalar da argila sanguínea ao barro meloso de Demi Moore e Patrick Swayze. É precisamente nessa linha de impedimento, para uma coisa não descambar na outra, que del Toro trabalha, com a inteligência de pôr os meios materiais ao serviço da sua vivacidade criativa. Aqui é a recriação do gótico em todo o seu esplendor: nos candelabros, na casa da colina vermelha como ninho mais vivo e excitante que as próprias personagens, no belo e longo cabelo de Mia, nos soprares arrepiantes e existencialistas dos fantasmas como reflexos dos traumas interiores. Mesmo nos cãezinhos capazes de distinguir muito bem o que é de cada mundo.

Nessa recriação reconheço a mão firme, fico agastado com dois terços do filme com um esquema narrativo chato e previsível e, por fim, a ideia recorrente do gótico: os fantasmas existem mesmo. Entre Barba Azul e Rebecca, Del Toro adianta a hipótese de o cinema, fantasmático por natureza, se pôr a explicar a "carne" das assombrações" como daltonismo num filme cheio de vermelho e branco, de um fantasma como alguém preso a um passado que desmaterializa o seu corpo para ficar lá atrás no que já viveu mas não conseguiu processar.

sábado, 24 de outubro de 2015

Virtude fácil, imagens imediatas

Plano subjectivo de Easy Virtue visto através do monóculo de um juiz.

No adágio do "nem tudo é o que parece", Alfred Hitchcock tinha utilizado o teatro como uma "imagem" duplificada da vida real, com revelação pelo zoom out ou pelo establishing shot à posteriori do plano aproximado. Lembro por exemplo, a cena em Downhill em que vemos Novello vestido com um smoking e só depois percebemos que ele está a encarnar o papel de um criado de mesa numa peça de teatro. Aparte a circularidade sem saída que culpa uma sociedade puritana pela forma como vê a questão do adultério e da virtude feminina, a peça de Noel Coward, e sobretudo o filme que a adapta, Easy Virtue, não faz outra coisa senão trabalhar sobre essa relação entre o que parece e o que é. 

Larita Filton é a wrong woman. Falsa culpada e condenada por adultério devido a uma proximidade a um pintor que, apaixonado por ela e não a podendo ter, se suicida, deixando-lhe uma soma considerável. O divórcio com o marido consuma-se em tribunal, mas, faça ela o que fizer, a "letra escarlate" da virtude fácil ameaça persegui-la como uma maldição. Hitchcock percebeu que ao contar a história de uma personagem que é uma coisa mas que parece outra, que possuía uma imagem exterior e societária diversa, podia/devia transfigurar isso numa co-relação visual. Não é por acaso que o pintor que pinta o retrato de Isabel Jeans se apaixona por ela. E, ao contrário, a sociedade apenas a veja com filtros ópticos - o monóculo do juiz num célebre e ousado POV para a época, mas também as máquinas fotográficas que disparam objectivamente sobre ela -, e que, por isso, por essa imagem precisamente mediada, sempre enxergue apenas um simulacro de quem ela verdadeiramente é. 

Hitchcock dizia em jeito de brincadeira que um dos piores intertítulos que jamais escrevera foi o do final do filme. Quando Jean, num segundo processo de divórcio, sai desoladíssima para a rua diz aos fotógrafos, que queriam novamente tirar-lhe o retrato para continuarem o seu escândalo nas capas de jornal: Shoot. There's nothing left to kill. Sendo piroso é certo, o que esta última tirada mostra é que Easy Virtue também reconhece, ainda que implicitamente, que a carne e osso, "atacada" pela imagem mecânica perdia precisamente o seu espaço de ambiguidade, a sua razão de ser, e fabricava uma realidade alternativa, apagando a mulher inicial e real. Esse apagamento da ambiguidade também Hitchcock o sente com a própria câmara e por isso faz durar muitas das cenas do filme além da acção decisiva, como que gritando pelo som e pela palavra, para construir uma maior complexidade às suas personagens. Complexidade puxada até ao seu limite quando por exemplo Larita é uma mulher de risos e cigarros intermináveis e a mulher que devia ter casado com John Whittaker (o segundo homem com quem casa e que também a rejeita) é o expoente da serenidade e da "verdadeira" virtude.

