sábado, 28 de fevereiro de 2015
sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015
O Bom Aluno
"Em 1992, numa entrevista a um canal de televisão
grego, o filósofo e psicanalista francês Félix Guattari incitava os gregos a
recusarem as regras que fazem da política europeia um teatro de sombras
semelhante ao que a lei edipiana faz na família: “A Grécia é o mau aluno da
Europa. É essa a sua qualidade. Felizmente que há maus alunos, como a Grécia,
que trazem a complexidade. Que trazem uma recusa de uma certa normalização
germano-francesa. Por isso, continuem a ser maus alunos e continuaremos bons
amigos.” Em Portugal, nessa altura, já estávamos a ser ungidos pela metáfora do
bom aluno e ainda hoje transportamos o brilho intenso e o contentamento sem
reserva que a metáfora irradia. O que é, neste caso, um bom aluno? O bom aluno
caracteriza-se por um determinado comportamento, por um programa de acção, mas
é também aquele que interiorizou convictamente uma moral, ao ponto de política
e moral serem para ele a mesma coisa. A dívida, como sabemos muito bem, segrega
uma moral própria. Um breve exercício genealógico ajuda a perceber porquê. Actualmente,
já não é preciso ter lido a Genealogia
da Moral, de Nietzsche, para saber que o conceito moral de culpa
remonta ao conceito material de dívida, que, por isso, se diz, em alemão,
exactamente com a mesma palavra — Schuld.
A figura do “homem endividado”, que o sociólogo italiano Maurizio Lazzarato
definiu como o representante por excelência da condição neoliberal, é afinal, a
figura típica de uma economia da salvação, como nos lembrou Walter Benjamin num
célebre fragmento de 1921 sobre O
Capitalismo como Religião, onde define o capitalismo como uma
religião sem dogma, caracterizada pela celebração de um culto sem tréguas, para
o qual não existem dias feriados. “Este culto”, diz Benjamin, “é gerador de
culpa” (ou de dívida, já que a palavra verschuldend
significa as duas coisas). E acrescenta: “O capitalismo, com toda a
probabilidade, é o primeiro caso de um culto que não redime o pecado, mas gera
culpa” (isto é, dívida). Uma culpa que não pode ser expiada — e essa é a
condição paradoxal da religião capitalista — mas tornada universal. O bom aluno
é aquele que interiorizou plenamente a moral da culpa e sabe que deve
comportar-se como um ser em débito. Haverá algum momento em que a culpa vai ser
expiada, isto é, em que o débito vai ser saldado? Evidentemente que não. Por
isso é que se criou a figura da “dívida eterna” ou infinita. Por ela, o homem
endividado interiorizou para sempre a dívida e é isso — e não que a pague de
uma vez por todas — que o credor lhe exige. Comentando Nietzsche, escreveu
Deleuze: “A dívida torna-se a relação de um devedor que nunca acabará de pagar
e de um credor que nunca acabará de esgotar os interesses da dívida.” O
infinito que o cristianismo introduziu na religião, reinventa-o o capitalismo
ao nível económico, num plano imanente. Para se tornar um bom aluno, como lhe é
exigido para continuar a dar-lhe crédito, a Grécia não precisa de pagar a sua
dívida — que é infinita e eterna. Tem é de dar como garantia do fictício e
sempre diferido reembolso um conjunto de virtudes sociais e políticas que são a
carne e o sangue da moralidade a que está obrigada. Tem de sujeitar-se
eternamente ao performativo da promessa. Não é que as promessas paguem dívidas,
mas são um reconhecimentos e uma ritualização da culpa. Em suma: é preciso que
o modo de existência da Grécia, o seu ethos,
seja determinado pela culpa que todos os bons alunos interiorizaram e que os
faz arrastarem-se, de ombros descaídos e olhar baixo, sempre que está por perto
um supremo credor."
António Guerreiro
quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015
Não sabia que o Paul Schrader se tinha inspirado no Martin LaSalle do Bresson para criar o Travis Bickle do Taxi Driver. E soube-o pela voz melada do Marc Cousins no Story of Film. O interesse disto, mais do que o óbvio para os obcecados pela história das influências, é saber o "para além do bem e do mal" como técnica: não sei quantos minutos sem largar a personagem e o monólogo interior são os mecanismos da empatização com os "estranhos" ou com a bandidagem. Simples.
Não tenho muito jeito para estas coisas, mas gostava de deixar aqui um valente bem haja ao José António Abreu e ao Pedro Correia do Delito de Opinião que linkaram o meu blog e alguns humildes escritos aqui do estaminé.
quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015
Talho
Mais vil do que um bordel,
o talho rubrica a rua como uma afronta.
Sobre o dintel
uma cega cabeça de vaca
preside ao conciliábulo
de carne berrante e mármores finais
com a majestade remota de um ídolo.
Jorge Luís Borges - "Fervor de Buenos Aires"
terça-feira, 24 de fevereiro de 2015
O comício dos Óscares e a culpa católica
Numa altura em que passarem já mais de 24 horas do nefasto efeito dos
Óscares encontro-me ainda a recuperar de uma crescente culpa católica
que se apodera de mim de ano para ano. "Lá foste tu pecar novamente este
ano... Então o que é que eu te disse no ano passado?". Isto era uma vozinha interior a falar. Então não havia solinho ou chuvinha da boa, plantas a respirar e o
sorriso da padeira que deixaste escapar na manhã seguinte para veres
este ano outra vez a "cerimónia"? Embora cinéfilo, o post-óscares é cada
vez mais isto: a culpa do adolescente depois da masturbação temendo que
lhe cresçam pelos nas palma das mãos, a culpa do senhor de óculos
grossos apanhado a folhear a "Caras" no consultório do dermatologista.
Por esta altura ainda havia salame |
E
é cada vez mais da revista Caras que falamos. Aquela entrada musical à
La Faria com mais meios, entre o stage e o screen, não augurava nada de
bom. Depois aquilo passou-se numa lentidão excruciante, a desejarmos que
os números musicais fossem mais intervalos em que podíamos ver o chef
Hernâni a arquear as sobrancelhas ou um senhor a conduzir um automóvel
bem bom e inchado depois de lhe ter caído um viagra no depósito do gasóleo. Como nada se passou de realmente relevante durante o tempo da
cerimónia há que focar no politiquês que falou a política dos Óscares. No
trajecto que vai de Obama presidente, passando pelo prémio de melhor
filme o ano passado "para" Steve McQueen por 12 Years a Slave até à homossexualidade do host deste ano, Neil Patrich Harris, parece desenhar-se o padrão da máxima liberalidade na land of opportunities.
