segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Wiseman, Fulci: a poética laboral da insistência

Frederick Wiseman escreveu uma vez que, a partir de Titicut Follies, o seu primeiro filme, nunca mais deixou, graças ao cinema, de descobrir o drama intenso de cada dia na vida de cada homem. Nem a calhar pois queria falar-vos da poética laboral da insistência, desse "cada dia". Mas também de drama. Os dois vêm juntos no que vos quero contar. Re-vi ontem essa "comédia burlesca", passada num hospital psiquiátrico de Bridgewaters nos anos 60, começado e acabado com um dos guardas, Fred Astaire wannabe, a dirigir um espectáculo no interior do asilo. Mas, tirando isso, que vi eu? Nem tanto a indistinção prisioneiros-guardas ou loucos-psiquiatras. Nem sequer a evidência de qualquer documentário ser uma ficção pela escolha daquelas pessoas e situações, pela estrutura dos pequenos eventos que nos vão agarrando. O que vi foi uma câmara desnorteada, a procurar, a caçar com zelo, os homens feras enjaulados que se cruzam, infinitamente, nos espaços comuns, os loucos nus e "violados" que Wiseman filma como sempre filmará todos: quando falam, nós ouvimos, sem contracampo, pois a reacção essa é nossa, temos direito a ela! O que vi foi essa câmara insistente a filmar tudo, com a curiosidade de quem lá está e não de quem quer dar a ver. Câmara diária, quotidiana, que vai todos os dias para o "trabalho de ver" e que já deixou para trás a preocupação do cinema-verdade, de entrar a fundo no espaço para filmar sem uma suposta perturbação invasora. Não. Wiseman invade o espaço. Não para denunciar ou impor a sua visão mas para procurar uma identificação cinematográfica com a instituição, revelar esses movimentos. 

À luz deste propósito, Wiseman revela-se o cineasta kafkiano da história do cinema e a realidade mostra-se como ficção. Bate três punhetas por dia. É demais., conclui o médico de serviço em relação a um dos pacientes. Outro faz das tripas coração para mostrar que está lúcido, que estar ali está a afectá-lo psicologicamente. A deixá-lo doente. O seu psiquiatra não acredita e carrega-lhe nos medicamentos, dizendo palavras como "esquizofrenia" e " perturbação esquizóide". Ele não acredita mas nós sim, porque esse é o talento de Wiseman: não de denunciar situações, mas de mostrar que a câmara tem a capacidade de deixar perceber que uma instituição é um espelho distorcido das conveniências da sociedade. Uma máquina que mostra o funcionamento da outra, num modus operandi institucional que se revela como ficção. Como filmar o outro lado do espelho: levar ao limite (a tal câmara insistente, o "cada dia") o impulso documental de ver o que está, para chegarmos às maravilhas e horrores do lado de lá do "facto": a lenda

Trocado por miúdos. Levar ao limite o documentário permite levantar do real uma qualquer ficção e viceversa. 

Vicerversa, sim. Reparem na insistência de um filme como Quella villa accanto al cimitero (1981) de Lucio Fulci. Uma distorção ficcional, uma "paródia insana" sobre os temas da psicanálise (uma das personagens chama-se mesmo Dr. Freudstein) e do crescimento. Quantas vezes filma Fulci a descida à cave daquela casa (de onde se vai sabendo vêm todos os problemas)? Quantas vezes a porta da cave se fecha não deixando a vítima no seu interior escapar ao seu "monstro" (simbólico ou real)? Quantas vezes Fulci acciona o mecanismo do suspense e do terror com o mesmo traçado? (O monstro persegue a babysitter, o filho, a mãe, o pai, para fora do antro, do espaço dos mortos.) Situações semelhantes de mise-en-scène, como se a escrita de Fulci insistisse na mesma situação ficcional para nela depurar uma essência qualquer. Uma essência do medo, do stress da sobrevivência, do sangue como depuração do vermelho-puro? Não é fácil dar respostas mas é mais simples ver em Fulci o movimento inverso de Wiseman: só levando a ficção ao limite, escrevendo e re-escrevendo os mesmos versos, se poderá chegar a uma depuração "documental". Chegar a algo que permaneça. A uma lucidez.

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