"Em 1992, numa entrevista a um canal de televisão
grego, o filósofo e psicanalista francês Félix Guattari incitava os gregos a
recusarem as regras que fazem da política europeia um teatro de sombras
semelhante ao que a lei edipiana faz na família: “A Grécia é o mau aluno da
Europa. É essa a sua qualidade. Felizmente que há maus alunos, como a Grécia,
que trazem a complexidade. Que trazem uma recusa de uma certa normalização
germano-francesa. Por isso, continuem a ser maus alunos e continuaremos bons
amigos.” Em Portugal, nessa altura, já estávamos a ser ungidos pela metáfora do
bom aluno e ainda hoje transportamos o brilho intenso e o contentamento sem
reserva que a metáfora irradia. O que é, neste caso, um bom aluno? O bom aluno
caracteriza-se por um determinado comportamento, por um programa de acção, mas
é também aquele que interiorizou convictamente uma moral, ao ponto de política
e moral serem para ele a mesma coisa. A dívida, como sabemos muito bem, segrega
uma moral própria. Um breve exercício genealógico ajuda a perceber porquê. Actualmente,
já não é preciso ter lido a Genealogia
da Moral, de Nietzsche, para saber que o conceito moral de culpa
remonta ao conceito material de dívida, que, por isso, se diz, em alemão,
exactamente com a mesma palavra — Schuld.
A figura do “homem endividado”, que o sociólogo italiano Maurizio Lazzarato
definiu como o representante por excelência da condição neoliberal, é afinal, a
figura típica de uma economia da salvação, como nos lembrou Walter Benjamin num
célebre fragmento de 1921 sobre O
Capitalismo como Religião, onde define o capitalismo como uma
religião sem dogma, caracterizada pela celebração de um culto sem tréguas, para
o qual não existem dias feriados. “Este culto”, diz Benjamin, “é gerador de
culpa” (ou de dívida, já que a palavra verschuldend
significa as duas coisas). E acrescenta: “O capitalismo, com toda a
probabilidade, é o primeiro caso de um culto que não redime o pecado, mas gera
culpa” (isto é, dívida). Uma culpa que não pode ser expiada — e essa é a
condição paradoxal da religião capitalista — mas tornada universal. O bom aluno
é aquele que interiorizou plenamente a moral da culpa e sabe que deve
comportar-se como um ser em débito. Haverá algum momento em que a culpa vai ser
expiada, isto é, em que o débito vai ser saldado? Evidentemente que não. Por
isso é que se criou a figura da “dívida eterna” ou infinita. Por ela, o homem
endividado interiorizou para sempre a dívida e é isso — e não que a pague de
uma vez por todas — que o credor lhe exige. Comentando Nietzsche, escreveu
Deleuze: “A dívida torna-se a relação de um devedor que nunca acabará de pagar
e de um credor que nunca acabará de esgotar os interesses da dívida.” O
infinito que o cristianismo introduziu na religião, reinventa-o o capitalismo
ao nível económico, num plano imanente. Para se tornar um bom aluno, como lhe é
exigido para continuar a dar-lhe crédito, a Grécia não precisa de pagar a sua
dívida — que é infinita e eterna. Tem é de dar como garantia do fictício e
sempre diferido reembolso um conjunto de virtudes sociais e políticas que são a
carne e o sangue da moralidade a que está obrigada. Tem de sujeitar-se
eternamente ao performativo da promessa. Não é que as promessas paguem dívidas,
mas são um reconhecimentos e uma ritualização da culpa. Em suma: é preciso que
o modo de existência da Grécia, o seu ethos,
seja determinado pela culpa que todos os bons alunos interiorizaram e que os
faz arrastarem-se, de ombros descaídos e olhar baixo, sempre que está por perto
um supremo credor."
António Guerreiro
Raios, há aqui coisas muito boas para roubar (sem sentimentos de culpa embutidos :)
ResponderEliminarFurta, furta, sem pudores e à bruta. :)
ResponderEliminar(olha, rimou)