Todos
estamos de acordo que era desejável que isto não fosse notícia, que não
existissem padrões ainda a modelar as questões das minorias que ainda
mostram o fosso. Contudo, a questão deste ano, com todos os vencedores
que subiram ao palco a defender uma causa (sejam elas, o femininismo, a
igualdade racial, sexual, a luta contra a tecnologia, contra a
superheroização do cinema; Birdman é isto, no fundo) em jeito comício-passadeira-vermelha é que o gesto do activismo social banalizou-se ao estilo da miss
que deseja paz no mundo e tudo o resto de bom para todos. Não caio na
ingenuidade daqueles que acreditam que já não é necessário defender
certas causas. E a prova provada é que isto é ainda hoje em 2015 um
assunto. Compreendo ainda a posição dos que defendem que o palco dos
Óscares devia estar reservado à defesa exclusiva do cinema, embora isso
nunca tenham sido os Óscares. Eles nascem de uma outra preocupação de
visibilidade que se exacerba aqui na vociferação vazia da retórica
política. A questão, parece-me, tem muito que ver com a
banalização dos discursos de activismo ao ponto de duvidarmos da sua
eficácia. A questão da hipocrisia é um surplus evidente: todos sabemos que aquelas pessoas não são os estivadores do On The Waterfront, nem o Dolby Theatre um cais de Nova Iorque dos anos 50.
Com
isto em mente, as futuras edições adivinham-se ainda mais chatas com a
multiplicação das micro-causas individuais e micro-homenagens dentro da
homenagem aos seus que já é o propósito da coisa. Duvida-se é que
alguém que tenha ante si 30 segundos de púlpito com milhões de pessoas a
mirar não se visse tentado a fazer do seu sucesso um projecto "global" (Iñárritu
quis criar ali na hora uma "associação" pela defesa da imigração
mexicana e não só, com ele e Alfonso Cuarón como os dois sócios
fundadores) ou a falar como o Messias, regressado para junto dos seus
fiéis, sublinhando o que devem ter em atenção para os próximos tempos.
Aqui jogar-se-á cada vez mais o paradoxo da política na estética: é que
certamente nunca como nos próximos anos, os Óscares, ao politizarem-se
até aos dentes, se adivinharão tão inócuos no seu lastro. É que brincar à
política não é ser político.
Dito isto, e
tendo tido desilusões do tamanho de mamutes ao longo dos anos quanto aos
vencedores (não posso ouvir falar em Shakespeare sem, cheio de
contracções lombares, ficar na expectativa que a ele não se sigam as
palavras "in love"), este domingo tudo se passou sem grande problema.
Percebendo a conveniência da metáfora de Iñárritu a embelezar a pintura, e vivendo Iñárritu
como mais americano do que os americanos, fazendo um cinema mais
papista do que o papa, não desgostei de Birdman. Assim como não
desgostei do Hawkins de Redmayne em mais uma homenagem, desta vez no
subcapítulo dos nerds da ciência em versão coitadinhó-deficiente. Claro,
o melhor filme dos nomeados era o do Linklater que, sem fazer um grande
filme e onde o dispositivo temporal é o que inova (e nele o tempo que
desfigura ou reconfigura as pessoas) era o único que melhor fugia à
estética do condensado da clareza e sua ideias mais ou menos
pré-concebidas.
E é isto. Agora vou ali defender a causa daqueles
que têm fome ao almoço e devem cozinhar os seus próprios alimentos e,
para o ano, pecarei novamente, na expectativa que a padeira me volte a
perdoar.
domingo, 22 de fevereiro de 2015
Um santo do( )mingo
Ia à procura de mais informações sobre a câmara de Les Blank em Poto e Cabengo, de Jean-Pierre Gorin,
que muito me fez transpirar por dentro, mas como encontrei isto para vos
animar o domingo, deixo quaisquer afirmações lamecho-simbólicas
para outro dia.
quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015
"Lately, when Sabbath suckled at Drenka's uberous breasts—uberous, the root word of exuberant, which is itself ex plus uberare,
to be fruitful, to overflow like Juno lying prone in Tintoretto's
painting where the Milky Way is coming out of her tit—suckled with an
unrelenting frenzy that caused Drenka to roll her head ecstatically back
and to groan (as Juno herself may have once groaned), ‘I feel it deep
down in my cunt,' he was pierced by the sharpest of longings for his
late little mother."
Philip Roth - Sabbath's Theater
quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015
Inherent Vice
Se bem se lembram, se bem me lembro, havia um mecanismo que fazia com
que Freddie Quell, o “zombie” de olheiras até ao queixo vindo do
pós-guerra que Joaquin Phoenix era em The Master (O
Mentor, 2012), desbloqueasse os traumas interiores. Lancaster Dodd
(Philip Seymour Hoffman), o líder da seita chamada “The Cause”, era quem
fazia as perguntas de fazer bater com a cabeça na parede, e o tête à tête
o que se definia como “processing”. Este processamento era o que no
filme mais se aproximava de um destilar de razões emocionais-racionais
para justificar a violência, o álcool, as errâncias de Freedie. Pode
dizer-se que esse é o mecanismo (falhado) que tentava tornar límpidas as
águas turvas e insondáveis em que se movia o filme de Paul Thomas
Anderson (PTA). Mas precisamente porque esta era uma terapia falhada,
quem vê The Master fica sempre às aranhas (ou aos
sapos) e isso tem o condão de lançar a carreira do cineasta num abismo
que alguns vão desculpando como mero virtuosismo técnico e outros
venerando como ascética depuração autoral.
Independentemente da barricada onde nos queiramos refastelar parece claro que o rendilhado neo-barroco do universo romanesco de Thomas Pynchon oferece a PTA uma hipótese de prolongar esse mistério. Não é por acaso que esta é apenas a primeira adaptação do célebre escritor. Não sendo um especialista no universo pós-moderno de que Philip Roth, Don DeLillo ou David Foster Wallace também fazem parte, há algo que salta à vista. O formigar de situações, referências, espectro temporal e espacial do pop à bula de medicamentos parecem encerrar em si um potencial cinematográfico que se quer libertar. O cinema nunca lhes deu hipótese, penso, por duas razões: uma, a própria limitação do cinema pré-CGI que obrigava a manter a exuberância visual numa tight leash; duas, a relação entre as partes e o todo deste estilo literário estilhaçam uma certa linearidade onde o cinema, sobretudo o americano, se sente mais à vontade e claro, se vende.
