sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

O Bom Aluno


"Em 1992, numa entrevista a um canal de televisão grego, o filósofo e psicanalista francês Félix Guattari incitava os gregos a recusarem as regras que fazem da política europeia um teatro de sombras semelhante ao que a lei edipiana faz na família: “A Grécia é o mau aluno da Europa. É essa a sua qualidade. Felizmente que há maus alunos, como a Grécia, que trazem a complexidade. Que trazem uma recusa de uma certa normalização germano-francesa. Por isso, continuem a ser maus alunos e continuaremos bons amigos.” Em Portugal, nessa altura, já estávamos a ser ungidos pela metáfora do bom aluno e ainda hoje transportamos o brilho intenso e o contentamento sem reserva que a metáfora irradia. O que é, neste caso, um bom aluno? O bom aluno caracteriza-se por um determinado comportamento, por um programa de acção, mas é também aquele que interiorizou convictamente uma moral, ao ponto de política e moral serem para ele a mesma coisa. A dívida, como sabemos muito bem, segrega uma moral própria. Um breve exercício genealógico ajuda a perceber porquê. Actualmente, já não é preciso ter lido a Genealogia da Moral, de Nietzsche, para saber que o conceito moral de culpa remonta ao conceito material de dívida, que, por isso, se diz, em alemão, exactamente com a mesma palavra — Schuld. A figura do “homem endividado”, que o sociólogo italiano Maurizio Lazzarato definiu como o representante por excelência da condição neoliberal, é afinal, a figura típica de uma economia da salvação, como nos lembrou Walter Benjamin num célebre fragmento de 1921 sobre O Capitalismo como Religião, onde define o capitalismo como uma religião sem dogma, caracterizada pela celebração de um culto sem tréguas, para o qual não existem dias feriados. “Este culto”, diz Benjamin, “é gerador de culpa” (ou de dívida, já que a palavra verschuldend significa as duas coisas). E acrescenta: “O capitalismo, com toda a probabilidade, é o primeiro caso de um culto que não redime o pecado, mas gera culpa” (isto é, dívida). Uma culpa que não pode ser expiada — e essa é a condição paradoxal da religião capitalista — mas tornada universal. O bom aluno é aquele que interiorizou plenamente a moral da culpa e sabe que deve comportar-se como um ser em débito. Haverá algum momento em que a culpa vai ser expiada, isto é, em que o débito vai ser saldado? Evidentemente que não. Por isso é que se criou a figura da “dívida eterna” ou infinita. Por ela, o homem endividado interiorizou para sempre a dívida e é isso — e não que a pague de uma vez por todas — que o credor lhe exige. Comentando Nietzsche, escreveu Deleuze: “A dívida torna-se a relação de um devedor que nunca acabará de pagar e de um credor que nunca acabará de esgotar os interesses da dívida.” O infinito que o cristianismo introduziu na religião, reinventa-o o capitalismo ao nível económico, num plano imanente. Para se tornar um bom aluno, como lhe é exigido para continuar a dar-lhe crédito, a Grécia não precisa de pagar a sua dívida — que é infinita e eterna. Tem é de dar como garantia do fictício e sempre diferido reembolso um conjunto de virtudes sociais e políticas que são a carne e o sangue da moralidade a que está obrigada. Tem de sujeitar-se eternamente ao performativo da promessa. Não é que as promessas paguem dívidas, mas são um reconhecimentos e uma ritualização da culpa. Em suma: é preciso que o modo de existência da Grécia, o seu ethos, seja determinado pela culpa que todos os bons alunos interiorizaram e que os faz arrastarem-se, de ombros descaídos e olhar baixo, sempre que está por perto um supremo credor." 

António Guerreiro

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Não sabia que o Paul Schrader se tinha inspirado no Martin LaSalle do Bresson para criar o Travis Bickle do Taxi Driver. E soube-o pela voz melada do Marc Cousins no Story of Film. O interesse disto, mais do que o óbvio para os obcecados pela história das influências, é saber o "para além do bem e do mal" como técnica: não sei quantos minutos sem largar a personagem e o monólogo interior são os mecanismos da empatização com os "estranhos" ou com a bandidagem. Simples.
Não tenho muito jeito para estas coisas, mas gostava de deixar aqui um valente bem haja ao José António Abreu e ao Pedro Correia do Delito de Opinião que linkaram o meu blog e alguns humildes escritos aqui do estaminé.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Talho

Mais vil do que um bordel, 
o talho rubrica a rua como uma afronta.
Sobre o dintel
uma cega cabeça de vaca
preside ao conciliábulo
de carne berrante e mármores finais
com a majestade remota de um ídolo.

Jorge Luís Borges - "Fervor de Buenos Aires"

