quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Um homem caminha como se carregasse dois baldes de água.
Uma mulher passa com o queixo para cima, como se levitasse.
Cruzam-se.
Obviamente não reparam um no outro.

O amor não é para os audazes. É para os atentos.

Out/2007
Uma, duas pedras,
Ouve isto, sem cerimónia
As nuvens e os palhaços são teus
Ouves morder a noite em que, um dois, dois olhos, se fecharam sobre ti
Mesmo se chovesse fazia sol
Mesmo que a dança fosse contigo
a ressalva aí no coraçãozinho

não ames assim, foda-se
Não dês volta em seco, a alface morre
Mesmo que macio fosse o parapeito, tombavas como se caísses em metáfora
E afinal de contas a música está tão alta que não ouves partir;

Out/2007
Pedem-te, sem marcas de tortura,
Devaneia-te aí, passarinho.

As luzes abusam da noite, mas ter-te,
Manhã que sangra sorrindo,
oh ter-te.

Enquanto se chove, chova-se.
E imensos dedos, espinhos, espasmos, esporas de humidade
Cavem bolsos, se gaguejas.

Uma certa graça há em rir
E em ser um ser: arrancado, feliz,
Sem portas ou provérbios.


25/10/06
Quando leio um livro:
Dois acrobatas apaixonam-se,
três coelhos mágicos são fofinhos
e a previsão metereológica está sempre certa.

Não suporto ficção.
Na tua rua, torta e ventricular,
Pedes-me que não espezinhe tudo.
Que não entre a perguntar direcções,
Lábios ou a raça do teu abraço.

Íngreme, com problemas pulsantes de iluminação,
Serei irmão nessas paragens.
E o útero a que me obrigas,
Terá o mesmo tipo de construção, modesta, sem divãs ou portas

A arder e de joelhos estão os dias
em que o cheiro a amêndoas doces te trouxe, tum-tum,
No pára arranca dos olhares,
as armas de revelação maciça da nossa língua secreta.

Na tua rua,torta e ventricular
Vou onde as árvores forem,
A galope no teu cheiro,
Na tua boca alucinante.


27/10/06
Ontem é tempo:
De escavar rostos em abóboras,
De suicidar os dentes com o riso,
De espreitar bruxinhas a dançar um slow.

Hoje é tempo:
De lembrar o gelo que não derreteu na bebida bebida,
De levantar os véus dos candeeiros,
De esperar pelo próximo Halloween.

Hoje é tempo de amanhã.

Halloween /2007

À noite não é tarde

À noite não é tarde.

O tempo, esse decadente escultor, coloca as coisas nos sítios onde ainda não estiveram.
Os jogos fúnebres jogam-se.

Nas primeiras filas, os cavalos espantados esperam.
As árvores, filhas da pele e de outros deuses, ganham.

Somos palavras nervuras trancadas nos lábios,
As horas gastam-se a chorar de flancos descaídos.

Out/2007

O elogio do zero, ou mesmo, quem sabe, a higiene do conhecimento

Em book antiqua era tudo mais simples.

Tiro na rótula de um mestre. Os mestres que nunca desgasto sem prazer são as pontas dos meus dedos. Essas putas que me vão alentando a rebentar pelas texturas. Deixa-me ó suave hipotenusa do caralho. Pensas que basta ires ao Colombo para tremer as solas dos sapatos? Tiro na rótula de um velho. Adoece, apodrece e cai. Olhar retinto, em que gastas toda uma vida. Fim-de-semana no estrangeiro, olhar as margens dos rios cheios de água. Subir nos elevadores da mentalidade. Os animais querem sangue e nós damos-lhes a nossa carne. Bom negócio. Tira na rótula de uma mercearia.
Limpa vidros Ajax para limpar a Antiguidade. Limpeza a seco, a quente. Raspar o cotão, os pêlos. Ficar só com o redondo, com o contorno. Asseio e a complicação da Piedade. Tiro na rótula do zero. Eu sou um zero porque sou redondo, porque não cabe em mim mais nada, porque não faço assumpções metafóricas. Assinei mais um papel timbrado e mais um rebanho de zeros que partiu para as coisas. Para o chalé, para a lareira do amor, para a tentação do Senhor. Tiro na rótula do Senhor. Vivo na minha cabeça. Insuflo o corpo com óleos e outros degradantes. O meu corpo podia ser um zero pedestal onde assentasse o cérebro. Que bola maldita! Tiro no rótula da bola sebosa. Está feita a matemática do ser humano. A zero se escreve a humanidade e a Santa Casa agradece. Mais uma vez esta semana o euromilhões não teve totalistas. Semana de merda, dizem eles. Os ateus agradecem. Os agnósticos desconfiam.