Hitch quis esconder o verdadeiro da sua câmara, atrás de uma direcção de actores à primeira vista enganadora pois ele sabe que, enquanto souber gerir a verdade, tem os espectadores presos pela fetichista trela do suspense e da revelação.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Subir no chão e descer para subir


Downhill - Alfred Hitchcock

Tinha escrito que The Lodger opunha os triângulos, geométricos e amorosos, a uma certa noção de circularidade que acabava por ser quase fatal, expressa nas algemas que crucificavam Novello no desfecho do filme. Na obra seguinte, Downhill, à partida essa oposição é substituída por uma outra: a altitude como metáfora de um certo darwinismo social. Roddy Berwick (mais uma vez Novello) que se encontra no "topo" (um dos estudantes proeminentes e estrela de rubgby de uma escola prestigiada) tem de descer as escadas rolantes da sociedade (famoso plano metafórico do filme) e adquirir estofo emocional entre os pobres e desemparados (famoso e racista intertítulo do filme - Downhill - till what was left of him was thrown to the rats of a Marseilles dock-side - seguido de uma cena onde os negros também simbolizam o baixo) para poder subir novamente. 

Esta descida faz-se à custa de uma posição heroica de assunção de culpas por uma gravidez extemporânea da qual não é responsável. Mas como sempre em Hitchcock as aparências iludem mais do que desiludem. Isso torna-se claro pelo facto de um filme sobre a altitude social ser afinal "engavetado" uma vez mais numa ideia de circularidade. Roddy termina o filme a chegar a casa novamente, com o mesmo plano dele a aguardar a reacção do pai, numa cadeira em casa, de costas voltadas para os progenitores e de frente para nós. A cadeira como refúgio e expectativa da reacção dos pais, da sociedade à qual nunca deixou de facto de pertencer. E a circularidade completa-se com planos semelhantes do mesmo jogo de rugby e mais particularmente com Roddy no chão a segurar uma bola. Ao contrário da circularidade do seu filme seguinte Easy Virtue - na qual a protagonista parece estar presa numa eterna falsa culpa julgada em tribunal, no qual, faça o que fizer, será para sempre a mulher de virtude fácil -, em Downhill a circularidade é dialéctica. Ela corresponde, como o mostra o título da sequência de rugby inicial, os ups and downs do "mundo da juventude". Mais curioso ainda é que estes planos de Roddy lá em baixo, prostrado no chão com a bola de rugby nas mãos são os planos de um baixa altitude que dão a ver inversamente uma altitude elevada. No início do filme porque ele é acarinhado pelos espectadores como o herói do jogo e, no final, porque esta queda no chão é uma queda conquistada, um falso baixo, adquirido à custa de uma espiral descendente que significa crescimento e maturidade e a ideia de que a defesa de princípios de virtude difícil (não easy virtue) implica uma ilusória descida. 

Ilusão também histórica porque Downhill é a adaptação de uma peça escrita pelo próprio actor Ivor Novello (sob o pseudónimo David L'Estrange) que forja uma história de vitimização heróica descendente, quando na verdade o que queria era o que todos querem: colocar-se no alto.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Mousse com mel

Joseph Gordon Levitt, o actor que parece digital mesmo em carne e osso.
Assim de memória acho que a única vez que Zemeckis acordou mal humorado na vida foi quando vez Flight com Denzel Washington (lá mais para o fim do filme lá voltava a ganhar as matizes de um sorriso pós-ressaca) e, admito discussão aqui, quando pôs Harrison Ford e Michelle Pfeiffer com medinho de fantasmas em What Lies Beneath. De resto tem alternado a sua filmografia entre docinhos cinéfilos um tanto mais subtis para os espectadores, digamos, "maduros", e bombas de glicose animada para os mais irrequietos.

The Walk, em modo Amélie Poulain, é a oportunidade para Zemeckis continuar a filmar altitudes, com a sua câmara brinquedo a fazer malabarismos e a pensar que a altitude pode ser um dos espectáculos do 3D. Mas tudo à volta do espectáculo é perfeitamente flat, sem vertigem, num tricotar óbvio de suspiros e simbolismos baratos - o sentimento de ver outra vez as antigas torres gémeas, os franceses em modo franciú, as piadas engraçadinhas. Quando a história do funâmbulo Philippe Petit começa com um título que diz algo como "... This is a True Story" os três pontinhos antes denunciam que o parti pris do espectador deve ser o embevecimento. Como se Zemekis nos desse uma deliciosa mousse e a encharcasse de mel, deixando clara a diferença entre cinema leve e familiar e um ultra romantismo anacrónico e francamente incomodativo. Ao pé de The Walk, Forrest Gump é um filme sóbrio. 

