Oh argent, dieu visible, qu’est-ce que tu ne nous ferais pas faire !
Antes de tudo o mais, preâmbulo. E faço-o com uma dessas sentenças à boa moda antiga: não aceito que ninguém me diga que L’Argent não tem uma das mais geniais cenas de assassinato do mundo. Uma não, duas. Mas sobre a segunda, a do machado dostoievskiano no menos dostoievskiano
dos filmes de Bresson, já lá iremos mais para o final deste desabafo.
Mas dizia, Yvon, o herói – mas haverá cá desses a habitar a solene
carpintaria bressioniana? – Yvon, o homem inocente, sai da prisão onde
teve três anos por ter sido condenado injustamente de contrafacção.
Plano dele a caminhar na rua com a sua declaração de saída. Plano escuro
dele em amorce a bater à porta daquilo que no quadro seguinte
se nos revela ser, através de uma placa, um hotel- o Hotel Moderne. A
porta abre-se e uma senhora deixa Yvon passar para a recepção onde está
um homem. Plano escuro de Yvon que desce uma escada com uma mão manchada
de vermelho que, juro, juro, só se repara dois planos à frente quando
genialmente a água da torneira que se escapa pelo ralo (do qual sabemos
tanto haveria a dizer) passa de incolor a rosa. Há qualquer coisa de
indecente em amar um crime no cinema mas esta arte da depuração e da cor
merece-me um suspiro.
Depuração sempre foi a palavra de Bresson, ou uma delas. Pode
dizer-se, e diz-se, que no seu filme final Bresson atinge uma espécie de
pureza material, um zénite da massa bruta com uma forte dose de ironia,
uma vez que o projecto foi adaptar um conto de Tolstoy e mostrar as
“canalizações” maléficas do sistema da opulência: o capitalismo. Mostrar
o tanto ou os males do tanto, com tão pouco, eis o desafio de Bresson e
daqueles que muitos consideram ser o seu filme marxista, ou como se
conta a história de uma nota de 500 francos. Pegar num centro não humano
e fazer o mundo girar já o francês o tinha feito com Au Hasard Balthazar
(Peregrinação Exemplar, 1966), um estudo asinino sobre a santidade, que
também tem em comum com este filme o facto de expor um estado do mundo
por via da circulação. Se aqui a nota circula de mão em mão trazendo
desastres aos seus possuidores, acolá era o burrinho que muda de dono ao
som da sonata nº 20 para piano de Schubert.
A questão da circulação, que não é menos cara ao capitalismo do que à montagem, introduz em L’Argent
a questão da forma como ambos – o sistema político económico e o cinema
de Bresson – constroem esse caminho, essa “linha de montagem” e onde
querem chegar. A falsidade da nota, inicialmente nas mãos do jovem
adolescente a quem os pais não deram mais do que a mesada e que tinha
contas para pagar na escola, apenas demonstra o vazio da troca simbólica
que a circulação do capital encerra. Sob esse vazio simbólico, que se
opõe à troca directa na prisão, carne por dinheiro em mãos debaixo na
mesa na cantina, há uma acumulação que se põe em andamento e que faz
passar da inocência à culpa, do bem ao mal.
Yvon é o “cristão-ateu” (como Bresson se descrevia ante a religião)
agente do “deus vísivel” do dinheiro. E aqui entra a velha querela do
que é bressoniano ou deixa de ser e da transcendência das pequenas
revoluções versus a imanência dos gestos e lugares quaisquer. Não há
como negar que L’argent é um pequeno filme de objectos:
a mota, as pistolas, os envelopes, o cofre, as chaves, a máquina
fotográfica. E essas coisas têm mãos à volta, pernas, pés e tudo isso,
envolto, espaços inertes, o clichet do hotel, a mesa da esplanada, os
corredores da prisão, o balcão do bar. Onde eu quero chegar com isto é
aqui: Bresson quer contar como vai das mãos do adolescente com a nota
falsa que lhe queima de inocência na posse às incandescentes mãos de
Yvon que brande o machado nesse percorrer mudo da casa, na qual só se
ouve o cão a latir e a despedaçar-nos a certeza de uma salvação, no
assassinato-spoiler final do filme. Esse “drôle de chemin”, para usar a
expressão de outra drama real da manufactura (Pickpocket,
1959), é feito de pontilhismo materialista, a circulação do seu
“capital” são os gestos dos corpos, a música do quotidiano (ouçam a
malga dele a arrastar no chão da prisão, o alarme do cofre, o Bach do
pai alcoólico da mulher de cabelos grisalhos seguido do estilhaço do
copo quando cai do piano) as zonas e tempos de desaceleração dramáticas
das cenas, a neutralidade das emoções.