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

O comício dos Óscares e a culpa católica

Numa altura em que passarem já mais de 24 horas do nefasto efeito dos Óscares encontro-me ainda a recuperar de uma crescente culpa católica que se apodera de mim de ano para ano. "Lá foste tu pecar novamente este ano... Então o que é que eu te disse no ano passado?". Isto era uma vozinha interior a falar. Então não havia solinho ou chuvinha da boa, plantas a respirar e o sorriso da padeira que deixaste escapar na manhã seguinte para veres este ano outra vez a "cerimónia"? Embora cinéfilo, o post-óscares é cada vez mais isto: a culpa do adolescente depois da masturbação temendo que lhe cresçam pelos nas palma das mãos, a culpa do senhor de óculos grossos apanhado a folhear a "Caras" no consultório do dermatologista.
Por esta altura ainda havia salame
E é cada vez mais da revista Caras que falamos. Aquela entrada musical à La Faria com mais meios, entre o stage e o screen, não augurava nada de bom. Depois aquilo passou-se numa lentidão excruciante, a desejarmos que os números musicais fossem mais intervalos em que podíamos ver o chef Hernâni a arquear as sobrancelhas ou um senhor a conduzir um automóvel bem bom e inchado depois de lhe ter caído um viagra no depósito do gasóleo. Como nada se passou de realmente relevante durante o tempo da cerimónia há que focar no politiquês que falou a política dos Óscares. No trajecto que vai de Obama presidente, passando pelo prémio de melhor filme o ano passado "para" Steve McQueen por 12 Years a Slave até à homossexualidade do host deste ano, Neil Patrich Harris, parece desenhar-se o padrão da máxima liberalidade na land of opportunities

Todos estamos de acordo que era desejável que isto não fosse notícia, que não existissem padrões ainda a modelar as questões das minorias que ainda mostram o fosso. Contudo, a questão deste ano, com todos os vencedores que subiram ao palco a defender uma causa (sejam elas, o femininismo, a igualdade racial, sexual, a luta contra a tecnologia, contra a superheroização do cinema; Birdman é isto, no fundo) em jeito comício-passadeira-vermelha é que o gesto do activismo social banalizou-se ao estilo da miss que deseja paz no mundo e tudo o resto de bom para todos. Não caio na ingenuidade daqueles que acreditam que já não é necessário defender certas causas. E a prova provada é que isto é ainda hoje em 2015 um assunto. Compreendo ainda a posição dos que defendem que o palco dos Óscares devia estar reservado à defesa exclusiva do cinema, embora isso nunca tenham sido os Óscares. Eles nascem de uma outra preocupação de visibilidade que se exacerba aqui na vociferação vazia da retórica política. A questão, parece-me, tem muito que ver com a banalização dos discursos de activismo ao ponto de duvidarmos da sua eficácia. A questão da hipocrisia é um surplus evidente: todos sabemos que aquelas pessoas não são os estivadores do On The Waterfront, nem o Dolby Theatre um cais de Nova Iorque dos anos 50.

Com isto em mente, as futuras edições adivinham-se ainda  mais chatas com a multiplicação das micro-causas individuais e micro-homenagens dentro da homenagem aos seus que já é o propósito da coisa. Duvida-se é que alguém que tenha ante si 30 segundos de púlpito com milhões de pessoas a mirar não se visse tentado a fazer do seu sucesso um projecto "global" (Iñárritu quis criar ali na hora uma "associação" pela defesa da imigração mexicana e não só, com ele e Alfonso Cuarón como os dois sócios fundadores) ou a falar como o Messias, regressado para junto dos seus fiéis, sublinhando o que devem ter em atenção para os próximos tempos. Aqui jogar-se-á cada vez mais o paradoxo da política na estética: é que certamente nunca como nos próximos anos, os Óscares, ao politizarem-se até aos dentes, se adivinharão tão inócuos no seu lastro. É que brincar à política não é ser político.

Dito isto, e tendo tido desilusões do tamanho de mamutes ao longo dos anos quanto aos vencedores (não posso ouvir falar em Shakespeare sem, cheio de contracções lombares, ficar na expectativa que a ele não se sigam as palavras "in love"), este domingo tudo se passou sem grande problema. Percebendo a conveniência da metáfora de Iñárritu a embelezar a pintura, e vivendo Iñárritu como mais americano do que os americanos, fazendo um cinema mais papista do que o papa, não desgostei de Birdman. Assim como não desgostei do Hawkins de Redmayne em mais uma homenagem, desta vez no subcapítulo dos nerds da ciência em versão coitadinhó-deficiente. Claro, o melhor filme dos nomeados era o do Linklater que, sem fazer um grande filme e onde o dispositivo temporal é o que inova (e nele o tempo que desfigura ou reconfigura as pessoas) era o único que melhor fugia à estética do condensado da clareza e sua ideias mais ou menos pré-concebidas.

E é isto. Agora vou ali defender a causa daqueles que têm fome ao almoço e devem cozinhar os seus próprios alimentos e, para o ano, pecarei novamente, na expectativa que a padeira me volte a perdoar.

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Um santo do( )mingo

Ia à procura de mais informações sobre a câmara de Les Blank em Poto e Cabengo, de Jean-Pierre Gorin, que muito me fez transpirar por dentro, mas como encontrei isto para vos animar o domingo, deixo quaisquer afirmações lamecho-simbólicas para outro dia.




quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

"Lately, when Sabbath suckled at Drenka's uberous breasts—uberous, the root word of exuberant, which is itself ex plus uberare, to be fruitful, to overflow like Juno lying prone in Tintoretto's painting where the Milky Way is coming out of her tit—suckled with an unrelenting frenzy that caused Drenka to roll her head ecstatically back and to groan (as Juno herself may have once groaned), ‘I feel it deep down in my cunt,' he was pierced by the sharpest of longings for his late little mother."