Paul Thomas Anderson decidiu adaptar Inherent Vice (Vício Intrínseco, 2014) [segunda adaptação na sua carreira depois de There Will Be Blood (Haverá Sangue, 2007)] não só por admiração mas também porque, tendo nascido nos anos 70, sabe bem da valente ressaca que a década proporcionou com Nixon e os efeitos do Vietname, entalada entre o amor livre e psicadélico do futuro maravilha que os anos 60 prometiam e uma maior organização das teorias de conspiração da década de oitenta. Nessa ressaca, o mistério de The Master dá lugar à libertação de uma visão da contracultura dos seventies reprimida por uma plutocracia de conspirações de especuladores imobiliários e dentistas cocainados percorrida, "homericamente", pelo seu herói, o detective privado Doc-Dude-D. Quixote de sandálias, óculos escuros, afro e charro em riste, interpretado claro pela metamorfose ambulante, cãozinho que vai ser sempre buscar a bola ao realizador, Joaquin Phoenix.
Para arrumar com o assunto das clarezas-obscuridades diga-se que no que diz respeito a PTA este soube proteger-se, uma vez que a metáfora do "vício inerente" que Pynchon recolhe do direito marítimo (como a definição de uma falha inerente a um objecto e que justificaria a entropia das utopias liberais) não chegava para "fechar" a exuberância da maré de gags que vem dar à costa de Gordita Beach, a comunidade ficcional suburbana de L.A. onde tem lugar o colorido e neo-noir (sim, sem contradição) do "romance policial" de Pynchon. Ao invés Anderson, soube libertar o cinematismo do romance, puxando o seu filme para uma dimensão ambiental que parte da amenização do espírito raw dos road movies e faz juntar o mosaico sensorial de procura de Pynchon (Doc procura várias pessoas, entre as quais a ex-namorada, mas o filme não é sobre o encontro delas) àquilo que podia ser um romance de Raymond Chandler com uma demão hippie e outra paranóica.
Mas o ambiente de Inherent Vice não é aberto, é fechado. Paul Thomas Anderson decidiu filmar tudo em planos apertados atravancando em trailer parks, esconsos apartamentos de praia, bordeis de paredes de cetim roxo e hospitais psiquiátricos no deserto. E esse tudo é um festim de bizarrias produzidas pelo "triângulo das bermudas" da realidade vista pelos olhos de Pynchon (que Anderson segue fielmente) de onde tudo entra e sai. Desse mundo aparentemente "aberto" que Anderson filmou de ângulo próximo, deixando parte da utopia fora de campo, fazem parte uma apreciável colecção de cromos todos entre a paranóia animada e o suave desespero. Já falei de Doc, espécie de actualização existencial de The Dude laid-back de The Big Lebowski (O Grande Lebowski, 1998) que procura Shasta Fay Hepworth, sua ex-namorada, desaparecida entretanto depois de o contactar para prevenir que a mulher do seu amante, um magnata agente imobiliário, o aferrolhe num asilo, afogado entre o ácido da corrupção e o aguinha purificadora da generosidade. Doc é secundado pelo seu advogado "Sancho" ou Sauncho Smilax (Benicio Del Toro) que surge nas situações mais aleatórias, ora para comer um pedacinho de raia ora para o tentar libertar da polícia. Nesta, reina Christian F. "Bigfoot" Bjornsen, o polícia da "renascença", com penteado à escovinha, doppelganger de Doc e actor de televisão em part time, que chupa insistentemente bananas cobertas de chocolate e grita a plenos pulmões com empregados japoneses por mais panquecas. Entretanto, como se tudo não estivesse já bem animado, ainda temos um negro pertencente a uma irmandade ariana, um barco chamado Golden Fang que é também um cartel de droga mascarado de corporação ortodêntica, um músico surfista desaparecido que se pensa estar morto mas que pode bem ser um informador da polícia e/ou mais um dos membros da festa de rock e marijuana encenada por PTA como a "última ceia".
Neste mosaico de excessos e paranóia global, a brisa de marijuana que se vaporiza desde Gordita Beach não é tanto o detalhe activo e simbólico da contra-cultura que podia servir o excesso perceptivo e paranóia estilística como Terry Gilliam faria, por exemplo. Ele é antes o véu de um smog existencial (cuja banda sonora coordenada por Jonny Greenwood dos Radiohead prolonga, contornando os beats and hits dos seventies) e que transforma o ocasional detalhe felliniano, ou o divertimento à la Tarantino (a cena do bordel podia ser dele), num todo simultaneamente mais nostálgico e, porque não, mesmo romântico. Paul T. Anderson não está muito preocupado em que tudo faça sentido, nem em ser exaustivo em relação à inesgotável capacidade de detalhe da mente de Pynchon. De onde vem a incoerência? Do fumo das ganzas ou da própria incongruência da realidade? Ninguém sabe. Nem ele quer saber. Interessa-lhe mais compor um ambiente de conspiração, de vaga indistinção entre os manipuladores e os manipulados, e nesse nevoeiro de causalidade, deixar os seus actores dar uma valente passa e fazer, descontraidamente, o seu melhor jazz gestual e gutural.
Desta feita, Inherent Vice, aos olhos de P.T. Anderson, nada mais é do que um divertimento, uma tapeçaria cómico-tóxica, um slapstick-melancólico, onde nada faz muito sentido mas que no final toda a gente percebe. E quem já fumou uma ganza sabe que tudo aquilo que fizemos mas não nos lembramos, que tudo aquilo que lembramos mas não fizemos, acaba por fazer toda a lógica. É esse o efeito secundário que o filme provoca no espectador.
Independentemente da barricada onde nos queiramos refastelar parece claro que o rendilhado neo-barroco do universo romanesco de Thomas Pynchon oferece a PTA uma hipótese de prolongar esse mistério. Não é por acaso que esta é apenas a primeira adaptação do célebre escritor. Não sendo um especialista no universo pós-moderno de que Philip Roth, Don DeLillo ou David Foster Wallace também fazem parte, há algo que salta à vista. O formigar de situações, referências, espectro temporal e espacial do pop à bula de medicamentos parecem encerrar em si um potencial cinematográfico que se quer libertar. O cinema nunca lhes deu hipótese, penso, por duas razões: uma, a própria limitação do cinema pré-CGI que obrigava a manter a exuberância visual numa tight leash; duas, a relação entre as partes e o todo deste estilo literário estilhaçam uma certa linearidade onde o cinema, sobretudo o americano, se sente mais à vontade e claro, se vende.