Quando chegamos à tal mão final, o pontilhado já se fez grande e L’Argent
é um filme que descreve as roldanas de uma engrenagem que parece
encaminhar os seus sujeitos para a perdição. Dá vontade de dizer que
podíamos descrever o percurso do filme com o plano em que vemos a porta
da prisão pelo qual passa Yvon. Mais do que uma vez lá está o sinal na
porta que diz “poussez”. Podíamos pensar que é tudo uma questão de ir
empurrando as portas, obedecendo a lógica pull or push para ir
progredindo. Mas há um senão. Estamos à porta de uma prisão e ninguém
passa sem pôr a chave na fechadura para a abrir previamente. Admito que
isto está a resvalar para o abismo do conceptualismo mas tento pôr
ordem. A livre circulação do capital, a nota da mão à mão, da inocência
ao crime, do lado de cá da prisão ou lado de lá (é maravilhoso que
Bresson filme as crianças que visitam os seus parentes presos, num
corredor onde estas é que parece estarem presas) é esse sistema fácil do
push and pull. Mas como Bresson descrevia numa entrevista
sobre o filme, a arte onde tudo está organizado não lhe interessa e o
seu cinema funciona com “sistema de chaves”, como sistema de pequenos
inícios e revelações que querem dar passagem de um momento ao outro
mesmo que, como é o caso aqui, seja para explicar a “organização absurda
do mundo e a impossibilidade de mudança.”
No final Yvon que matou os donos do hotel e a família da senhora de
cabelos grisalhos entrega-se num bar à autoridades. No plano final os
espectadores mirones olham a saída dele escoltado pela polícia,
seguindo-se um cut to black. Chegados aqui aconselho a ler, senão tiverem mais nada para fazer, e se não se importarem de ler em pdf,
o capítulo final de um livro chamado “Neither God Nor Master: Robert
Bresson and Radical Politics”. Neste, o seu autor Brian Price,
entretém-se a fazer as ligações políticas entre L’Argent
e a semi-desilusão da política de François Miterrand em França. Sobre o
fim a questão levanta-se, até porque Bresson se escusou a filmar a
segunda parte do conto “Faux billet”, onde Tolstoy talhava uma
espectacular redenção de todos os corrompidos pelo materialismo, o que
significava aquele plano final sem redenção. Este negro final é o negro
do pessimismo expulsando-se a cura para a infecção capitalista, do vírus
que corrompe de pessoa para pessoa, para um fora de campo do futuro.
É a partir desse fora-de-campo para o qual L’argent nos remete, o local a partir do qual o vemos hoje. É nesse fora de campo, nesse pós filme, em que já não há linguagem,
que ainda estendemos a mão para a nota. Ver hoje a crise financeira
especulativa ainda na mesma democracia da escuridão, habitada pelo mesmo
impotente mirone espectador como o prolongamento da obra de Bresson é
uma hipótese tão assustadora quão inspiradora. Talvez valha a pena
suster o olhar na materialidade despida do filme como uma outra
tentativa do projecto da circulação das coisas, um lado B fantasmático
da transacção capitalista. Proposta assombrada, proposta assombrosa a de
Robert Bresson.
E no fim de tudo mais, epílogo. Aconselho ainda ver ou rever o ciclo
que a Cinemateca Portuguesa dedica a partir de hoje à obra do cineasta
do qual Godard disse que era o cinema francês tanto quanto Dostoevsky
era o romance russo ou Mozart a música alemã. Há poucas coisas tão boas
na vida do que ver assim de enfiada os Bressons todos. E começar o ciclo
pelo seu último, o seu fim a ser o nosso início hoje, é um gesto
imponente que a programação não deixou passar em claro e que a mim me
merece um sorriso e outro suspiro.
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