Philip Roth - Sabbath's Theater

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Inherent Vice


Se bem se lembram, se bem me lembro, havia um mecanismo que fazia com que Freddie Quell, o “zombie” de olheiras até ao queixo vindo do pós-guerra que Joaquin Phoenix era em The Master (O Mentor, 2012), desbloqueasse os traumas interiores. Lancaster Dodd (Philip Seymour Hoffman), o líder da seita chamada “The Cause”, era quem fazia as perguntas de fazer bater com a cabeça na parede, e o tête à tête o que se definia como “processing”. Este processamento era o que no filme mais se aproximava de um destilar de razões emocionais-racionais para justificar a violência, o álcool, as errâncias de Freedie. Pode dizer-se que esse é o mecanismo (falhado) que tentava tornar límpidas as águas turvas e insondáveis em que se movia o filme de Paul Thomas Anderson (PTA). Mas precisamente porque esta era uma terapia falhada, quem vê The Master fica sempre às aranhas (ou aos sapos) e isso tem o condão de lançar a carreira do cineasta num abismo que alguns vão desculpando como mero virtuosismo técnico e outros venerando como ascética depuração autoral.

Independentemente da barricada onde nos queiramos refastelar parece claro que o rendilhado neo-barroco do universo romanesco de Thomas Pynchon oferece a PTA uma hipótese de prolongar esse mistério. Não é por acaso que esta é apenas a primeira adaptação do célebre escritor. Não sendo um especialista no universo pós-moderno de que Philip Roth, Don DeLillo ou David Foster Wallace também fazem parte, há algo que salta à vista. O formigar de situações, referências, espectro temporal e espacial do pop à bula de medicamentos parecem encerrar em si um potencial cinematográfico que se quer libertar. O cinema nunca lhes deu hipótese, penso, por duas razões: uma, a própria limitação do cinema pré-CGI que obrigava a manter a exuberância visual numa tight leash; duas, a relação entre as partes e o todo deste estilo literário estilhaçam uma certa linearidade onde o cinema, sobretudo o americano, se sente mais à vontade e claro, se vende.

Paul Thomas Anderson decidiu adaptar Inherent Vice (Vício Intrínseco, 2014) [segunda adaptação na sua carreira depois de There Will Be Blood (Haverá Sangue, 2007)] não só por admiração mas também porque, tendo nascido nos anos 70, sabe bem da valente ressaca que a década proporcionou com Nixon e os efeitos do Vietname, entalada entre o amor livre e psicadélico do futuro maravilha que os anos 60 prometiam e uma maior organização das teorias de conspiração da década de oitenta. Nessa ressaca, o mistério de The Master dá lugar à libertação de uma visão da contracultura dos seventies reprimida por uma plutocracia de conspirações de especuladores imobiliários e dentistas cocainados percorrida, "homericamente", pelo seu herói, o detective privado Doc-Dude-D. Quixote de sandálias, óculos escuros, afro e charro em riste, interpretado claro pela metamorfose ambulante, cãozinho que vai ser sempre buscar a bola ao realizador, Joaquin Phoenix.

Para arrumar com o assunto das clarezas-obscuridades diga-se que no que diz respeito a PTA este soube proteger-se, uma vez que a metáfora do "vício inerente" que Pynchon recolhe do direito marítimo (como a definição de uma falha inerente a um objecto e que justificaria a entropia das utopias liberais) não chegava para "fechar" a exuberância da maré de gags que vem dar à costa de Gordita Beach, a comunidade ficcional suburbana de L.A. onde tem lugar o colorido e neo-noir (sim, sem contradição) do "romance policial" de Pynchon. Ao invés Anderson, soube libertar o cinematismo do romance, puxando o seu filme para uma dimensão ambiental que parte da amenização do espírito raw dos road movies e faz juntar o mosaico sensorial de procura de Pynchon (Doc procura várias pessoas, entre as quais a ex-namorada, mas o filme não é sobre o encontro delas) àquilo que podia ser um romance de Raymond Chandler com uma demão hippie e outra paranóica.

Mas o ambiente de Inherent Vice não é aberto, é fechado. Paul Thomas Anderson decidiu filmar tudo em planos apertados atravancando em trailer parks, esconsos apartamentos de praia, bordeis de paredes de cetim roxo e hospitais psiquiátricos no deserto. E esse tudo é um festim de bizarrias produzidas pelo "triângulo das bermudas" da realidade vista pelos olhos de Pynchon (que Anderson segue fielmente) de onde tudo entra e sai. Desse mundo aparentemente "aberto" que Anderson filmou de ângulo próximo, deixando parte da utopia fora de campo, fazem parte uma apreciável colecção de cromos todos entre a paranóia animada e o suave desespero. Já falei de Doc, espécie de actualização existencial de The Dude laid-back de The Big Lebowski (O Grande Lebowski, 1998) que procura Shasta Fay Hepworth, sua ex-namorada, desaparecida entretanto depois de o contactar para prevenir que a mulher do seu amante, um magnata agente imobiliário, o aferrolhe num asilo, afogado entre o ácido da corrupção e o aguinha purificadora da generosidade. Doc é secundado pelo seu advogado "Sancho" ou Sauncho Smilax (Benicio Del Toro) que surge nas situações mais aleatórias, ora para comer um pedacinho de raia ora para o tentar libertar da polícia. Nesta, reina Christian F. "Bigfoot" Bjornsen, o polícia da "renascença", com penteado à escovinha, doppelganger de Doc e actor de televisão em part time, que chupa insistentemente bananas cobertas de chocolate e grita a plenos pulmões com empregados japoneses por mais panquecas. Entretanto, como se tudo não estivesse já bem animado, ainda temos um negro pertencente a uma irmandade ariana, um barco chamado Golden Fang que é também um cartel de droga mascarado de corporação ortodêntica, um músico surfista desaparecido que se pensa estar morto mas que pode bem ser um informador da polícia e/ou mais um dos membros da festa de rock e marijuana encenada por PTA como a "última ceia".