Paul Thomas Anderson decidiu adaptar Inherent Vice (Vício Intrínseco, 2014) [segunda adaptação na sua carreira depois de There Will Be Blood (Haverá Sangue, 2007)] não só por admiração mas também porque, tendo nascido nos anos 70, sabe bem da valente ressaca que a década proporcionou com Nixon e os efeitos do Vietname, entalada entre o amor livre e psicadélico do futuro maravilha que os anos 60 prometiam e uma maior organização das teorias de conspiração da década de oitenta. Nessa ressaca, o mistério de The Master dá lugar à libertação de uma visão da contracultura dos seventies reprimida por uma plutocracia de conspirações de especuladores imobiliários e dentistas cocainados percorrida, "homericamente", pelo seu herói, o detective privado Doc-Dude-D. Quixote de sandálias, óculos escuros, afro e charro em riste, interpretado claro pela metamorfose ambulante, cãozinho que vai ser sempre buscar a bola ao realizador, Joaquin Phoenix.
Para arrumar com o assunto das clarezas-obscuridades diga-se que no que diz respeito a PTA este soube proteger-se, uma vez que a metáfora do "vício inerente" que Pynchon recolhe do direito marítimo (como a definição de uma falha inerente a um objecto e que justificaria a entropia das utopias liberais) não chegava para "fechar" a exuberância da maré de gags que vem dar à costa de Gordita Beach, a comunidade ficcional suburbana de L.A. onde tem lugar o colorido e neo-noir (sim, sem contradição) do "romance policial" de Pynchon. Ao invés Anderson, soube libertar o cinematismo do romance, puxando o seu filme para uma dimensão ambiental que parte da amenização do espírito raw dos road movies e faz juntar o mosaico sensorial de procura de Pynchon (Doc procura várias pessoas, entre as quais a ex-namorada, mas o filme não é sobre o encontro delas) àquilo que podia ser um romance de Raymond Chandler com uma demão hippie e outra paranóica.
Mas o ambiente de Inherent Vice não é aberto, é fechado. Paul Thomas Anderson decidiu filmar tudo em planos apertados atravancando em trailer parks, esconsos apartamentos de praia, bordeis de paredes de cetim roxo e hospitais psiquiátricos no deserto. E esse tudo é um festim de bizarrias produzidas pelo "triângulo das bermudas" da realidade vista pelos olhos de Pynchon (que Anderson segue fielmente) de onde tudo entra e sai. Desse mundo aparentemente "aberto" que Anderson filmou de ângulo próximo, deixando parte da utopia fora de campo, fazem parte uma apreciável colecção de cromos todos entre a paranóia animada e o suave desespero. Já falei de Doc, espécie de actualização existencial de The Dude laid-back de The Big Lebowski (O Grande Lebowski, 1998) que procura Shasta Fay Hepworth, sua ex-namorada, desaparecida entretanto depois de o contactar para prevenir que a mulher do seu amante, um magnata agente imobiliário, o aferrolhe num asilo, afogado entre o ácido da corrupção e o aguinha purificadora da generosidade. Doc é secundado pelo seu advogado "Sancho" ou Sauncho Smilax (Benicio Del Toro) que surge nas situações mais aleatórias, ora para comer um pedacinho de raia ora para o tentar libertar da polícia. Nesta, reina Christian F. "Bigfoot" Bjornsen, o polícia da "renascença", com penteado à escovinha, doppelganger de Doc e actor de televisão em part time, que chupa insistentemente bananas cobertas de chocolate e grita a plenos pulmões com empregados japoneses por mais panquecas. Entretanto, como se tudo não estivesse já bem animado, ainda temos um negro pertencente a uma irmandade ariana, um barco chamado Golden Fang que é também um cartel de droga mascarado de corporação ortodêntica, um músico surfista desaparecido que se pensa estar morto mas que pode bem ser um informador da polícia e/ou mais um dos membros da festa de rock e marijuana encenada por PTA como a "última ceia".
Neste mosaico de excessos e paranóia global, a brisa de marijuana que se vaporiza desde Gordita Beach não é tanto o detalhe activo e simbólico da contra-cultura que podia servir o excesso perceptivo e paranóia estilística como Terry Gilliam faria, por exemplo. Ele é antes o véu de um smog existencial (cuja banda sonora coordenada por Jonny Greenwood dos Radiohead prolonga, contornando os beats and hits dos seventies) e que transforma o ocasional detalhe felliniano, ou o divertimento à la Tarantino (a cena do bordel podia ser dele), num todo simultaneamente mais nostálgico e, porque não, mesmo romântico. Paul T. Anderson não está muito preocupado em que tudo faça sentido, nem em ser exaustivo em relação à inesgotável capacidade de detalhe da mente de Pynchon. De onde vem a incoerência? Do fumo das ganzas ou da própria incongruência da realidade? Ninguém sabe. Nem ele quer saber. Interessa-lhe mais compor um ambiente de conspiração, de vaga indistinção entre os manipuladores e os manipulados, e nesse nevoeiro de causalidade, deixar os seus actores dar uma valente passa e fazer, descontraidamente, o seu melhor jazz gestual e gutural.
Desta feita, Inherent Vice, aos olhos de P.T. Anderson, nada mais é do que um divertimento, uma tapeçaria cómico-tóxica, um slapstick-melancólico, onde nada faz muito sentido mas que no final toda a gente percebe. E quem já fumou uma ganza sabe que tudo aquilo que fizemos mas não nos lembramos, que tudo aquilo que lembramos mas não fizemos, acaba por fazer toda a lógica. É esse o efeito secundário que o filme provoca no espectador.
terça-feira, 17 de fevereiro de 2015
Esta noite, cerca das 3:21 da manhã...
