Passe a mão ingénua nos seus cabelos. Repare como você é mesmo fofo. Um belo exemplar da raça. Se pudesse, não negue, beijar-se-ia a si próprio. Veja como são tantos os seus cabelos, em floresta, emaranhados, a traçar linhas e combinações secretas.
Mas sinta mais fundo, ou antes, mais para dentro. Com as unhas comece a raspar, a adensar um caminho, um trajecto qualquer. Verá certamente que a superfície sobre a qual está assente a sua cabeleira é firme e mole. Um campo de raízes alinhadas num caos ageométrico, se a palavra existe.
Tente forçar ainda mais para dentro: é mole, dentro de certos limites; é carne, dentro de certos limites. Faça agora um movimento de perfuração com um objecto afiado. Qualquer que ele seja. Uma lima das unhas seria um achado. Não se incomode com o sangue pois é uma evidência da vida, há que saber lidar com ele.
O melhor é ter um paninho à mão. Na outra mão. Para os limites do asseio. Quando conseguir fazer um pequeno orifício, confirme que lá cabe o seu mendinho. Quando isso for possível, vá rodando lentamente. Não se incomode com a dor pois é uma evidência da vida, há que saber lidar com ela.
Vai chegar um momento em que o terreno capilar vai ter a abertura suficiente para o seu indicador. Seja ousado. Experimente o dedo médio. A não ser que seja um daqueles seres humanos extraordinários que possui o anelar mais comprido que o médio. Não se esqueça: não deixe pingar o sangue para o chão. Afinal, trata-se do seu quarto, que a sua mãe tanto esmera em ter impecável.
Faça por não prestar atenção ao barulho viscoso da carne a ser penetrada, senão perderá a coragem. Se for preciso tape os ouvidos previamente com tampões. Ou algodão, que sempre ajudará a ensopar o sangue. Vai chegar um momento em que sentirá ao de leve o começo da sua massa encefálica. Tem uma textura engraçada, é precisa tocá-la para se saber do que estamos a falar.
Não se incomode com as tonturas pois são uma evidência da vida, há que saber lidar com elas. Você sempre soube isto. O cerébro é feito em ondinhas empapadas em visco, mas não caia na tentação de nevegar nelas. Seja ousado. Introduza toda a sua mão. Quando tiver toda a sua mão introduzida em seu cérebro, com anéis e tudo, tente pensar.
Pense no seu primeiro amor, no dia em que reconheceu que o seu coração se acelerava na presença de outro ser humano. Pense nas ervilhas que em bébé o faziam comer até transbordar da boca. Ou tente mesmo, pensar em sexo, no frenesim da penetração e do orgasmo. Que acha? Gosta da sensação?
Se o braço estiver a ficar dormente com a posição incómoda, tente arranjar um sítio confortável. Um sofá, por exemplo. Esta é a última vez que o vou prevenir quando à vergonha de alguém entrar e ver o quarto cheio de manchas de sangue. Por isso, seja discreto. Gritar, está fora de questão. Morda antes a língua se for caso disso.
Se ainda está a pensar naquilo que lhe pedi, errou. Não é que tenha de recomeçar tudo de novo. Basta recolocar-se. Ser sensível. Você é sensível, certo? Sempre lhe disseram isso. Faça lá uso dessa sensibilidade.
Tacteie no seu cérebro à procura de um ponto. Este não se encontra exactamente no centro da sua massa encefálica. Está ligeiramente mais próximo do hipotálamo. Como saberá que chegou lá? É simples. Terá vontade de rir, rir histericamente. Mas por favor! Não acorde o seu irmão. Está doente e seria uma falta de respeito pelo descanso dos outros. A sua mãe sempre o educou correctamente, não há motivo para ignorar isso agora. Não se incomode com as convulsões e a perda de saliva pois tratam-se de evidências da vida há que saber lidar com elas.
Reparo que começa a nascer em si um tímido sorriso. Será sinal que encontrou? Não tente pensar em anedotas senão falseará o jogo. O melhor é deitar-se no chão para poder vasculhar mais à vontade. Espero que tenha coberto os tacos com jornais velhos, aqueles que nunca leu atempadamente. Os outros de certeza já foram para o lixo.
Sim, agora sim. Já vejo muitos dentes. Parece que chegou. Sim, definitivamente. É esse o ponto. Vê? Eu disse-lhe que seria meramente uma questão de persistência. Vá, agora tente lá lembrar-se do seu primeiro desgosto de amor. Do dia em que se riram na sua cara, em que corou de vergonha e passou um fim-de-semana a chorar. Já não consegue, pois não? Há um vazio, certo? Uma calma apaziguadora que contrasta com as suas pernas que tremelicam feitas parvas.
Vê? Eu não disse que seria tão fácil esquecer? Não vale a pena sofrer. Mais vale esquecer. Trata-se apenas de uma questão de persistência. Já lhe disse.
Olhe, a sua mãe está a chamá-lo para jantar. Não ouve? Ah, claro que não. Que parvoíce a minha, tem os tampões nos ouvidos. Não se preocupe, o prato não é o seu preferido.
Quer tentar uma última vez? Hmmm. Tente lembrar-se da capital dos EUA. Não lhe ocorre nada? Muito bem. Chegámos.
Há, já quase me esquecia. Vai esvair-se em sangue dentro de poucos minutos e morrerá. Mas não se incomode com a morte. É uma evidência da vida, há que saber lidar com ela.
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