Fev /2008
Na repartição de finanças, quis amar para passar o tempo.
Tinha uma flor à mão e dez pessoas à frente.
O funcionário, chegada a sua vez, estendeu-lhe uma caneta.
Olhou por momentos a funcionária nos olhos e apertou a flor escondida na mão esquerda.
Assinou com a direita e saiu apressadamente.

Era canhoto.

Nov/2007

Manual do Esquecimento

Passe a mão ingénua nos seus cabelos. Repare como você é mesmo fofo. Um belo exemplar da raça. Se pudesse, não negue, beijar-se-ia a si próprio. Veja como são tantos os seus cabelos, em floresta, emaranhados, a traçar linhas e combinações secretas.
Mas sinta mais fundo, ou antes, mais para dentro. Com as unhas comece a raspar, a adensar um caminho, um trajecto qualquer. Verá certamente que a superfície sobre a qual está assente a sua cabeleira é firme e mole. Um campo de raízes alinhadas num caos ageométrico, se a palavra existe.
Tente forçar ainda mais para dentro: é mole, dentro de certos limites; é carne, dentro de certos limites. Faça agora um movimento de perfuração com um objecto afiado. Qualquer que ele seja. Uma lima das unhas seria um achado. Não se incomode com o sangue pois é uma evidência da vida, há que saber lidar com ele.
O melhor é ter um paninho à mão. Na outra mão. Para os limites do asseio. Quando conseguir fazer um pequeno orifício, confirme que lá cabe o seu mendinho. Quando isso for possível, vá rodando lentamente. Não se incomode com a dor pois é uma evidência da vida, há que saber lidar com ela.
Vai chegar um momento em que o terreno capilar vai ter a abertura suficiente para o seu indicador. Seja ousado. Experimente o dedo médio. A não ser que seja um daqueles seres humanos extraordinários que possui o anelar mais comprido que o médio. Não se esqueça: não deixe pingar o sangue para o chão. Afinal, trata-se do seu quarto, que a sua mãe tanto esmera em ter impecável.
Faça por não prestar atenção ao barulho viscoso da carne a ser penetrada, senão perderá a coragem. Se for preciso tape os ouvidos previamente com tampões. Ou algodão, que sempre ajudará a ensopar o sangue. Vai chegar um momento em que sentirá ao de leve o começo da sua massa encefálica. Tem uma textura engraçada, é precisa tocá-la para se saber do que estamos a falar.
Não se incomode com as tonturas pois são uma evidência da vida, há que saber lidar com elas. Você sempre soube isto. O cerébro é feito em ondinhas empapadas em visco, mas não caia na tentação de nevegar nelas. Seja ousado. Introduza toda a sua mão. Quando tiver toda a sua mão introduzida em seu cérebro, com anéis e tudo, tente pensar.
Pense no seu primeiro amor, no dia em que reconheceu que o seu coração se acelerava na presença de outro ser humano. Pense nas ervilhas que em bébé o faziam comer até transbordar da boca. Ou tente mesmo, pensar em sexo, no frenesim da penetração e do orgasmo. Que acha? Gosta da sensação?
Se o braço estiver a ficar dormente com a posição incómoda, tente arranjar um sítio confortável. Um sofá, por exemplo. Esta é a última vez que o vou prevenir quando à vergonha de alguém entrar e ver o quarto cheio de manchas de sangue. Por isso, seja discreto. Gritar, está fora de questão. Morda antes a língua se for caso disso.
Se ainda está a pensar naquilo que lhe pedi, errou. Não é que tenha de recomeçar tudo de novo. Basta recolocar-se. Ser sensível. Você é sensível, certo? Sempre lhe disseram isso. Faça lá uso dessa sensibilidade.
Tacteie no seu cérebro à procura de um ponto. Este não se encontra exactamente no centro da sua massa encefálica. Está ligeiramente mais próximo do hipotálamo. Como saberá que chegou lá? É simples. Terá vontade de rir, rir histericamente. Mas por favor! Não acorde o seu irmão. Está doente e seria uma falta de respeito pelo descanso dos outros. A sua mãe sempre o educou correctamente, não há motivo para ignorar isso agora. Não se incomode com as convulsões e a perda de saliva pois tratam-se de evidências da vida há que saber lidar com elas.
Reparo que começa a nascer em si um tímido sorriso. Será sinal que encontrou? Não tente pensar em anedotas senão falseará o jogo. O melhor é deitar-se no chão para poder vasculhar mais à vontade. Espero que tenha coberto os tacos com jornais velhos, aqueles que nunca leu atempadamente. Os outros de certeza já foram para o lixo.
Sim, agora sim. Já vejo muitos dentes. Parece que chegou. Sim, definitivamente. É esse o ponto. Vê? Eu disse-lhe que seria meramente uma questão de persistência. Vá, agora tente lá lembrar-se do seu primeiro desgosto de amor. Do dia em que se riram na sua cara, em que corou de vergonha e passou um fim-de-semana a chorar. Já não consegue, pois não? Há um vazio, certo? Uma calma apaziguadora que contrasta com as suas pernas que tremelicam feitas parvas.
Vê? Eu não disse que seria tão fácil esquecer? Não vale a pena sofrer. Mais vale esquecer. Trata-se apenas de uma questão de persistência. Já lhe disse.
Olhe, a sua mãe está a chamá-lo para jantar. Não ouve? Ah, claro que não. Que parvoíce a minha, tem os tampões nos ouvidos. Não se preocupe, o prato não é o seu preferido.
Quer tentar uma última vez? Hmmm. Tente lembrar-se da capital dos EUA. Não lhe ocorre nada? Muito bem. Chegámos.
Há, já quase me esquecia. Vai esvair-se em sangue dentro de poucos minutos e morrerá. Mas não se incomode com a morte. É uma evidência da vida, há que saber lidar com ela.