Esta noite, cerca das 3:21 da manhã, levantei-me para ver se o cão bébé tinha
cagado no resguardo, dormia na pantufa ou estava no igloo que a "mãe"
lhe comprou para se sentir seguro. Mal abri os olhos e vi a caganita no
sítio dela não é que me veio à memória este post
que tinha lido umas horas antes? Voltei ao leito e tive uma pequena
insónia de cerca de 3 minutos e trinta segundos. Nele pensei que sabia
exactamente aquilo de que o Pedro Mexia falava, embora nunca tenha sido
avisado em sonhos ou insónias. É no meio da noite, num breve acordar, entre a primeira e
a segunda parte do sono que chegam esses malogrados interregnos de
lancinante lucidez. Tudo é uma aflição pois ganhamos a distância de
terceiros e nela sabemos exactamente tudo o tentámos que a nossa cabeça
não soubesse. "Será que?, Devia ter? Porque é que não? Quando é que?" A
esta torrente de graníticas verdades segue-se, a custo, um sono de veludo
e na manhã seguinte, recomeça...
segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015
Mas afinal era brucelose (e depois voou para longe o pássaro da ilusão)
"Quando as pessoas pensam que são inteligentes - mesmo quando são inteligentes - não há nada que os outros possam dizer-lhes para lhes permitir ver as coisas correctamente, e o problema de Asbury era que, para além de ser inteligente, possuía um temperamento artístico."-
"O Calafrio Permanente"- Flannery O'Connor
domingo, 15 de fevereiro de 2015
sábado, 14 de fevereiro de 2015
"Embora se especule sobre a possibilidade de Flaubert ter passado grande parte do tempo a dormir ou a masturbar-se (ele próprio gostava de comparar frases a ejaculações). O labor excruciante do estilista parece muitas vezes ser uma fachada para encobrir um bloqueio. Era o caso do fabuloso escritor americano J. F. Powers, por exemplo, sobre quem Sean O' Faolain gracejou, à maneira de Wilde, que "perdia a manhã a introduzir uma vírgula e a tarde a ponderar a hipótese de a substituir por um ponto e vírgula". Mais frequente, creio, é tipo de rotina de escrita atribuída ao escritor inglês A.C. Benson - não fazer nada de manhã e depois passar a tarde a descrever o que tinha feito de manhã."
(James Wood -"a mecânica da ficção")
Land of the Pharaohs
Se há filme que podia muito bem ser levado para uma segunda vida para
se ver em cinemascope celestial, com um olho entalado na cobra que vem
sorrateira ao som da música da flauta do filho do faraó para o matar e o outro
fixando a bonomia do arquitecto Vashtar que tanto me faz pensar n'Ele,
ele é Land of the Pharaohs de Howard Hawks. Ontem, na inocente presunção de que ainda me faltam uns anos para a ascensão ao trono de nuvens e home video, só conseguia pensar em três coisas:
uma. nos quadros imensos de trabalhadores devotos a construir o túmulo do
Faraó, desbotados na paisagem, movendo-se como montinhos de tinta na
mais calma e desordenada pintura de Hawks. Um homem a filmar manadas de
gentes que avança com peso, suor, meias certezas, a caminho de uma
criação colectiva. As pirâmides evocam por certo esse paradoxo do quebra
cabeças de índole religiosa e política, do colectivo como ilustre tapeçaria da vontade do único todo poderoso.
dois.
naquele diálogo em que a Joan Collins, princesa e embaixadora da província de Chipre,
vem ver o Faraó. Ela diz-lhe que não trouxe os tributos que este exigiu do
seu povo, que se trouxe a ela própria em vez disso. Quando aquele lhe pergunta a razão de tal acto ela diz-lhe que o seu povo é pobre e que se pagassem os tributos alguns morreriam de fome. Nesse momento só conseguia pensar em Varoufakis (cuja careca dizem ser bem sexy) e na posição em que se encontra actualmente o paryido do Syriza. É preciso escolher,
diz a princesa Nellifer, diz o povo, e é o poder que deve subjugar-se a uma escolha.
três. o mecanismo
inviolável da tumba do Faraó. Os blocos de pedra a fecharem-se ante a
areia que escorre é das metáforas mais graníticas para um final de filme
que vi até hoje. A circulação das imagens, o tempo a passar, ambos esgotam-se como essa
areia que escoa, deixando os significados, as emoções, as personagens fossilizadas,
escondidas do presente. Ver Land of the Pharaohs e
deixar-se ressuscitar por ele exige a tarefa de escavar essa tumba
labiríntica e "invisível" que o própria História de Cinema, com a mão
astuta de Hawks, encerraram.
Land of the Pharaohs é, parece-me,
um filme que se vê a partir de uma outra vida, que brilha como ouro no
centro de uma pirâmide. É essa a imagem que lhe é mais fiel e que o torna mais valioso
do que qualquer tesouro do Faraó Khufu.
quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015
quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015
L’Argent
Oh argent, dieu visible, qu’est-ce que tu ne nous ferais pas faire !
Antes de tudo o mais, preâmbulo. E faço-o com uma dessas sentenças à boa moda antiga: não aceito que ninguém me diga que L’Argent não tem uma das mais geniais cenas de assassinato do mundo. Uma não, duas. Mas sobre a segunda, a do machado dostoievskiano no menos dostoievskiano
dos filmes de Bresson, já lá iremos mais para o final deste desabafo.
Mas dizia, Yvon, o herói – mas haverá cá desses a habitar a solene
carpintaria bressioniana? – Yvon, o homem inocente, sai da prisão onde
teve três anos por ter sido condenado injustamente de contrafacção.
Plano dele a caminhar na rua com a sua declaração de saída. Plano escuro
dele em amorce a bater à porta daquilo que no quadro seguinte
se nos revela ser, através de uma placa, um hotel- o Hotel Moderne. A
porta abre-se e uma senhora deixa Yvon passar para a recepção onde está
um homem. Plano escuro de Yvon que desce uma escada com uma mão manchada
de vermelho que, juro, juro, só se repara dois planos à frente quando
genialmente a água da torneira que se escapa pelo ralo (do qual sabemos
tanto haveria a dizer) passa de incolor a rosa. Há qualquer coisa de
indecente em amar um crime no cinema mas esta arte da depuração e da cor
merece-me um suspiro.