Neste mosaico de excessos e paranóia global, a brisa de marijuana que se vaporiza desde Gordita Beach não é tanto o detalhe activo e simbólico da contra-cultura que podia servir o excesso perceptivo e paranóia estilística como Terry Gilliam faria, por exemplo. Ele é antes o véu de um smog existencial (cuja banda sonora coordenada por Jonny Greenwood dos Radiohead prolonga, contornando os beats and hits dos seventies) e que transforma o ocasional detalhe felliniano, ou o divertimento à la Tarantino (a cena do bordel podia ser dele), num todo simultaneamente mais nostálgico e, porque não, mesmo romântico. Paul T. Anderson não está muito preocupado em que tudo faça sentido, nem em ser exaustivo em relação à inesgotável capacidade de detalhe da mente de Pynchon. De onde vem a incoerência? Do fumo das ganzas ou da própria incongruência da realidade? Ninguém sabe. Nem ele quer saber. Interessa-lhe mais compor um ambiente de conspiração, de vaga indistinção entre os manipuladores e os manipulados, e nesse nevoeiro de causalidade, deixar os seus actores dar uma valente passa e fazer, descontraidamente, o seu melhor jazz gestual e gutural.

Desta feita, Inherent Vice, aos olhos de P.T. Anderson, nada mais é do que um divertimento, uma tapeçaria cómico-tóxica, um  slapstick-melancólico, onde nada faz muito sentido mas que no final toda a gente percebe. E quem já fumou uma ganza sabe que tudo aquilo que fizemos mas não nos lembramos, que tudo aquilo que lembramos mas não fizemos, acaba por fazer toda a lógica. É esse o efeito secundário que o filme provoca no espectador.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Esta noite, cerca das 3:21 da manhã...

Esta noite, cerca das 3:21 da manhã, levantei-me para ver se o cão bébé tinha cagado no resguardo, dormia na pantufa ou estava no igloo que a "mãe" lhe comprou para se sentir seguro. Mal abri os olhos e vi a caganita no sítio dela não é que me veio à memória este post que tinha lido umas horas antes? Voltei ao leito e tive uma pequena insónia de cerca de 3 minutos e trinta segundos. Nele pensei que sabia exactamente aquilo de que o Pedro Mexia falava, embora nunca tenha sido avisado em sonhos ou insónias. É no meio da noite, num breve acordar, entre a primeira e a segunda parte do sono que chegam esses malogrados interregnos de lancinante lucidez. Tudo é uma aflição pois ganhamos a distância de terceiros e nela sabemos exactamente tudo o tentámos que a nossa cabeça não soubesse. "Será que?, Devia ter? Porque é que não? Quando é que?" A esta torrente de graníticas verdades segue-se, a custo, um sono de veludo e na manhã seguinte, recomeça...

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Mas afinal era brucelose (e depois voou para longe o pássaro da ilusão)

"Quando as pessoas pensam que são inteligentes - mesmo quando são inteligentes - não há nada que os outros possam dizer-lhes para lhes permitir ver as coisas correctamente, e o problema de Asbury era que, para além de ser inteligente, possuía um temperamento artístico."-

"O Calafrio Permanente"- Flannery O'Connor

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Handyman


Traduzir handyman por "pau para toda a obra" já é muito bom, então se o filme for The Ladies Man de Jerry Lewis é pouco menos que espectacular.
Foi hoje à tarde na Gulbenkian.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

"Embora se especule sobre a possibilidade de Flaubert ter passado grande parte do tempo a dormir ou a masturbar-se (ele próprio gostava de comparar frases a ejaculações). O labor excruciante do estilista parece muitas vezes ser uma fachada para encobrir um bloqueio. Era o caso do fabuloso escritor americano J. F. Powers, por exemplo, sobre quem Sean O' Faolain gracejou, à maneira de Wilde, que "perdia a manhã a introduzir uma vírgula e a tarde a ponderar a hipótese de a substituir por um ponto e vírgula". Mais frequente, creio, é tipo de rotina de escrita atribuída ao escritor inglês A.C. Benson - não fazer nada de manhã e depois passar a tarde a descrever o que tinha feito de manhã." 

 (James Wood -"a mecânica da ficção")

Land of the Pharaohs



Se há filme que podia muito bem ser levado para uma segunda vida para se ver em cinemascope celestial, com um olho entalado na cobra que vem sorrateira ao som da música da flauta do filho do faraó para o matar e o outro fixando a bonomia do arquitecto Vashtar que tanto me faz pensar n'Ele, ele é Land of the Pharaohs de Howard Hawks. Ontem, na inocente presunção de que ainda me faltam uns anos para a ascensão ao trono de nuvens e home video, só conseguia pensar em três coisas:

uma. nos quadros imensos de trabalhadores devotos a construir o túmulo do Faraó, desbotados na paisagem, movendo-se como montinhos de tinta na mais calma e desordenada pintura de Hawks. Um homem a filmar manadas de gentes que avança com peso, suor, meias certezas, a caminho de uma criação colectiva. As pirâmides evocam por certo esse paradoxo do quebra cabeças de índole religiosa e política, do colectivo como ilustre tapeçaria da vontade do único todo poderoso. 