Baudelaire

Sentei a beleza dos meus joelhos e injuriei-a
Tenho joelhos quebradiços e rótulas frágeis
Foi o que lhe valeu.

Set/2007
A vida é uma alternância de timidez e atrevimento.
Isso significa que quando é preciso avançar se recua e viceversa.

Não lamentes a tua caixa de velocidades partida.
Junta antes ânimo para um corpinho com mudanças automáticas.

Desequilíbrio

Rafael marcou a data de morrer num post it.
O seu queixo: design de osso, perpendicular ao céu.

Nota: escrever sempre o planeado; planear sempre o que escrever.
Ideia: esmagar o osso, esse osso, contra a pedra do chão da rua.

Morreu com os edifícios que transportam as linhas direitas.
As janelas vestidas como concessões de vidro ao equilíbrio.

Nota: uma pedra, essa pedra, corta a direito as rectas que vivem junto ao chão.
Ideia: proporcionar-se um desequilíbrio e deixar de respirar.

O (10) equilíbrio é uma forma acidental de horizontalidade.
Uma pedra é uma pistola compacta. Com as balas incorporadas.

Àparte

Estamos sós?
Recolha essa cortina.
Ponha um ar normalzinho...
Disfarce. Como se falássemos de sobremesas.

Só para si, hã?
Digo-lho ao ouvido.
E é ouvir agora e calar para todo o sempre...
Repare que não é algo que vá por aí alardear em feiras ou museus.

Que cara é essa?
Tem de aprender a conviver com segredos!
Prometa-me que será um túmulo imaculado....
Quando souber cairá redondinho no chão...

Nervoso?
Não é caso para tanto...
Chegue-se para aqui para não nos ouvirem.
Ou melhor... cole-se a mim, para que os meus lábios quase não se mexam.

Só eu sei o que vai cá dentro!
Ai que calor....
E só Deus sabe o que me custa, custar a Ele!
Enfim...
Vou desabotar as pregas da minha alma!
São jactos de mim que recebe!
Prepare-se.
Está pronto?
Ui! Que mal estar! Quase desfaleço...

Olhe...
Desfaça-se o mistério que não aguento mais.

Queria dizer-lhe...
Queria dizer-lhe...

que.

Sussurrar

Em Berlim, uma mulher sussurra: eis a palavra com que apresentarás o mundo.
Na cave a minha avó susurrava antes de recolher as ratoeiras.

O pessimista contempla a parede branca e finalmente sorri.
Esse sorriso não é mais do que uma passerelle de dentes.
Invitável e pasmódico.

Selecção Natural

Cortar rente o cabelo junto à nuca por causa das pulgas.
Comer as patas da galinha com a canja.
Dormir no celeiro com os porcos.
Sacudir a palha do vestido preto largo.

Sentar na cama à espera que o nosso homem nos fornique.

No dia em que a minha mãe matou o meu pai, nevou que a encosta “pareceu”desaparecer.
No dia em que a minha faca cortar a garganta de minha mãe, fará sol. O sangue em poças brilhantes pintará a madeira.


O mais forte terá vencido.