terça-feira, 20 de outubro de 2015

The Lodger: uma geometria dos afectos

"The Lodger: a Story of the London Fog" de Alfred Hitchcock

Se existisse um raccord entre The Pleasure Garden The Lodger: a Story of the London Fog ele poderia ser o da madeixa loura de uma bailarina de cabaret e de uma modelo. No primeiro filme ela nem era loura, no segundo era mesmo e foi o génio de Hitchcock quem fez questão que as madeixas douradas de Daisy fossem um motivo de obsessão do vingador estripador. O assassino gostava de louras, não porque estivesse na peça original mas porque Hitchcock relacionava o alvo ao perverso e a mulher do norte da Europa aos píncaros do êxtase masculino. Mas isso talvez até passe despercebido porque a cor e o louro aqui são factos menores em comparação com a forma circular dos belos caracóis da rapariga. Conflito de geometrias? The Lodger é um filme sobre a transmutação dos afectos numa espécie de geometria das formas. O símbolo do vingador é um "afiado" triângulo, assim como é triangular a relação entre Daisy, o polícia Joe e the lodger. Essa relação triangular é contrastada pela circularidade da obsessão (no seu filme seguinte, Downhill é a vez do rodar do disco na cabeça do protagonista, girando todas as figuras da sua obsessão quando Roddy está doente), movida pelos caracóis do cabelo de Daisy (To-night Golden Curls é o inter título hipnótico do cabaret e do isco do vingador) ou "desfeita" pelas  algemas de Joe ou pelo anel que este quer oferecer à sua noiva. O circular é essa capacidade de prender um dos lados do triângulo, de o assegurar só para si, eliminando, como em The Pleasure Garden, que se passe de um vértice a outro do triângulo num esquema de traição.

Depois diga-se que The Lodger é um filme sobre a anatomia dos corpos que se tocam: o prazer pecaminoso da proximidade dos planos nos abraços e beijos de Ivor Novello e June a dizerem-nos que a carne ora pode ser tocada, ora pode ser cortada e que esse "suspense" é a mecânica do eros e do thanatos

Tinha falado de génio para qualificar Hitchcock mas não era um adjectivo vazio. Era por isto: Novello não podia ser o mau da feita, era o menino bonito das adolescentes britânicas e tinha de ser o herói. Em vez de manter-se firme na sua opção, Hitchcock não foi de modas: não só esculpiu da necessidade o que viria a ser um dos seus temas habituais, o do falso homem culpado (ao qual aqui lhe subjaz uma certa "pedagogia do olhar" e a aprendizagem de que "as aparências iludem") como lhe deu uma chapadinha subtil. Queres ser o herói, pois serás o maior dos heróis. O Cristo cruxificado, imagem forte no final de The Lodger, com Novello a ser salvo de um linchamento e de uma multidão em fúria no último minuto. Preso pelas mãos, com as algemas encaixadas na grade de um jardim como um cristo numa cruz de madeira. Se isto não é fazer das fraquezas forças, eu não sei o que é...

domingo, 18 de outubro de 2015

O odor da saliva

But that was forty years behind him. Now the train was ribbed for speed, a segmented tube of brilliant steel. There were no pears, no Willie, no Shura, no Helen, no Mother. Leaving the cab, he thought how his mother would moisten her handkerchief at her mouth and rub his face clean. He had no business to recall this, he knew, and turned toward the Grand Central in his straw hat. He was of the mature generation now, and life was his to do something with, if he could. But he had not forgotten the odor of his mother's saliva on the handkerchief that summer morning in the squat hollow Canadian station, the black iron and the sublime brass. All children have cheeks and all mothers spittle to wipe them tenderly. These things either matter or they do not matter. It depends upon the universe, what it is. These acute memories are probably symptoms of disorder. To him, perpetual thought of death was a sin. Drive your cart and your plow over the bones of the dead.

Herzog - Saul Bellow

sábado, 17 de outubro de 2015

Comer do mesmo tacho

A rat chewed into a package of bread, leaving the shape of its body in the layers of slices. Herzog ate the other half of the loaf spread with jam. He could share with rats too.

