Frederick Wiseman escreveu uma vez que, a partir de Titicut Follies,
o seu primeiro filme, nunca mais deixou, graças ao cinema, de descobrir
o drama intenso de cada dia na vida de cada homem. Nem a calhar pois
queria falar-vos da poética laboral da insistência, desse "cada dia".
Mas também de drama. Os dois vêm juntos no que vos quero contar. Re-vi
ontem essa "comédia burlesca", passada num hospital psiquiátrico de
Bridgewaters nos anos 60, começado e acabado com um dos guardas,
Fred Astaire wannabe, a dirigir um espectáculo no interior do
asilo. Mas, tirando isso, que vi eu? Nem tanto a indistinção prisioneiros-guardas ou
loucos-psiquiatras. Nem sequer a evidência de qualquer documentário ser
uma ficção pela escolha daquelas pessoas e situações, pela estrutura
dos pequenos eventos que nos vão agarrando. O que vi foi uma câmara
desnorteada, a procurar, a caçar com zelo, os homens feras
enjaulados que se cruzam, infinitamente, nos espaços comuns, os loucos nus e
"violados" que Wiseman filma como sempre filmará todos: quando falam,
nós ouvimos, sem contracampo, pois a reacção essa é nossa, temos direito a ela! O que vi foi essa
câmara insistente a filmar tudo, com a curiosidade de quem lá está e não de
quem quer dar a ver. Câmara diária, quotidiana, que vai todos os dias
para o "trabalho de ver" e que já deixou para trás a preocupação do
cinema-verdade, de entrar a fundo no espaço para filmar sem uma suposta perturbação
invasora. Não. Wiseman invade o espaço. Não para denunciar ou impor a
sua visão mas para procurar uma identificação cinematográfica com a
instituição, revelar esses movimentos.
À luz deste propósito, Wiseman
revela-se o cineasta kafkiano da história do cinema e a realidade
mostra-se como ficção. Bate três punhetas por dia. É demais., conclui o
médico de serviço em relação a um dos pacientes. Outro faz das tripas
coração para mostrar que está lúcido, que estar ali está a afectá-lo
psicologicamente. A deixá-lo doente. O seu psiquiatra não acredita e
carrega-lhe nos medicamentos, dizendo palavras como "esquizofrenia" e "
perturbação esquizóide". Ele não acredita mas nós sim, porque esse é o
talento de Wiseman: não de denunciar situações, mas de mostrar que a
câmara tem a capacidade de deixar perceber que uma instituição é um
espelho distorcido das conveniências da sociedade. Uma máquina que
mostra o funcionamento da outra, num modus operandi institucional
que se revela como ficção. Como filmar o outro lado do espelho: levar ao limite (a
tal câmara insistente, o "cada dia") o impulso documental de ver o que está,
para chegarmos às maravilhas e horrores do lado de lá do "facto": a lenda.
Trocado por miúdos. Levar ao limite o documentário permite levantar do real uma qualquer ficção e viceversa.
Vicerversa, sim. Reparem na insistência de um filme como Quella villa accanto al cimitero (1981)
de Lucio Fulci. Uma distorção ficcional, uma "paródia insana" sobre os
temas da psicanálise (uma das personagens chama-se mesmo Dr. Freudstein)
e do crescimento. Quantas vezes filma Fulci a descida à cave daquela
casa (de onde se vai sabendo vêm todos os problemas)? Quantas vezes a porta
da cave se fecha não deixando a vítima no seu interior escapar ao seu
"monstro" (simbólico ou real)? Quantas vezes Fulci acciona o mecanismo
do suspense e do terror com o mesmo traçado? (O monstro persegue a babysitter,
o filho, a mãe, o pai, para fora do antro, do espaço dos mortos.) Situações semelhantes de mise-en-scène, como se a
escrita de Fulci insistisse na mesma situação ficcional para nela
depurar uma essência qualquer. Uma essência do medo, do stress da
sobrevivência, do sangue como depuração do vermelho-puro? Não é fácil
dar respostas mas é mais simples ver em Fulci o movimento inverso de
Wiseman: só levando a ficção ao limite, escrevendo e re-escrevendo os
mesmos versos, se poderá chegar a uma depuração "documental". Chegar a
algo que permaneça. A uma lucidez.
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