Tempus Fugit

Fugir. Impulsionar a carne contra o ar.
O tempo é o foi e o será do domingo mais domingo que o desespero nos trouxe.

Uma ruga: a ficção ou o documentário?
Os espelhos são acidentes que documentam estados de espírito.
O fogo não queima, nem a tua mão traz apenas cinco dedos.

As Evas metálicas não processam maçãs.
Os robots rupestres não enferrujam em cavernas.
Os coelhos não usam relógio, Alice.

O tempo não foge.
É apenas uma efabulação do movimento, da transitoriedade.
Um Fim não é uma fuga. Muito menos o Fim.

We Live in Public

Os olhos das pessoas terminam nos eléctrodos do cérebro,
Terminam nos pixéis da ternura.
Adeus electrónico, sem uma só batida vermelha.
Ver-me a ver-me.
Ninguém ou toda a gente.

Aberta está a quarta dimensão,
a quarta parede.
A moralidade como terceira ideia sobre as acções, como uma tecla.
Uma pausa, um “frame by frame” que congela.
Que na ânsia do outro e de si, expõe com mais força:
a flor, o vómito ou a santidade da eloquência pornográfica.

O futuro tem uma corrente maiúscula que acorrenta o pensamento, a vontade.
Isso, porque à distância de anos só há contornos e uma criança de perfil é carvão.
Ver-me a ver-me a ver-se a ver-me é trompe d’oeil moral que distrai.
Destruir hierarquias é expulsar a construção das nossas mãos,
É ter os espaços minados
de uma horizontalidade que é preciso atravancar:
com coisas que nos façam vir por fracções de segundo.

Viver em público é tentar matar esse anonimato. E quando todos esses seres que emprestam a sombra à noite se forem,
Quando só existirem estrelas sem brilho,
Começará uma nova busca pelo anonimato.
Nesta realidade em rede os anónimos serão as estrelas.

Viver aleija. Viver com toda a gente a querer viver mais,
aleija ainda mais.
Por isso, o virtual constrói o mundo sobre o mundo, menos feroz.
Será uma questão de tempo até o virtual detectar o seu bug supremo: o humano.
E Frankenstein triunfará, de novo.

Morreu Deus. Matámo-lo.
Morrerá o homem. O virtual extingui-lo-á.

Ou antes, nesta luta não estou certo quem vencerá.
Estas elaborações, no betão ou no virtual,
São sintomas de impotência.
Sem poder saber se há uma verdade, como Deus,
Vamos abrindo portas.
E quando elas estiverem todas abertas será impossível caminhar.

Um só passo trará o desespero ao mundo e
a dor da ausência de todos os outros passos não percorridos.

A virtualidade torna o mundo paralítico.
Aqui como ali mas inerte.
Olhavam para mim como se me dessem a mão.
OS OLHOS POUSADOS NA TARDE TRAZIAM COM ELES TUDO O QUE APANHAVAM. UM GAFANHOTO, UMA AMORA, UMA IDEIA.
OS JOELHOS ESTAVAM COBERTOS PELA ÁGUA TRANSLÚCIDA E NÃO HAVIA UMA ARAGEM QUE SE MEXESSE. UMA SÓ.
Eram as duas assim, só uma.

Pele

Tocava-te.
Pela primeira vez.
E um reino de cristal desmoronou-se-me nos dedos.
As minhas mãos a olharem-te desguarnecidas, com medo de tudo.
Pequeninas, com medo de não encontrar, com medo de ter medo.

Pedaços

Arrancado a mim próprio
Vejo-me à distância,
Prostrado no lugar em que nasci, ou em que fui lançado.
Vi-me assim, aos pares, de olhos, de caminhos alcançados,
de amores pantanosos.

Por cima de uma almofada, aqui, dobrada, a tristeza pesa-me. Faz-me mal ao ponto de nem saber. E as mãos já não encontram o caminho sozinhas, estão cegas, tacteiam, doidas. E nem sei que mais faz parte de mim e o que não faz, O que de mim é por favor, o que sempre me vai adiar. O meu corpo já nem parece um conjunto. São pedaços de pensamento a que por cortesia estão colados carne e lágrimas.
O nariz quer entrar pelo passado adentro, de rompante, a buscar certezas.
Na cheiro, a certeza. No cheiro, o impulso derradeiro.
A língua presa de venenos interditos e a face arrebentada contra uma repetição.
Tudo jaz nestes milagres de impossibilidade.

Malditas poças de sentimento que inundam tudo o que é belo. Ou o que é certo, amarfanhado. Ou o que é atroz, desmitisficado.