dois. naquele diálogo em que a Joan Collins, princesa e embaixadora da província de Chipre, vem ver o Faraó. Ela diz-lhe que não trouxe os tributos que este exigiu do seu povo, que se trouxe a ela própria em vez disso. Quando aquele lhe pergunta a razão de tal acto ela diz-lhe que o seu povo é pobre e que se pagassem os tributos alguns morreriam de fome. Nesse momento só conseguia pensar em Varoufakis (cuja careca dizem ser bem sexy) e na posição em que se encontra  actualmente o paryido do Syriza. É preciso escolher, diz a princesa Nellifer, diz o povo, e é o poder que deve subjugar-se a uma escolha. 

três. o mecanismo inviolável da tumba do Faraó. Os blocos de pedra a fecharem-se ante a areia que escorre é das metáforas mais graníticas para um final de filme que vi até hoje. A circulação das imagens, o tempo a passar, ambos esgotam-se como essa areia que escoa, deixando os significados, as emoções, as personagens fossilizadas, escondidas do presente. Ver Land of the Pharaohs e deixar-se ressuscitar por ele exige a tarefa de escavar essa tumba labiríntica e "invisível" que o própria História de Cinema, com a mão astuta de Hawks, encerraram.

Land of the Pharaohs é, parece-me, um filme que se vê a partir de uma outra vida, que brilha como ouro no centro de uma pirâmide. É essa a imagem que lhe é mais fiel e que o torna mais valioso do que qualquer tesouro do Faraó Khufu.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

L’Argent

Oh argent, dieu visible, qu’est-ce que tu ne nous ferais pas faire !


Antes de tudo o mais, preâmbulo. E faço-o com uma dessas sentenças à boa moda antiga: não aceito que ninguém me diga que L’Argent não tem uma das mais geniais cenas de assassinato do mundo. Uma não, duas. Mas sobre a segunda, a do machado dostoievskiano no menos dostoievskiano dos filmes de Bresson, já lá iremos mais para o final deste desabafo. Mas dizia, Yvon, o herói – mas haverá cá desses a habitar a solene carpintaria bressioniana? – Yvon, o homem inocente, sai da prisão onde teve três anos por ter sido condenado injustamente de contrafacção. Plano dele a caminhar na rua com a sua declaração de saída. Plano escuro dele em amorce a bater à porta daquilo que no quadro seguinte se nos revela ser, através de uma placa, um hotel- o Hotel Moderne. A porta abre-se e uma senhora deixa Yvon passar para a recepção onde está um homem. Plano escuro de Yvon que desce uma escada com uma mão manchada de vermelho que, juro, juro, só se repara dois planos à frente quando genialmente a água da torneira que se escapa pelo ralo (do qual sabemos tanto haveria a dizer) passa de incolor a rosa. Há qualquer coisa de indecente em amar um crime no cinema mas esta arte da depuração e da cor merece-me um suspiro.

Depuração sempre foi a palavra de Bresson, ou uma delas. Pode dizer-se, e diz-se, que no seu filme final Bresson atinge uma espécie de pureza material, um zénite da massa bruta com uma forte dose de ironia, uma vez que o projecto foi adaptar um conto de Tolstoy e mostrar as “canalizações” maléficas do sistema da opulência: o capitalismo. Mostrar o tanto ou os males do tanto, com tão pouco, eis o desafio de Bresson e daqueles que muitos consideram ser o seu filme marxista, ou como se conta a história de uma nota de 500 francos. Pegar num centro não humano e fazer o mundo girar já o francês o tinha feito com Au Hasard Balthazar (Peregrinação Exemplar, 1966), um estudo asinino sobre a santidade, que também tem em comum com este filme o facto de expor um estado do mundo por via da circulação. Se aqui a nota circula de mão em mão trazendo desastres aos seus possuidores, acolá era o burrinho que muda de dono ao som da sonata nº 20 para piano de Schubert.

A questão da circulação, que não é menos cara ao capitalismo do que à montagem, introduz em L’Argent a questão da forma como ambos – o sistema político económico e o cinema de Bresson – constroem esse caminho, essa “linha de montagem” e onde querem chegar. A falsidade da nota, inicialmente nas mãos do jovem adolescente a quem os pais não deram mais do que a mesada e que tinha contas para pagar na escola, apenas demonstra o vazio da troca simbólica que a circulação do capital encerra. Sob esse vazio simbólico, que se opõe à troca directa na prisão, carne por dinheiro em mãos debaixo na mesa na cantina, há uma acumulação que se põe em andamento e que faz passar da inocência à culpa, do bem ao mal.

Yvon é o “cristão-ateu” (como Bresson se descrevia ante a religião) agente do “deus vísivel” do dinheiro. E aqui entra a velha querela do que é bressoniano ou deixa de ser e da transcendência das pequenas revoluções versus a imanência dos gestos e lugares quaisquer. Não há como negar que L’argent é um pequeno filme de objectos: a mota, as pistolas, os envelopes, o cofre, as chaves, a máquina fotográfica. E essas coisas têm mãos à volta, pernas, pés e tudo isso, envolto, espaços inertes, o clichet do hotel, a mesa da esplanada, os corredores da prisão, o balcão do bar. Onde eu quero chegar com isto é aqui: Bresson quer contar como vai das mãos do adolescente com a nota falsa que lhe queima de inocência na posse às incandescentes mãos de Yvon que brande o machado nesse percorrer mudo da casa, na qual só se ouve o cão a latir e a despedaçar-nos a certeza de uma salvação, no assassinato-spoiler final do filme. Esse “drôle de chemin”, para usar a expressão de outra drama real da manufactura (Pickpocket, 1959), é feito de pontilhismo materialista, a circulação do seu “capital” são os gestos dos corpos, a música do quotidiano (ouçam a malga dele a arrastar no chão da prisão, o alarme do cofre, o Bach do pai alcoólico da mulher de cabelos grisalhos seguido do estilhaço do copo quando cai do piano) as zonas e tempos de desaceleração dramáticas das cenas, a neutralidade das emoções.

