A distância que separa o segundo romance de Fyodor Dostoievsky, O Duplo, e o filme de Ermanno Olmi, Il Posto, é de exactamente 115 anos. Aparentemente não há muita relação entre os dois. O primeiro, de 1846, conta a história de
Yakov Petrovich Golyadkin, um conselheiro titular que, perante a chegada
ao seu local de trabalho de um concorrente, um homem muito parecido
consigo (no nome, na parecença física), resvala a pouco e pouco para a
loucura. O segundo, de 1961, narra a entrada na vida laboral de um jovem
licenciado milanês, Domenico Cantoni. Se genericamente podemos ligar as
duas obras pela via da importância do mundo do trabalho na vidas dos
dois protagonistas, o final do filme dá que pensar numa possível relação
mais elaborada. Na última cena, Domenico, depois de obter o
trabalho numa empresa, consegue finalmente o posto do título, passando a
ter uma secretária sua, devido à morte de um colega de trabalho.
Esse triunfo surge manchado sonoramente com o som do funcionamento de
uma antiga máquina de fotocópias (uma das últimas imagens do filme) que
funciona à manivela e que vai depositando, folha atrás de folha, num
receptáculo próprio. Esse som repetitivo fica quando Olmi filma pela
última vez o jovem Domenico, com ar sério, triste, e continua durante o
genérico.
Um dos triunfos maiores de Il Posto
é que começar por filmar o crescimento do jovem (com atenção dada a um
interesse amoroso por uma jovem que com ele se candidata às vagas na
empresa) para depois lentamente entrar no retrato do mundo laboral.
Embora dotado de sentido de humor, o filme nunca se torna uma sátira da
modernidade como por exemplo em Tati. Ao invés, ele vai trabalhando o
mosaico das figuras que compõem os trabalhadores da empresa. Primeiro
guiado pelos olhos curiosos de Domenico e depois, e nisso consiste uma
das coisas mais interessantes do filme, mesmo largando essa
subjectividade. Olmi filma alguns dos trabalhadores nas suas casas,
mostrando o que fazem à parte do trabalho ou as dificuldades pelas
quais passam, colocando a sua profissão como um mal menor para ir
tentando debelar aquelas. Chegado o fim-de-ano, há uma sequência na qual
o jovem trabalhador se escapa de casa para ir à festa de reveillon da
empresa e aí várias vezes surgem planos onde o espectador nem sabe do
jovem. Tal desprendimento mostra-nos que aquele universo laboral é maior
e independente face ao nosso herói e que resta-lhe a ele integrar-se
como todos os outros.
O barulho da máquina das fotocópias, pela
sua cadência, anuncia que o mosaico que Olmi foi filmando vai acolher
Domenico e que este vai ter dificuldade de sair deste. Isto é, Il Posto é
a transição de uma linearidade (o crescimento de um jovem) a um mosaico laboral, desembocando depois num filme circular por vir. Essa
circularidade, esse ser que se vai repetindo, é no fundo, o tema de O Duplo. A fragmentação do eu, aqui sob o jugo do muito em voga na altura tema do doppelgänger (termo cunhado em 1796), anuncia a derrocada mental de Golyadkin.
O seu duplo (real ou mental), na medida em que consegue tudo aquilo que
ele não consegue (fama, integração social, respeito) permite criar um
mecanismo de competição e desafio internos ante a pressão das
aparências, ante a necessidade de se controlar a imagem especular que os
outros têm de nós.
Em resumo, embora a
cronologia não o permita, não custa imaginar que o som da máquina das
fotocópias, que entra pelos ouvidos de Domenico, possa desencadear uma
mesma circularidade mental. No fundo, a loucura é também aquilo que não
tem saída, que não tem um fora. Um sistema no interior do qual se
dialoga consigo próprio, através de um sistema de duplos ou de roldanas
de uma mesma linha de montagem psíquica.
115 anos de diferença e a mesma pressão laboral, a mesma repetição patológica.
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