Depuração sempre foi a palavra de Bresson, ou uma delas. Pode
dizer-se, e diz-se, que no seu filme final Bresson atinge uma espécie de
pureza material, um zénite da massa bruta com uma forte dose de ironia,
uma vez que o projecto foi adaptar um conto de Tolstoy e mostrar as
“canalizações” maléficas do sistema da opulência: o capitalismo. Mostrar
o tanto ou os males do tanto, com tão pouco, eis o desafio de Bresson e
daqueles que muitos consideram ser o seu filme marxista, ou como se
conta a história de uma nota de 500 francos. Pegar num centro não humano
e fazer o mundo girar já o francês o tinha feito com Au Hasard Balthazar
(Peregrinação Exemplar, 1966), um estudo asinino sobre a santidade, que
também tem em comum com este filme o facto de expor um estado do mundo
por via da circulação. Se aqui a nota circula de mão em mão trazendo
desastres aos seus possuidores, acolá era o burrinho que muda de dono ao
som da sonata nº 20 para piano de Schubert.
A questão da circulação, que não é menos cara ao capitalismo do que à montagem, introduz em L’Argent
a questão da forma como ambos – o sistema político económico e o cinema
de Bresson – constroem esse caminho, essa “linha de montagem” e onde
querem chegar. A falsidade da nota, inicialmente nas mãos do jovem
adolescente a quem os pais não deram mais do que a mesada e que tinha
contas para pagar na escola, apenas demonstra o vazio da troca simbólica
que a circulação do capital encerra. Sob esse vazio simbólico, que se
opõe à troca directa na prisão, carne por dinheiro em mãos debaixo na
mesa na cantina, há uma acumulação que se põe em andamento e que faz
passar da inocência à culpa, do bem ao mal.
Yvon é o “cristão-ateu” (como Bresson se descrevia ante a religião)
agente do “deus vísivel” do dinheiro. E aqui entra a velha querela do
que é bressoniano ou deixa de ser e da transcendência das pequenas
revoluções versus a imanência dos gestos e lugares quaisquer. Não há
como negar que L’argent é um pequeno filme de objectos:
a mota, as pistolas, os envelopes, o cofre, as chaves, a máquina
fotográfica. E essas coisas têm mãos à volta, pernas, pés e tudo isso,
envolto, espaços inertes, o clichet do hotel, a mesa da esplanada, os
corredores da prisão, o balcão do bar. Onde eu quero chegar com isto é
aqui: Bresson quer contar como vai das mãos do adolescente com a nota
falsa que lhe queima de inocência na posse às incandescentes mãos de
Yvon que brande o machado nesse percorrer mudo da casa, na qual só se
ouve o cão a latir e a despedaçar-nos a certeza de uma salvação, no
assassinato-spoiler final do filme. Esse “drôle de chemin”, para usar a
expressão de outra drama real da manufactura (Pickpocket,
1959), é feito de pontilhismo materialista, a circulação do seu
“capital” são os gestos dos corpos, a música do quotidiano (ouçam a
malga dele a arrastar no chão da prisão, o alarme do cofre, o Bach do
pai alcoólico da mulher de cabelos grisalhos seguido do estilhaço do
copo quando cai do piano) as zonas e tempos de desaceleração dramáticas
das cenas, a neutralidade das emoções.
Quando chegamos à tal mão final, o pontilhado já se fez grande e L’Argent
é um filme que descreve as roldanas de uma engrenagem que parece
encaminhar os seus sujeitos para a perdição. Dá vontade de dizer que
podíamos descrever o percurso do filme com o plano em que vemos a porta
da prisão pelo qual passa Yvon. Mais do que uma vez lá está o sinal na
porta que diz “poussez”. Podíamos pensar que é tudo uma questão de ir
empurrando as portas, obedecendo a lógica pull or push para ir
progredindo. Mas há um senão. Estamos à porta de uma prisão e ninguém
passa sem pôr a chave na fechadura para a abrir previamente. Admito que
isto está a resvalar para o abismo do conceptualismo mas tento pôr
ordem. A livre circulação do capital, a nota da mão à mão, da inocência
ao crime, do lado de cá da prisão ou lado de lá (é maravilhoso que
Bresson filme as crianças que visitam os seus parentes presos, num
corredor onde estas é que parece estarem presas) é esse sistema fácil do
push and pull. Mas como Bresson descrevia numa entrevista
sobre o filme, a arte onde tudo está organizado não lhe interessa e o
seu cinema funciona com “sistema de chaves”, como sistema de pequenos
inícios e revelações que querem dar passagem de um momento ao outro
mesmo que, como é o caso aqui, seja para explicar a “organização absurda
do mundo e a impossibilidade de mudança.”
No final Yvon que matou os donos do hotel e a família da senhora de
cabelos grisalhos entrega-se num bar à autoridades. No plano final os
espectadores mirones olham a saída dele escoltado pela polícia,
seguindo-se um cut to black. Chegados aqui aconselho a ler, senão tiverem mais nada para fazer, e se não se importarem de ler em pdf,
o capítulo final de um livro chamado “Neither God Nor Master: Robert
Bresson and Radical Politics”. Neste, o seu autor Brian Price,
entretém-se a fazer as ligações políticas entre L’Argent
e a semi-desilusão da política de François Miterrand em França. Sobre o
fim a questão levanta-se, até porque Bresson se escusou a filmar a
segunda parte do conto “Faux billet”, onde Tolstoy talhava uma
espectacular redenção de todos os corrompidos pelo materialismo, o que
significava aquele plano final sem redenção. Este negro final é o negro
do pessimismo expulsando-se a cura para a infecção capitalista, do vírus
que corrompe de pessoa para pessoa, para um fora de campo do futuro.
É a partir desse fora-de-campo para o qual L’argent nos remete, o local a partir do qual o vemos hoje. É nesse fora de campo, nesse pós filme, em que já não há linguagem,
que ainda estendemos a mão para a nota. Ver hoje a crise financeira
especulativa ainda na mesma democracia da escuridão, habitada pelo mesmo
impotente mirone espectador como o prolongamento da obra de Bresson é
uma hipótese tão assustadora quão inspiradora. Talvez valha a pena
suster o olhar na materialidade despida do filme como uma outra
tentativa do projecto da circulação das coisas, um lado B fantasmático
da transacção capitalista. Proposta assombrada, proposta assombrosa a de
Robert Bresson.