Quando chegamos à tal mão final, o pontilhado já se fez grande e L’Argent é um filme que descreve as roldanas de uma engrenagem que parece encaminhar os seus sujeitos para a perdição. Dá vontade de dizer que podíamos descrever o percurso do filme com o plano em que vemos a porta da prisão pelo qual passa Yvon. Mais do que uma vez lá está o sinal na porta que diz “poussez”. Podíamos pensar que é tudo uma questão de ir empurrando as portas, obedecendo a lógica pull or push para ir progredindo. Mas há um senão. Estamos à porta de uma prisão e ninguém passa sem pôr a chave na fechadura para a abrir previamente. Admito que isto está a resvalar para o abismo do conceptualismo mas tento pôr ordem. A livre circulação do capital, a nota da mão à mão, da inocência ao crime, do lado de cá da prisão ou lado de lá (é maravilhoso que Bresson filme as crianças que visitam os seus parentes presos, num corredor onde estas é que parece estarem presas) é esse sistema fácil do push and pull. Mas como Bresson descrevia numa entrevista sobre o filme, a arte onde tudo está organizado não lhe interessa e o seu cinema funciona com “sistema de chaves”, como sistema de pequenos inícios e revelações que querem dar passagem de um momento ao outro mesmo que, como é o caso aqui, seja para explicar a “organização absurda do mundo e a impossibilidade de mudança.”
 
No final Yvon que matou os donos do hotel e a família da senhora de cabelos grisalhos entrega-se num bar à autoridades. No plano final os espectadores mirones olham a saída dele escoltado pela polícia, seguindo-se um cut to black. Chegados aqui aconselho a ler, senão tiverem mais nada para fazer, e se não se importarem de ler em pdf, o capítulo final de um livro chamado “Neither God Nor Master: Robert Bresson and Radical Politics”. Neste, o seu autor Brian Price, entretém-se a fazer as ligações políticas entre L’Argent e a semi-desilusão da política de François Miterrand em França. Sobre o fim a questão levanta-se, até porque Bresson se escusou a filmar a segunda parte do conto “Faux billet”, onde Tolstoy talhava uma espectacular redenção de todos os corrompidos pelo materialismo, o que significava aquele plano final sem redenção. Este negro final é o negro do pessimismo expulsando-se a cura para a infecção capitalista, do vírus que corrompe de pessoa para pessoa, para um fora de campo do futuro.

É a partir desse fora-de-campo para o qual L’argent nos remete, o local a partir do qual o vemos hoje. É nesse fora de campo, nesse pós filme, em que já não há linguagem, que ainda estendemos a mão para a nota. Ver hoje a crise financeira especulativa ainda na mesma democracia da escuridão, habitada pelo mesmo impotente mirone espectador como o prolongamento da obra de Bresson é uma hipótese tão assustadora quão inspiradora. Talvez valha a pena suster o olhar na materialidade despida do filme como uma outra tentativa do projecto da circulação das coisas, um lado B fantasmático da transacção capitalista. Proposta assombrada, proposta assombrosa a de Robert Bresson.

E no fim de tudo mais, epílogo. Aconselho ainda ver ou rever o ciclo que a Cinemateca Portuguesa dedica a partir de hoje à obra do cineasta do qual Godard disse que era o cinema francês tanto quanto Dostoevsky era o romance russo ou Mozart a música alemã. Há poucas coisas tão boas na vida do que ver assim de enfiada os Bressons todos. E começar o ciclo pelo seu último, o seu fim a ser o nosso início hoje, é um gesto imponente que a programação não deixou passar em claro e que a mim me merece um sorriso e outro suspiro.


terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

A good filmmaker/writer is hard to find


Passei o dia de ontem a rever L'argent, o último Bresson, e acabei de ler The Violent Bear It Away da Flannery O' Connor. Sobre o filme que adapta um conto do Tolstoy fala-se muito da transição do cineasta em final de vida (ou melhor, de carreira pois ainda viveu quase mais vinte anos, até aos 98) de uma visão dostoiévskiana de uma vida terrena como preparação para um depois, para um olhar de socialismo terreno e organizado cara ao autor de Guerra e Paz. A minha vida pequenina torna-me antes susceptível a reparar como o método de Bresson, pelo alinhavar sucessivo de pequenos indícios, contém em si uma dimensão de revelação que O'Connor esculpiu nos seus romances. O surgimento de algo por vir que faz queimar todo o presente sob a forma de uma sarça ardente ou de uma súbita cegueira. Em The Violent a cegueira de Motes do Wise Blood dá lugar à surdez do professor. Para Yvon, o pequeno funcionário de uma companhia petrolífera tornado assassino por uma injustiça envolvendo uma nota falsa, os crimes são surpreendentes apenas para quem não observar os sinais (religiosos, da circulação monetária e dos valores morais). Mas ante um olhar atento esses crimes são um resultado lógico e intransigente. Tão intransigentes quanto a maldade de Misfit do conto A Good Man Is Hard to Find ou a certeza teimosa do jovem Tarwater. É exagero dizer que Bresson se baptiza nas águas sacrílegas da prosa de O'Connor mas ambos partilham essa distância que vai da evidência das acções duras de quem está (ou fica) predestinado e o súbito vagar da contingência.

