quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Do primeiro ao último plano de Pedro Costa


Como tentei, de forma talvez demasiado críptica, levantar no último post, existe esta relação, por via do dinheiro, entre o último filme de Pedro Costa, Cavalo Dinheiro e o seu primeiro, O Sangue. Neste havia um presente maravilhoso de aventura, de resistência (ao pai, ao tio, ao FMI, à cidade, aos constrangimentos do futuro) em que se ia ao parque e se ouvia The The. E era tudo tão bonito e sem explicação. Mas mais, all the money in the world couldn’t buy back those days. Vinte cinco anos passados, Ventura foi o que ficou, mesmo já a morrer, desta perpétua procura de uma raiz que nos una às coisas, de um espaço de intimidade onde as histórias e a dignidade das pessoas valessem ouro. Num passado "distante", quem sabe se no final dos anos 80 de O Sangue, podia-se sacrificar a palavra dinheiro, sem pudores, e dá-la ao nosso cavalo. O nosso cavalo dinheiro é o companheiro de viagem da ficção. Aos poucos, a ficção morreu, o cavalo morreu, ficou o dinheiro, só, imponente, como uma estátua que recusamos olhar de frente, por vergonha; dinheiro metido agora em envelopes, em embaraçosas pensões, em troca pelo corpo que se desgastou, como pedra, como pau, como tempo desperdiçado. 



Tornou-se uma evidência dizer que o cinema de Pedro Costa começa com uma estalada, isto é, sob o signo da violência. Nem vale a pena reabrir os significados dessa violência, quer no real, quer na experiência de vermos os seus filmes. Mas pense-se agora nessa estalada, também porque se escreve sobre relações princípio-fim, em raccord com o último plano de Cavalo Dinheiro, das navalhas em expositor. Em O Sangue, a violência abre o filme, a violência de uma falsa submissão, de uma chapada a alguém que já a consegue suportar. Uma estalada abrupta também ao espectador que vai demorar até habituar-se aquele negro, aquela luta pelo crescimento. Já em Cavalo Dinheiro essa relação com a violência é diferente. Nele há soldados e pontos na carne, macas de hospital, tanques e catanas. Mas essa violência surge como que evocada a partir de uma ferida interior, apresentada, como já vem detrás, pelos corpos na penumbra, a olhar as poucas réstias de claridade lá fora. Violência no passado então, que ganha um certo cunho abstracto e mítico pelo facto de ser invocada. Mas no último plano as navalhas são uma conclusão do filme, uma súmula, uma chapada de fim. Por estar separado da lógica narrativa do filme, este plano predispõe-se quer a uma leitura retrospectiva, quer sobretudo a uma lógica prospectiva. Este incitamento na sombra é  o que significam as frases ditas antes a Ventura no elevador: Esta história ainda não acabou. Os nossos sofrimentos serão alegrias para os homens do futuro. Este plano é eisensteiniano na sua intenção mas com uma subtileza alheia ao soviético. Não tenta prever o futuro, apenas apontá-lo, sob a ponta de uma navalha.

Essa é talvez a marca do verdadeiro activismo de Pedro Costa: um apelo à violência em surdina, uma violência justa que começou numa chapada e que, de momento, se vai acumulando no interior dos seus planos, das suas personagens, que morrendo, nunca morrem. Vagueiam.

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