Herzog - Saul Bellow

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

The History Of Pea Eating

Modern science, with its far-reaching effects on the life of the community, has yet one more problem to solve to further the progress of the world—that of eating peas. Considerable speculation has been given to the methods employed in the early ages, and we read of the prehistoric man who simply buried his face in the plate of peas and performed practically an illusion by his act of demolishing the vegetables without the use of his hands.
One must admit, however, that this method may be described as crude, for one can hardly imagine the modern corpulent gentleman attempting the same feat, because of the danger of his excessive "adiposity" reaching the floor before his face reached the plate.
We are told that Sir Roger D'Arcy, in the early Middle Ages, found no great difficulty in the problem. All he did was to attach to the headpiece of his armor a double piece of elastic in the form of a catapult. He simply placed a pea between the piece of leather attached to the elastic and aimed towards his open mouth. But even this method brought inconvenience, for it was soon discovered that there were many gentlemen with a bad aim, and often a duel resulted from the fact that Sir Percy had badly stung the wife of Baron Edgar over the other side of the room. It is believed that an Act was instituted prohibiting the use of this method without a licence, and one had to pass a test to secure the necessary permission to adopt this very ingenious style of feeding.
These restrictions were responsible for the falling off in the popularity of peas, and after a time, they were practically non-existent as an edible vegetable. Many years later, however, their revival brought a great interest to the now famous pea-eating contests, the details of which reveal a further method of manipulation. It appears that each competitor was required to balance a certain number of peas along the edge of a sword, from which he was to swallow the peas without spilling any. Of course, in very exciting matches the contestants' mouths and faces were often cut. It is believed that the performance of sword swallowing was evolved from this feat, and that very large-mouthed people of today are direct descendants from the champions of that period.
As is well known, many estimable people still practise this method on a smaller scale.
Still further styles of deglutition were tried in late years, and the modern boy's pea-shooter recalls the employment of pages to shoot the peas in My Lord's mouth. Bad aim, of course, was reflected with dire results to the page.
We have yet to discover a really useful and satisfactory method of pea eating. A recent inventor evolved a process by which a pipe was placed in the mouth and the peas drawn up by pneumatic means. But in the trials the inventor unfortunately turned on the power in the reverse direction, with the result that the victim's tongue is now much longer than hitherto.
Another person suggested that they might be electrically deposited, but the idea of the scheme was so shocking that it was not considered.
One of the most sensible ways which is at present in the experimental stages is receiving the attention of a well-known market gardener, who is endeavouring to grow square peas so as to eliminate the embarrassing habit which peas have of rolling off the cutlery. It is to be hoped that the experiment will prove successful.
In order to help on this very important scientific development, suggested methods from our readers will be welcomed, and forwarded to the proper authority. Please direct any suggestions to The Manager, THE HENLEY TELEGRAPH.

Alfred Hitchcock (1920)

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Wrong Men

Ivor Novello em "The Lodger" (1927)


Henry Fonda em "The Wrong Man" (1956)

terça-feira, 13 de outubro de 2015

O jardim das delícias

The Pleasure Garden- Alfred Hitchcock


25 anos. A primeira longa-metragem que temos de Hitchcock, The Pleasure Garden, foi feita com a mesma idade que Welles tinha quando realizou Citizen Kane. Certamente aquele não tem o mesmo fôlego dramático (muito menos técnico) mas tem a mesma vivacidade e capacidade de mostrar ao que vem. Que impressionante catálogo de obsessões materiais num filme que quer "ensinar" a forma como as aparências iludem (aos humanos entenda-se, não os cães). A primeira sequência é sobejamente conhecida, com as primeiras escadas de Hitchcock (preparadas para tantas subidas, descidas, quedas, mas também o movimento espiralado das suas histórias), as primeiras pernas, a primeira loura que afinal é morena, os primeiros binóculos, o primeiro charuto-falo num jardim dos prazeres onde não se fuma (diz o sinal) mas fuma-se. Depois temos ainda o roubo (com Hitch a mostrar-nos a mente e a estratégia dos assaltantes) da carteira de Jill. O primeiro assassinato, da nativa no mar, às mãos de Levet que se irá desmaterializar numa assombração pré-Rebecca. A traição, num movimento em que Jill quer a fama (o príncipe Ivan, no lugar mais alto do teatro quando a vê pela primeira vez) e não a felicidade (Hugh é o lugar do baixo, agachado a fazer festas ao cão de Patsy). Mas é inesgotável este primeiro filme porque ainda há a rosa dada pela esposa que Levet deita ao mar na lua de mel e o seu bocejo, quando ela lhe diz que rezou por eles para serem felizes juntos. O raccord da mão que diz adeus (de Patsy) e da mão que diz olá (da nativa) no vai vem das mulheres e das geografias de Levet. Os olhares para o lado de Jill (literalmente) a prefigurar que esta se irá dar aos homens, não como Patsy que dá parte dos seus adereços (as suas madeixas falsas) e nada mais. E, no final, uma cerejinha do presciente Cuddles que ladra a quem não presta e faz festas a quem é bom. No último plano de The Pleasure Garden, Hitchcock filma o cão de Patsy a roer os fios da rádio, cortando o som impossível num filme mudo. O espaço da casa é de agora em diante um espaço silencioso de felicidade, o verdadeiro jardim dos prazeres longe da música e da dança dos cabarets e do rebuliço das gentes da distante e exótica África. Home is where the heart is.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

