Como tentei, de forma talvez demasiado críptica, levantar no último post, existe esta relação, por via do dinheiro, entre o último filme de
Pedro Costa, Cavalo Dinheiro e o seu primeiro, O Sangue. Neste
havia um presente maravilhoso de aventura, de resistência (ao pai, ao
tio, ao FMI, à cidade, aos constrangimentos do futuro) em que se ia ao parque e se ouvia The The. E era tudo tão bonito e sem explicação. Mas mais, all the money in the world couldn’t buy back those days. Vinte cinco
anos passados, Ventura foi o que ficou, mesmo já a morrer, desta perpétua procura de
uma raiz que nos una às coisas, de um espaço de intimidade onde as histórias e a
dignidade das pessoas valessem ouro. Num passado "distante", quem sabe se
no final dos anos 80 de O Sangue, podia-se sacrificar
a palavra dinheiro, sem pudores, e dá-la ao nosso cavalo. O nosso
cavalo dinheiro é o companheiro de viagem da ficção. Aos poucos, a
ficção morreu, o cavalo morreu, ficou o dinheiro, só, imponente, como
uma estátua que recusamos olhar de frente, por vergonha; dinheiro metido
agora em envelopes, em embaraçosas pensões, em troca pelo corpo que se
desgastou, como pedra, como pau, como tempo desperdiçado.
Tornou-se
uma evidência dizer que o cinema de Pedro Costa começa com uma
estalada, isto é, sob o signo da violência. Nem vale a pena reabrir os
significados dessa violência, quer no real, quer na experiência de
vermos os seus filmes. Mas pense-se agora nessa estalada, também porque
se escreve sobre relações princípio-fim, em raccord com o último plano de Cavalo Dinheiro, das navalhas em expositor. Em O Sangue,
a violência abre o filme, a violência de uma falsa submissão, de uma
chapada a alguém que já a consegue suportar. Uma estalada abrupta também
ao espectador que vai demorar até habituar-se aquele negro, aquela luta
pelo crescimento. Já em Cavalo Dinheiro essa relação com a violência é diferente. Nele há
soldados e pontos na carne, macas de hospital, tanques e catanas. Mas
essa violência surge como que evocada a partir de uma ferida interior,
apresentada, como já vem detrás, pelos corpos na penumbra, a olhar as
poucas réstias de claridade lá fora. Violência no passado então, que
ganha um certo cunho abstracto e mítico pelo facto de ser invocada. Mas no último
plano as navalhas são uma conclusão do filme, uma súmula, uma chapada de
fim. Por estar separado da lógica narrativa do filme, este plano
predispõe-se quer a uma leitura retrospectiva, quer sobretudo a uma
lógica prospectiva. Este incitamento na sombra é o que significam as
frases ditas antes a Ventura no elevador: Esta história ainda não acabou. Os nossos sofrimentos serão alegrias para os homens do futuro. Este plano é eisensteiniano na sua intenção mas com uma subtileza alheia ao soviético. Não tenta prever o futuro, apenas apontá-lo, sob a ponta de uma navalha.
Essa
é talvez a marca do verdadeiro activismo de Pedro Costa: um apelo à
violência em surdina, uma violência justa que começou numa chapada e que, de
momento, se vai acumulando no interior dos seus planos, das suas
personagens, que morrendo, nunca morrem. Vagueiam.
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