Uma máquina de secreções a sentir num dia com tempo absurdo. Só isto.
Um cigarro que me destrói o pensamento. Um cigarro que me sabem a mil cigarros e me dão um pouco de ar.

E nem as palavras, essas que são tão soberbas, me ajudam. Nem elas me dizem o que devo dizer. Nem elas sonham o que não posso sonhar.

Recuo à adolescência sem certezas do meu sentir. Recuo, recuo, até não ter mais por onde recuar. Até não ter mais mãos por onde escrever. Até chorar só porque me batem. Sem compreender que o mundo é uma bola onde é possível ver um barco majestoso e ser-se o mar nele.

O BALDE

O coração atropelava os restantes vegetais numa corrida impossível pelo fim dos nossos dias. As bandeiras arrebatadas e os muros de palavras traziam o quintal como um quadradinho apaixonado. Em linhas rectas, em lutas ancestrais, o sinal, a um canto, desbotado, apodrecia. Os varais falavam de roupa ao vento aos pássaros que de tudo sabiam já. As formigas tamborilavam nas folhas como numa ode ao interminável. O “intermédio” sentia-se em casa, tinha pena da luta dos apaixonados e dos saquinhos de milho que explodiam dos olhos dos espantalhos. Apaixonei-me por um espantalho. “Brutaliza-me”, respondia-me, não me olhando no olhos. E sempre que o vento demorava um pouco mais a responder-me também pensava que já não me queria. Que já o tinha perdido, que não me amava, que me achava um saco de carne amorfa, pronto ao desinteresse.
Dentro do dia, havia velocidade para disparar os cheiros das coisas. Eu fiquei sentado, também eu a apodrecer, também eu tabuleta. O fim é por aqui, podia ler-se. Os vizinhos sentavam-se nos cantos opostos, a mirar o intermédio, com pautas nas mãos e cabelos brancos nos cabelos. Dobrado, irrequieto, puxava as mãos grossas, revolteando a terra. Encontravam-se corações já usados, com bolor, roídos pelo Inverno. Aos poucos, o balde ia-se enchendo. A terra envelheceu num minuto e os desgostos eram caimbras do coração. O coração atropelava também as paredes orgulhosas. Perderamos o chão por de cima de nós e ninguém já morava ali. Nem os pássaros moravam neles próprios. O que não era ainda amarelo sonhava em sê-lo. As únicas manchas brancas do quintal tinham a beleza apontada a elas.
Fui feliz.
A saída era aqui, dizia a tabuleta cravada no último coração. Alguém pegou no balde e levou-o para dentro de casa. Amanhã será dia de trabalho, ainda.
Quero repetir esta canção até que o meu corpo a cante

O meu peito a compasse com os meus três ritmos danados. Uma ambulância passa, tão menos que uma nota, e lá dentro vão corpos sem vida, tão mais vivos. Tenho a emergência das coisas belas, de estar a morder e a rir as cores à tarde que não me deixa. Tenho que um passeio é o vazio e que o vazio me passeia.

Acordei com o sono da felicidade. Levantei-me com a calma das sirenes. Só não sonho porque me arrancaram a lucidez das patas. Sinto-me animal em toda esta conjugalidade. Entre entregar-me e asfixiar-me, posso bem dar mais um tempo ao minuto. Posso alimentar-me de amigos distantes, e foder a minha paciência pela noite dentro.

Posso querer morrer porque não sei. E se soubesse morreria, vivendo.
Que adiantam as cores vivas e os espelhos quando se é daltónico sentimental?
Que interessam os momentos lindos se eles não são maravilhosos?
Porque amar o nosso próprio filho se ele partiu para outras aventura, sem nós, sem nos dizer que.

Eu conheci o amor, essa rua mal frequentada, quando estava para sair. Quando a canção já não era repetida pelos meus pulmões, quando as pernas eram já cavacos enervantes, quando o último copo me sabia a saliva de eternidade.
Quatrocentos e dez são os anos que tenho para viver nestes quarenta, talvez menos, que me faltam. E nesses, a civilização do beijo está condenada à dormência dos espaços atafulhados de gente.

Estou atafulhado de mim. Rebento por dentro e nem há espaço cá fora para que desmaie ou cante. As portas que batem e as sirenes que aleijam têm milhares de significados. Nenhum é o meu.

Quero repetir esta canção até que o meu corpo a cante. Até que o meu corpo expluda esta mania de ser popular.

Quero que esta canção seja assim, a minha sentença de vida. Não há paz em se ter paz.

Encosto o rosto ao passeio e espero que tudo passe. Tudo.