(Por exemplo, não me agrada que a personagem do professor em The Violent fique "presa" na segunda parte do livro e não se escape para o clímax. Fico um tanto desiludido que tudo não tenha passado de uma bebedeira de um "falso violento". Mas nunca saberei se o que sinto é ele mesmo fruto da contingência ou da predestinação.)

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

O borrão

"A 24 de Março de 1941, Virginia Woolf encheu os bolsos com pedras e afogou-se no rio Ouse. O seu marido, Leonard Woolf, era obsessivamente meticuloso, e mantivera um diário durante toda a sua vida adulta, no qual registava as suas refeições diárias e a quilometragem do seu automóvel. Aparentemente nada se alterou no dia em que a sua mulher cometeu suicídio: ele anotou a quilometragem do seu automóvel. Mas, escreve a sua biógrafa, Victoria Glendinning, a página referente a esse dia está obscurecida por um borrão, uma "mancha castanho-amarelada, que alguém tentou esfregar ou limpar. Pode ser chá, café ou uma lágrima. O borrão é o único em todos os seus anos de imaculada escrita diária."  James Wood (a mecânica da ficção, p. 78)

domingo, 8 de fevereiro de 2015

F.E.A.R.

Nightcrawler (2014) de Dan Gilroy

Louis Bloom: "Do you know what FEAR stands for? FEAR is False Evidence Appearing Real."

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Conversas à pala #14

Nesta nova edição das Conversas à pala eu e o Luís Mendonça falámos com André Dias sobre o tema da cinefilia e lançámos em Portugal a CAMIRA - Cinema and Moving Image Research Assembly, com a presença via skype do seu vice-presidente Paul Grant.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Da vida nua à potência destituinte: o projecto 'Homo sacer' de Giorgio Agamben

Agamben2015 web


 DA VIDA NUA À POTÊNCIA DESTITUINTE: O PROJECTO ‘HOMO SACER’ DE GIORGIO AGAMBEN
21 de Fevereiro | 10h/18h | Salão do Atelier Re.al

Com António Guerreiro, José Tolentino Mendonça, Alexandre Franco de Sá, Ana Isabel Cardoso Figueiredo, António Bento, António Caselas, André Dias, Luís Carneiro, Luhuna Carvalho, Bruno Peixe Dias, Mariana Pinho, Ricardo Noronha, Bruno Lamas, José Caselas, João Pedro Cachopo, Nuno Leão, João Duarte e Unipop.


Isto promete. Ainda faltam uns dias mas é para depois não terem desculpa.

Ainda a adição e claro ainda mais ratinhos

Mais um artigo sobre o que nos torna viciados às coisas. Os movimentos de polegar do hi-phone, o desaparecimento das conversas cara a cara, os miúdos que morrem de exaustão a jogar jogos de computador, a adição à internet, renovam o interesse pela mecânica da dependência algo deixado na sombra pela acção das drogas químicas. Com informações discutíveis (dá-se o exemplo de Portugal como um país que descriminalizou* todas as drogas; mas quando ocorreu esse milagre?) Johann Hari fala da desconexão como o verdadeiro factor de dependência.

He says we should stop talking about 'addiction' altogether, and instead call it 'bonding'. A heroin addict has bonded with heroin because she couldn't bond as fully with anything else. 

* Entretanto um amigo disse-me, e bem, que o artigo refere a descriminalização do CONSUMO de drogas. Desculpem lá o cérebro milkshake deste vosso escriba.


 

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

De que falamos quando falamos de Birdman?

"Envelhecer não é uma guerra. É um massacre". Citação de Everyman de Philip Roth lida aqui em mais um texto brilhante do Rogério Casanova apanhado agora a destempo. É este massacre que vemos no rosto das pessoas quando o corpo decai, tragédia amplificada pelo corpo do actor que multiplica por profissão os espelhos e promontórios em sua volta. Em 1924, Emil Jannings, atingido pelo tempo, foi despromovido no filme de Murnau, Der letzte Mann, de porteiro símbolo da fachada de um importante hotel ao anonimato das catacumbas das WC's. Essa "chute", o cinema filmou-a, sobretudo no caso dos actores, temperando a nostalgia com a incapacidade de lidar com o fim. Como ditadores de um país só seu recusando-se a renunciar ao poder, os actores em queda tornam-se cegos ao movimento descendente e reafirmam-se a todo o tempo "ready for their close up".
 
Birdman (2014) de Alejandro González Iñárritu
 
Nestes termos o filme de Iñárritu, Birdman, limita-se a imaginar, entre o super-realismo dos tiros muito explicadinho e o realismo mágico de asas demasiado soltas, esse dilema visto de uma outra escala geométrica. Se Jannings tinha o seu "céu" nas portas giratórias da fachada do hotel, Michael Keaton teve o seu céu no céu. A "superheroização" do cinema, aqui semi-desculpada por Roland Barthes que não se sabe em que filme entrou, apenas ironiza o problema. Percebemos: maior é a decadência daquele que agora recorda os tempos de ouro em que era um super-homem. Mas contrariamente a Jannings que vê no backstage a perdição, Iñárritu quer fazer da cave (o teatro) um local de desesperado re-começo, invertendo as escalas. Entre os céus e as catacumbas vem o espaço da transição e da deambulação enfeitado da percussão constante de Antonio Sanchez na banda sonora que prepara os diálogos-rap da trilha de Keaton-Norton-Galifianakis-Watts, sobretudo estes.