In memoriam Chantal Akerman


Desde este lugar só, que habitava (e a partir do qual compreendia todo o mundo, sem prossivelmente se compreender), há todo um trajecto claro que parte do enclausuramento nas casas [Saute ma ville (1968)], quartos [La Chambre (1972)], lares de família [Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles (1975), aqui fazendo explodir, abrir, mecanizando à exaustão os espaços da rotina da mãe-criada-puta] passando aos hotéis [em Hotel Monterey (1972) o impulso documental mostra já uma das suas outras marcas: a impotência/segurança de ver nos seus planos os exteriores a partir dos interiores] e outros espaços abertos [por exemplo em Les rendez-vous d’Anna (Os encontros de Anna, 1978) a protagonista “salta” de cidade em cidade, festival em festival, mantendo sempre esse “fechamento emocional” com os outros]. Com D’Est (1993), filme fundamental, a observação de Akerman atinge o seu zénite criativo. Pode dizer-se que ele é um filme de viagem, exterior, mas dando a ver a interioridade dos espaços de fronteira na Ucrânia, Polónia e Alemanha de Leste. Essa interioridade são os rostos fechados e curiosos dos que esperam, e nisso D’Est é a construção de um “monumento político ao olhar dos povos”, mas é  também a capacidade de criar uma abertura no espectador, para ver nestas esperas, nestas pessoas, o espaço de construção das suas próprias expectativas. Quer dizer, afinal Chantal Akerman saiu à rua e descobriu que o exterior pode estar fechado mas que os rostos fechados são as telas de construção de uma abertura qualquer. Paradoxo fundamental de uma cineasta que parte agora, saindo do seu enclausuramento tortuoso, deixando-nos uma obra que sempre escavou todas as aberturas de que necessitamos quando queremos exercer esse dom chamado “liberdade.”

sexta-feira, 9 de outubro de 2015


She was dancing so hard
She danced herself into a diamond

quinta-feira, 8 de outubro de 2015


terça-feira, 6 de outubro de 2015

Chantal (1950-2015)

Tenho horror a obituários mas ela era grande.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

The Martian


E pronto encontra-se água em marte e tomem lá um filme sobre marte, desconfia-se, tudo parte do mesmo pacote, e escavam-se os méritos do filme, uma suposta série B (mas onde? só se for na temática, de resto é tudo bem A), dá-se um chega para lá no romantismo de Interstellar (como se a lição final de Damon aos seus alunos não fosse da mesma fornada do follow your dreams, vence as  dificuldades, you can do it...) e depois fica-se com uma coisa mais ao menos anódina que se destina a fazer salivar os românticos da ciência, lets science the shit out of this (vejam lá como é que aquele MacGyver..., lá tão longe... tá muita boa, grandes engenhocas) e a mostrar de forma tão realista, credo, os meandros da NASA. Como se os meandros que vemos não fossem iguais aos meandros de quase todas as grandes organizações estatais do pós guerra americano, que tendo um propósito lícito, se emaranham em egos, lutas de poder e outros... Mas tudo isto não é o pior. O pior é que sob a premissa de se estar numa situação tão estrangeira, tão virgem (como diz Damon ele naquele planeta era o primeiro a fazer tudo, a subir uma montanha ou outra coisa qualquer) esse olhar supostamente inaugural seja desperdiçado num atmosfera tão carregada de pessoas que observam, sentem pena e estão quase desde o início sempre a comunicar com o "marciano". O filme apregua a virgindade mas tem uma mise-en-scène fodilhona, que não confia no silêncio, na solidão, onde todas as acções têm de ser confirmadas pelas câmaras do capacete, dos carros espaciais, do vídeo diário de Damon, da CNN, dos ecrãs gigante da transmissão em directo dos seus feitos. A "história a acontecer" não tem por isso o espaço da discrição e fica-se com a sensação que Damon está a pôr em actuação uma sucessão de números científicos para terráqueo ver (do ponto de vista do leigo podiam ser estes ou outros quaisquer) e que sobreviver em Marte é igual a sobreviver em alto mar ou na Baixa da banheira num dia de mau tempo. Neste sentido, The Martian faz pelos astronautas aquilo que se fez com a guerra no Iraque: vender às pessoas experiências de dureza e de solidão como jogos de níveis (aqui não é a excitação como em Nolan mas é a estratégia) onde tudo é espectacular e aventuroso.

