Numa altura em que passarem já mais de 24 horas do nefasto efeito dos
Óscares encontro-me ainda a recuperar de uma crescente culpa católica
que se apodera de mim de ano para ano. "Lá foste tu pecar novamente este
ano... Então o que é que eu te disse no ano passado?". Isto era uma vozinha interior a falar. Então não havia solinho ou chuvinha da boa, plantas a respirar e o
sorriso da padeira que deixaste escapar na manhã seguinte para veres
este ano outra vez a "cerimónia"? Embora cinéfilo, o post-óscares é cada
vez mais isto: a culpa do adolescente depois da masturbação temendo que
lhe cresçam pelos nas palma das mãos, a culpa do senhor de óculos
grossos apanhado a folhear a "Caras" no consultório do dermatologista.
Por esta altura ainda havia salame |
E
é cada vez mais da revista Caras que falamos. Aquela entrada musical à
La Faria com mais meios, entre o stage e o screen, não augurava nada de
bom. Depois aquilo passou-se numa lentidão excruciante, a desejarmos que
os números musicais fossem mais intervalos em que podíamos ver o chef
Hernâni a arquear as sobrancelhas ou um senhor a conduzir um automóvel
bem bom e inchado depois de lhe ter caído um viagra no depósito do gasóleo. Como nada se passou de realmente relevante durante o tempo da
cerimónia há que focar no politiquês que falou a política dos Óscares. No
trajecto que vai de Obama presidente, passando pelo prémio de melhor
filme o ano passado "para" Steve McQueen por 12 Years a Slave até à homossexualidade do host deste ano, Neil Patrich Harris, parece desenhar-se o padrão da máxima liberalidade na land of opportunities.
Todos
estamos de acordo que era desejável que isto não fosse notícia, que não
existissem padrões ainda a modelar as questões das minorias que ainda
mostram o fosso. Contudo, a questão deste ano, com todos os vencedores
que subiram ao palco a defender uma causa (sejam elas, o femininismo, a
igualdade racial, sexual, a luta contra a tecnologia, contra a
superheroização do cinema; Birdman é isto, no fundo) em jeito comício-passadeira-vermelha é que o gesto do activismo social banalizou-se ao estilo da miss
que deseja paz no mundo e tudo o resto de bom para todos. Não caio na
ingenuidade daqueles que acreditam que já não é necessário defender
certas causas. E a prova provada é que isto é ainda hoje em 2015 um
assunto. Compreendo ainda a posição dos que defendem que o palco dos
Óscares devia estar reservado à defesa exclusiva do cinema, embora isso
nunca tenham sido os Óscares. Eles nascem de uma outra preocupação de
visibilidade que se exacerba aqui na vociferação vazia da retórica
política. A questão, parece-me, tem muito que ver com a
banalização dos discursos de activismo ao ponto de duvidarmos da sua
eficácia. A questão da hipocrisia é um surplus evidente: todos sabemos que aquelas pessoas não são os estivadores do On The Waterfront, nem o Dolby Theatre um cais de Nova Iorque dos anos 50.
Com
isto em mente, as futuras edições adivinham-se ainda mais chatas com a
multiplicação das micro-causas individuais e micro-homenagens dentro da
homenagem aos seus que já é o propósito da coisa. Duvida-se é que
alguém que tenha ante si 30 segundos de púlpito com milhões de pessoas a
mirar não se visse tentado a fazer do seu sucesso um projecto "global" (Iñárritu
quis criar ali na hora uma "associação" pela defesa da imigração
mexicana e não só, com ele e Alfonso Cuarón como os dois sócios
fundadores) ou a falar como o Messias, regressado para junto dos seus
fiéis, sublinhando o que devem ter em atenção para os próximos tempos.
Aqui jogar-se-á cada vez mais o paradoxo da política na estética: é que
certamente nunca como nos próximos anos, os Óscares, ao politizarem-se
até aos dentes, se adivinharão tão inócuos no seu lastro. É que brincar à
política não é ser político.
Dito isto, e
tendo tido desilusões do tamanho de mamutes ao longo dos anos quanto aos
vencedores (não posso ouvir falar em Shakespeare sem, cheio de
contracções lombares, ficar na expectativa que a ele não se sigam as
palavras "in love"), este domingo tudo se passou sem grande problema.
Percebendo a conveniência da metáfora de Iñárritu a embelezar a pintura, e vivendo Iñárritu
como mais americano do que os americanos, fazendo um cinema mais
papista do que o papa, não desgostei de Birdman. Assim como não
desgostei do Hawkins de Redmayne em mais uma homenagem, desta vez no
subcapítulo dos nerds da ciência em versão coitadinhó-deficiente. Claro,
o melhor filme dos nomeados era o do Linklater que, sem fazer um grande
filme e onde o dispositivo temporal é o que inova (e nele o tempo que
desfigura ou reconfigura as pessoas) era o único que melhor fugia à
estética do condensado da clareza e sua ideias mais ou menos
pré-concebidas.
E é isto. Agora vou ali defender a causa daqueles
que têm fome ao almoço e devem cozinhar os seus próprios alimentos e,
para o ano, pecarei novamente, na expectativa que a padeira me volte a
perdoar.
Sem comentários:
Enviar um comentário