Algures nesse caminho do viajante solitário em busca de um reviver do passado como presente há uma desordenação que chega no backstage do teatro como nos corredores de um hotel perdido nas montanhas (The Shining), como um espaço de crime em continuidade cometido contra a psyche (The Rope) em plena Time Square de cuecas. Se exteriormente vamos todos voltar a viver este ano com Michael Keaton o que já tínhamos vivido em 2009 com Mickey Rourke numa daquelas dobras de piscar o olho da história, o jogo das geometrias do passado e da passagem do tempo faz-se de forma inédita. Honestidade que acomoda as citações de Carver, Shakespeare, Flaubert, por aí fora, mesmo nos diálogos mais simplezinhos com a crítica maléfica e o actor salvífico. 
 
"Not ideas about the thing but the thing itself", a citação do início no espelho de Riggan não serve tanto expulsar as ideias que possamos ter em relação a Birdman mas mais para sublinhar que, ao contrário do discurso paternalista e multi-cultural de Babel por exemplo, há por aqui qualquer coisa de "in itself" além do super filme sobre a decadência ou da decadência de um super-herói.




segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Achas que sabes estudar?


Ontem pus-me a ler um daqueles artigos extensíssimos que o Público encomenda com o objectivo de fazer crescer aos seus leitores espessas sobrancelhas destinadas à pose reflexiva e ao franzir do sobrolho. Trata-se de um belo naco de prosa de um senhor chamado Brook Larmer que me diz agora o google é um grande jornalista correspondente no estrangeiro, especializado em assuntos chineses e que escreveu um livro chamado: “Operation Yao Ming: The Chinese Sports Empire, American Big Business, and the Making of an NBA Superstar”. Mas este texto, mais modesto, quer abordar a preparação dos mais de nove milhões de adolescentes chineses para o gaokao – o exame nacional de acesso à universidade  - e em especial, na escola de Maotanchang, uma pequena cidade na zona oriental da China. O objectivo é simples, mostrar ao olhar ocidental como em escala e em dificuldade estamos perante um grande épico de esforço militar onde as crianças começam as aulas às seis e tal da manhã e saem perto das onze, não têm telemóvel (a heresia!), estudam ininterruptamente, os professores recebem consoante o sucesso dos seus alunos e fotografias há que mostram os piquenos a estudar ligados a catéters de alimentação intravenosa. Entretanto, na Sic, a melhor televisão portuguesa não fosse a Tvi, exibe um dos maiores entretenimentos pós 25 de Abril que não envolvem sexo pago: o magazine “Achas que sabes dançar”.



Eis uma dessas boas ironias à antiga. Enquanto leio miúdos que tentam tudo por tudo para entrar na universidade e fugir do destino mais certeiro que consiste em apanhar pêssegos até à morte, eis-me a desviar o olhar para essoutro teste árduo. Aí, preâmbulos de homo sapiens, vulgo adolescentes, ensaiam coreografias onde vale tudo, da salsa à fractura de clavículas, passando pelo rap da loja dos chineses (daqueles que não entraram na universidade, entenda-se). Aí o objectivo é convencer a troika contratada para o certame, composta pelo penteado de Joaquín Cortés, os estertores de Rita Blanco e um emigrante português em França que deve ter entrado num teledisco.



Mas a tal ironia nem é o contraste de desafios entre o borbulhento oriental e o borbulhento ocidental. (Atenção que também há mães de filhos no programa da Sic, mais respeito). O gozo é que o artigo de Brook Larmer fala do excesso de rigidez de todo o processo de preparação, herdeiro das influências milenares do império e que deixa os alunos meio baralhados quando depois entram na universidade. Não sabem o que fazer ao tempo livre, não sabem como actuar em moldes não rígidos em que ninguém lhes dita ordens a todo o tempo pois estão habituados ao pé pesado da disciplina. Ou seja: “não sabem dançar”. Contrariamente, e ilustrando que a alegoria de sucesso da modernidade consiste no auto-movimento (na capacidade de pelo movimento, gerar mais movimento, preservando a espécie ou o capital) a dança representa para estes concorrentes do programa da Sic, estas pessoas escaladas pelo circulo transitivo e mediático, uma paradigma de luz e de movimento. Porque se trata de um movimento sem objecto, ou como dizia Marx em relação ao trabalho, “sans phrase”, cabia inserir no movimento dessa dança outra questão, a questão: achas que sabes estudar? Esta questão símbolo consiste em traçar-se a capacidade de procurar elementos de imobilidade, de “rigidez”, a partir do qual a mobilidade, a dança, esta dança, possa fazer sentido.



Não está em causa que as lágrimas do menino chinês que chumbou nos exames (e que terá de encontrar trabalho de construção, como o pai, nas reluzentes cidades costeiras da China) e as da menina rechonchuda que não é bonita ao ponto de poder dançar na ribalta da televisão são as mesmas. Em ambas estão em causa os valores da aprendizagem e do falhanço. Só que no primeiro o falhanço é mais duradouro já que a sociedade o afasta para a margem. No segundo o falhanço implica um recomeço mais perto do centro da sociedade, isto apesar destes programas possuírem o cunho da tragédia na medida em que não reflectem a abjecção das pessoas mas criam-na, domingo a domingo.