Passei o dia de ontem a rever L'argent, o último Bresson, e acabei de ler The Violent Bear It Away da
Flannery O' Connor. Sobre o filme que adapta um conto do Tolstoy
fala-se muito da transição do cineasta em final de vida (ou melhor, de
carreira pois ainda viveu quase mais vinte anos, até aos 98) de uma
visão dostoiévskiana de uma vida terrena como preparação para um depois,
para um olhar de socialismo terreno e organizado cara ao autor de Guerra e Paz.
A minha vida pequenina torna-me antes susceptível a reparar como o
método de Bresson, pelo alinhavar sucessivo de pequenos indícios, contém
em si uma dimensão de revelação que O'Connor esculpiu nos seus
romances. O surgimento de algo por vir que faz queimar todo o presente
sob a forma de uma sarça ardente ou de uma súbita cegueira. Em The Violent a cegueira de Motes do Wise Blood dá lugar
à surdez do professor. Para Yvon, o pequeno funcionário de uma companhia
petrolífera tornado assassino por uma injustiça envolvendo uma nota
falsa, os crimes são surpreendentes apenas para quem não observar os
sinais (religiosos, da circulação monetária e dos valores morais). Mas ante um olhar atento esses crimes são um resultado lógico e intransigente.
Tão intransigentes quanto a maldade de Misfit do conto A Good Man Is Hard to Find
ou a certeza teimosa do jovem Tarwater. É exagero dizer que Bresson se
baptiza nas águas sacrílegas da prosa de O'Connor mas ambos partilham
essa distância que vai da evidência das acções duras de quem está (ou
fica) predestinado e o súbito vagar da contingência.
(Por exemplo, não me agrada que a personagem do professor em The Violent fique
"presa" na segunda parte do livro e não se escape para o clímax. Fico
um tanto desiludido que tudo não tenha passado de uma bebedeira de um
"falso violento". Mas nunca saberei se o que sinto é ele mesmo fruto da
contingência ou da predestinação.)
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