Ontem pus-me a ler um daqueles artigos
extensíssimos que o Público encomenda com o objectivo de fazer crescer aos seus
leitores espessas sobrancelhas destinadas à pose reflexiva e ao franzir do
sobrolho. Trata-se de um belo naco de prosa de um senhor chamado Brook Larmer
que me diz agora o google é um grande jornalista correspondente no estrangeiro,
especializado em assuntos chineses e que escreveu um livro chamado: “Operation
Yao Ming: The Chinese Sports Empire, American Big Business, and the Making of
an NBA Superstar”. Mas este texto, mais modesto, quer abordar a preparação dos
mais de nove milhões de adolescentes chineses para o gaokao – o exame nacional de acesso à universidade - e em especial, na escola de Maotanchang,
uma pequena cidade na zona oriental da China. O objectivo é simples,
mostrar ao olhar ocidental como em escala e em dificuldade estamos perante um
grande épico de esforço militar onde as crianças começam as aulas às seis e tal
da manhã e saem perto das onze, não têm telemóvel (a heresia!), estudam
ininterruptamente, os professores recebem consoante o sucesso dos seus alunos e
fotografias há que mostram os piquenos a estudar ligados a catéters de
alimentação intravenosa. Entretanto, na Sic, a melhor televisão portuguesa não fosse a Tvi, exibe um dos maiores entretenimentos pós 25 de Abril que não
envolvem sexo pago: o magazine “Achas que sabes dançar”.
Eis uma
dessas boas ironias à antiga. Enquanto leio miúdos que tentam tudo por tudo
para entrar na universidade e fugir do destino mais certeiro que
consiste em apanhar pêssegos até à morte, eis-me a desviar o olhar para essoutro
teste árduo. Aí, preâmbulos de homo
sapiens, vulgo adolescentes, ensaiam coreografias onde vale tudo, da salsa
à fractura de clavículas, passando pelo rap da loja dos chineses (daqueles que
não entraram na universidade, entenda-se). Aí o objectivo é convencer a troika
contratada para o certame, composta pelo penteado de Joaquín Cortés, os estertores de Rita Blanco e um
emigrante português em França que deve ter entrado num teledisco.
Mas a
tal ironia nem é o contraste de desafios entre o borbulhento oriental e o borbulhento
ocidental. (Atenção que também há mães de filhos no programa da Sic, mais
respeito). O gozo é que o artigo de Brook
Larmer fala do excesso de rigidez de todo o processo de preparação, herdeiro das
influências milenares do império e que deixa os alunos meio baralhados quando
depois entram na universidade. Não sabem o que fazer ao tempo livre, não sabem
como actuar em moldes não rígidos em que ninguém lhes dita ordens a todo o
tempo pois estão habituados ao pé pesado da disciplina. Ou seja: “não sabem
dançar”. Contrariamente, e ilustrando que a alegoria de sucesso da modernidade
consiste no auto-movimento (na capacidade de pelo movimento, gerar mais
movimento, preservando a espécie ou o capital) a dança representa para estes
concorrentes do programa da Sic, estas pessoas escaladas pelo circulo
transitivo e mediático, uma paradigma de luz e de movimento. Porque se trata de
um movimento sem objecto, ou como dizia Marx em relação ao trabalho, “sans
phrase”, cabia inserir no movimento dessa dança outra questão, a questão: achas que sabes estudar? Esta questão símbolo consiste em traçar-se a capacidade de procurar elementos de imobilidade, de “rigidez”, a partir do qual a
mobilidade, a dança, esta dança, possa fazer sentido.
Não está em causa que as lágrimas do menino chinês
que chumbou nos exames (e que terá de encontrar trabalho de construção, como o pai,
nas reluzentes cidades costeiras da China) e as da menina rechonchuda
que não é bonita ao ponto de poder dançar na ribalta da televisão são as
mesmas. Em ambas estão em causa os valores da aprendizagem e do falhanço. Só
que no primeiro o falhanço é mais duradouro já que a sociedade o afasta para a
margem. No segundo o falhanço implica um recomeço mais perto do centro da
sociedade, isto apesar destes programas possuírem o cunho da tragédia na medida
em que não reflectem a abjecção das pessoas mas criam-na, domingo a domingo.
Sem comentários:
Enviar um comentário