E no fim de tudo mais, epílogo. Aconselho ainda ver ou rever o ciclo
que a Cinemateca Portuguesa dedica a partir de hoje à obra do cineasta
do qual Godard disse que era o cinema francês tanto quanto Dostoevsky
era o romance russo ou Mozart a música alemã. Há poucas coisas tão boas
na vida do que ver assim de enfiada os Bressons todos. E começar o ciclo
pelo seu último, o seu fim a ser o nosso início hoje, é um gesto
imponente que a programação não deixou passar em claro e que a mim me
merece um sorriso e outro suspiro.
terça-feira, 10 de fevereiro de 2015
A good filmmaker/writer is hard to find
Passei o dia de ontem a rever L'argent, o último Bresson, e acabei de ler The Violent Bear It Away da
Flannery O' Connor. Sobre o filme que adapta um conto do Tolstoy
fala-se muito da transição do cineasta em final de vida (ou melhor, de
carreira pois ainda viveu quase mais vinte anos, até aos 98) de uma
visão dostoiévskiana de uma vida terrena como preparação para um depois,
para um olhar de socialismo terreno e organizado cara ao autor de Guerra e Paz.
A minha vida pequenina torna-me antes susceptível a reparar como o
método de Bresson, pelo alinhavar sucessivo de pequenos indícios, contém
em si uma dimensão de revelação que O'Connor esculpiu nos seus
romances. O surgimento de algo por vir que faz queimar todo o presente
sob a forma de uma sarça ardente ou de uma súbita cegueira. Em The Violent a cegueira de Motes do Wise Blood dá lugar
à surdez do professor. Para Yvon, o pequeno funcionário de uma companhia
petrolífera tornado assassino por uma injustiça envolvendo uma nota
falsa, os crimes são surpreendentes apenas para quem não observar os
sinais (religiosos, da circulação monetária e dos valores morais). Mas ante um olhar atento esses crimes são um resultado lógico e intransigente.
Tão intransigentes quanto a maldade de Misfit do conto A Good Man Is Hard to Find
ou a certeza teimosa do jovem Tarwater. É exagero dizer que Bresson se
baptiza nas águas sacrílegas da prosa de O'Connor mas ambos partilham
essa distância que vai da evidência das acções duras de quem está (ou
fica) predestinado e o súbito vagar da contingência.
(Por exemplo, não me agrada que a personagem do professor em The Violent fique
"presa" na segunda parte do livro e não se escape para o clímax. Fico
um tanto desiludido que tudo não tenha passado de uma bebedeira de um
"falso violento". Mas nunca saberei se o que sinto é ele mesmo fruto da
contingência ou da predestinação.)
segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015
O borrão
"A 24 de Março de 1941, Virginia Woolf encheu os bolsos com pedras e afogou-se no rio Ouse. O seu marido, Leonard Woolf, era obsessivamente meticuloso, e mantivera um diário durante toda a sua vida adulta, no qual registava as suas refeições diárias e a quilometragem do seu automóvel. Aparentemente nada se alterou no dia em que a sua mulher cometeu suicídio: ele anotou a quilometragem do seu automóvel. Mas, escreve a sua biógrafa, Victoria Glendinning, a página referente a esse dia está obscurecida por um borrão, uma "mancha castanho-amarelada, que alguém tentou esfregar ou limpar. Pode ser chá, café ou uma lágrima. O borrão é o único em todos os seus anos de imaculada escrita diária." James Wood (a mecânica da ficção, p. 78)
domingo, 8 de fevereiro de 2015
sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015
quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015
Conversas à pala #14
Nesta nova edição das Conversas à pala eu e o Luís Mendonça falámos com André Dias sobre o tema da cinefilia e lançámos em Portugal a CAMIRA - Cinema and Moving Image Research Assembly, com a presença via skype do seu vice-presidente Paul Grant.
quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015
Da vida nua à potência destituinte: o projecto 'Homo sacer' de Giorgio Agamben
DA VIDA NUA À POTÊNCIA DESTITUINTE: O PROJECTO ‘HOMO SACER’ DE GIORGIO AGAMBEN
21 de Fevereiro | 10h/18h | Salão do Atelier Re.al
21 de Fevereiro | 10h/18h | Salão do Atelier Re.al
Com António Guerreiro, José Tolentino Mendonça, Alexandre
Franco de Sá, Ana Isabel Cardoso Figueiredo, António Bento, António
Caselas, André Dias, Luís Carneiro, Luhuna Carvalho, Bruno Peixe Dias,
Mariana Pinho, Ricardo Noronha, Bruno Lamas, José Caselas, João Pedro
Cachopo, Nuno Leão, João Duarte e Unipop.
Isto promete. Ainda faltam uns dias mas é para depois não terem desculpa.
Ainda a adição e claro ainda mais ratinhos
Mais um artigo sobre o que nos torna viciados às coisas. Os movimentos de polegar do hi-phone, o desaparecimento das conversas cara a cara, os miúdos que morrem de exaustão a jogar jogos de computador, a adição à internet, renovam o interesse pela mecânica da dependência algo deixado na sombra pela acção das drogas químicas. Com informações discutíveis (dá-se o exemplo de Portugal como um país que descriminalizou* todas as drogas; mas quando ocorreu esse milagre?) Johann Hari fala da desconexão como o verdadeiro factor de dependência.
He says we should stop talking about 'addiction' altogether, and instead call it 'bonding'. A heroin addict has bonded with heroin because she couldn't bond as fully with anything else.
* Entretanto um amigo disse-me, e bem, que o artigo refere a descriminalização do CONSUMO de drogas. Desculpem lá o cérebro milkshake deste vosso escriba.
* Entretanto um amigo disse-me, e bem, que o artigo refere a descriminalização do CONSUMO de drogas. Desculpem lá o cérebro milkshake deste vosso escriba.
terça-feira, 3 de fevereiro de 2015
De que falamos quando falamos de Birdman?
"Envelhecer não é uma guerra. É um massacre". Citação de Everyman de Philip Roth lida aqui em
mais um texto brilhante do Rogério Casanova apanhado agora a destempo. É
este massacre que vemos no rosto das pessoas quando o corpo decai,
tragédia amplificada pelo corpo do actor que multiplica por profissão os
espelhos e promontórios em sua volta. Em 1924, Emil Jannings, atingido
pelo tempo, foi despromovido no filme de Murnau, Der letzte Mann,
de porteiro símbolo da fachada de um importante hotel ao anonimato das
catacumbas das WC's. Essa "chute", o cinema filmou-a, sobretudo no caso
dos actores, temperando a nostalgia com a incapacidade de lidar com o
fim. Como ditadores de um país só seu recusando-se a renunciar ao poder,
os actores em queda tornam-se cegos ao movimento descendente e
reafirmam-se a todo o tempo "ready for their close up".