domingo, 4 de outubro de 2015


sábado, 3 de outubro de 2015

Os donos d'isto tudo


Há coisas que valia a pena comparar. Por exemplo, o sistema de produção em alguns casos invisível e anónimo da Hollywood clássica que fazia com que um filme como Casablanca possa ser visto como uma malha de autoria (s) de para aí uma dúzia de pessoas diferentes (mas ainda assim, follow the money), com a mostração das malhas mais uma vez invisíveis do tardo capitalismo financeiro em filmes como The Godfather e mais explicitamente toda a série de conspiracy movies do pós modernismo, como escreveu Fredric Jameson em The Geopolitical Aesthetic (aqui, follow the money é mesmo a única coisa a fazer).

 O que é aparentemente incomparável talvez ajude a compreender se hoje coisas na boca do mundo como os colaborative movies e todo o fenómeno da criação total são o próximo capítulo da redentora vinda do anjo da história, sem contradições, sem autores e sem auras, ou se, andamos apenas a substituir sistemas de invisibilidade uns pelos outros para ir tapando, de forma cada vez mais eficiente, os "donos d'isto tudo".

(talvez a "trajectória" do corpo de Marlon Brando da t-shirt branca de A Streetcar Named Desire até ao corpo balofo, amortalhado e "invisível" do general Kurtz, com a interrupção das variações e retalhos cronenberguianos sobre os corpos dos anos 80, nos mostrem de forma muito visível o que vai acontecendo ao que é palpável e material num universo relacional, de labirinto que esconde a causa do problema, seja ela a exploração mafiosa dos recursos ou a deformação do corpo por excesso de jouissance.)

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Auteur, yes, but of what?

I admit that the explicit or admitted pretension of a critic to reconsider the production of a filmmaker with every new film in the light of his judgement has something presemptuous about it that recalls Ubu. I am also quite willing to admit that of one is human one cannot help doing this, and, short of giving up the whole idea of actually criticizing, one might as well take as a starting point the feelings, pleasant or unpleasant, one feels personally when in contact with a film. Okay, but only on condition that these first impressions are kept in their proper place. We have to take them into consideration, but we should not use them as a basis. In other words, every critical act should consist of referring the film in question to a scale of values, but this reference is not merely a matter of intelligence; the sureness of one's judgement arise also, or perhaps even first of all (in the chronological sense of the word), from a general impression experienced during a film. I feel there are two symmetrical heresies, which are (a) objectively applying to a film a critical all-purpose yardstick, and (b) considering it sufficient simply to state one's pleasure or disgust. The first denies the role of taste, the second presupposes the superiority of the critic's taste to that of the author. Coldness... or presumption!


(...) 

It is unfortunate to praise a film that in no way deserves it, but the dangers are less far-reaching than when a worthwhile film is rejected because its director has made nothing good up to that point.

(...)

To conclude: the politique des auteurs seems to me to hold and defend and essential critical truth that the cinema needs more than the other arts, precisely because ac act of true creation is more uncertain and vulnerable in the cinema than elsewhere. But its exclusive practice leads to another danger: the negation of film to the benefit of praise of its auteur. I have tried to show why mediocre auteurs can, by accident, make admirable films, and how, conversely, a genius can fall victim to an equally accidental sterility. I feel that this useful and fruitful approach, quite apart from its polemical value, should be complemented by other approaches to the cinematic phenomenon which will restore to a film its quality as a work of art. This does not mean one has to deny the role of the auteur, but simply give him back the preposition without which the noun auteur remains a halting concept. Auteur, yes, but what of?

Andre Bazin - On the politique des auteurs (1957)