Birdman (2014) de Alejandro González Iñárritu |
Nestes termos o filme de Iñárritu, Birdman,
limita-se a imaginar, entre o super-realismo dos tiros muito
explicadinho e o realismo mágico de asas demasiado soltas, esse dilema
visto de uma outra escala geométrica. Se Jannings tinha o seu "céu" nas
portas giratórias da fachada do hotel, Michael Keaton teve o seu céu no
céu. A "superheroização" do cinema, aqui semi-desculpada por Roland
Barthes que não se sabe em que filme entrou, apenas ironiza o problema.
Percebemos: maior é a decadência daquele que agora recorda os tempos de
ouro em que era um super-homem. Mas contrariamente a Jannings que vê no backstage a perdição, Iñárritu
quer fazer da cave (o teatro) um local de desesperado re-começo,
invertendo as escalas. Entre os céus e as catacumbas vem o espaço da
transição e da deambulação enfeitado da percussão constante de Antonio
Sanchez na banda sonora que prepara os diálogos-rap da trilha de
Keaton-Norton-Galifianakis-Watts, sobretudo estes.
Algures
nesse caminho do viajante solitário em busca de um reviver do passado
como presente há uma desordenação que chega no backstage do teatro como
nos corredores de um hotel perdido nas montanhas (The Shining), como um espaço de crime em continuidade cometido contra a psyche (The Rope) em plena Time Square de cuecas. Se exteriormente vamos todos voltar a viver este ano com Michael Keaton o que já tínhamos vivido em 2009 com Mickey Rourke
numa daquelas dobras de piscar o olho da história, o jogo das
geometrias do passado e da passagem do tempo faz-se de forma inédita.
Honestidade que acomoda as citações de Carver, Shakespeare, Flaubert,
por aí fora, mesmo nos diálogos mais simplezinhos com a crítica maléfica
e o actor salvífico.
"Not
ideas about the thing but the thing itself", a citação do início no
espelho de Riggan não serve tanto expulsar as ideias que possamos ter em
relação a Birdman mas mais para sublinhar que, ao contrário do
discurso paternalista e multi-cultural de Babel por exemplo, há por aqui qualquer coisa de "in
itself" além do super filme sobre a decadência ou da decadência de um super-herói.
segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015
Achas que sabes estudar?
Ontem pus-me a ler um daqueles artigos
extensíssimos que o Público encomenda com o objectivo de fazer crescer aos seus
leitores espessas sobrancelhas destinadas à pose reflexiva e ao franzir do
sobrolho. Trata-se de um belo naco de prosa de um senhor chamado Brook Larmer
que me diz agora o google é um grande jornalista correspondente no estrangeiro,
especializado em assuntos chineses e que escreveu um livro chamado: “Operation
Yao Ming: The Chinese Sports Empire, American Big Business, and the Making of
an NBA Superstar”. Mas este texto, mais modesto, quer abordar a preparação dos
mais de nove milhões de adolescentes chineses para o gaokao – o exame nacional de acesso à universidade - e em especial, na escola de Maotanchang,
uma pequena cidade na zona oriental da China. O objectivo é simples,
mostrar ao olhar ocidental como em escala e em dificuldade estamos perante um
grande épico de esforço militar onde as crianças começam as aulas às seis e tal
da manhã e saem perto das onze, não têm telemóvel (a heresia!), estudam
ininterruptamente, os professores recebem consoante o sucesso dos seus alunos e
fotografias há que mostram os piquenos a estudar ligados a catéters de
alimentação intravenosa. Entretanto, na Sic, a melhor televisão portuguesa não fosse a Tvi, exibe um dos maiores entretenimentos pós 25 de Abril que não
envolvem sexo pago: o magazine “Achas que sabes dançar”.
Eis uma
dessas boas ironias à antiga. Enquanto leio miúdos que tentam tudo por tudo
para entrar na universidade e fugir do destino mais certeiro que
consiste em apanhar pêssegos até à morte, eis-me a desviar o olhar para essoutro
teste árduo. Aí, preâmbulos de homo
sapiens, vulgo adolescentes, ensaiam coreografias onde vale tudo, da salsa
à fractura de clavículas, passando pelo rap da loja dos chineses (daqueles que
não entraram na universidade, entenda-se). Aí o objectivo é convencer a troika
contratada para o certame, composta pelo penteado de Joaquín Cortés, os estertores de Rita Blanco e um
emigrante português em França que deve ter entrado num teledisco.
Mas a
tal ironia nem é o contraste de desafios entre o borbulhento oriental e o borbulhento
ocidental. (Atenção que também há mães de filhos no programa da Sic, mais
respeito). O gozo é que o artigo de Brook
Larmer fala do excesso de rigidez de todo o processo de preparação, herdeiro das
influências milenares do império e que deixa os alunos meio baralhados quando
depois entram na universidade. Não sabem o que fazer ao tempo livre, não sabem
como actuar em moldes não rígidos em que ninguém lhes dita ordens a todo o
tempo pois estão habituados ao pé pesado da disciplina. Ou seja: “não sabem
dançar”. Contrariamente, e ilustrando que a alegoria de sucesso da modernidade
consiste no auto-movimento (na capacidade de pelo movimento, gerar mais
movimento, preservando a espécie ou o capital) a dança representa para estes
concorrentes do programa da Sic, estas pessoas escaladas pelo circulo
transitivo e mediático, uma paradigma de luz e de movimento. Porque se trata de
um movimento sem objecto, ou como dizia Marx em relação ao trabalho, “sans
phrase”, cabia inserir no movimento dessa dança outra questão, a questão: achas que sabes estudar? Esta questão símbolo consiste em traçar-se a capacidade de procurar elementos de imobilidade, de “rigidez”, a partir do qual a
mobilidade, a dança, esta dança, possa fazer sentido.
Não está em causa que as lágrimas do menino chinês
que chumbou nos exames (e que terá de encontrar trabalho de construção, como o pai,
nas reluzentes cidades costeiras da China) e as da menina rechonchuda
que não é bonita ao ponto de poder dançar na ribalta da televisão são as
mesmas. Em ambas estão em causa os valores da aprendizagem e do falhanço. Só
que no primeiro o falhanço é mais duradouro já que a sociedade o afasta para a
margem. No segundo o falhanço implica um recomeço mais perto do centro da
sociedade, isto apesar destes programas possuírem o cunho da tragédia na medida
em que não reflectem a abjecção das pessoas mas criam-na, domingo a domingo.
domingo, 1 de fevereiro de 2015
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