Nunca me caíram bem aqueles argumentos que se usam para justificar
normalmente a validade de um filme medíocre: "Ah sim senhor, é um tema
muito importante. Alguém tinha de o realizar". Os filmes fazem-se não
porque carregam temas — sejam eles ofensivos dos diáconos remédios desta
vida, sejam eles vozes libertadoras de uma sociedade mais "justa e
igualitária" — mas porque alguém tem uma obsessão (nem que seja a de
fazer dinheiro) e há uma cambada de malucos que alinham nessa demente
missão. Anyway, dei por mim esta semana a invocar um desses argumentos proibidos depois de ter visto The Danish Girl de Tom Hooper.
Claro que já devem ter percebido que se trata de um filme espectacular onde o grande timoneiro de fitas inesquecíveis como Les Misérables (2012) e The King's Speech
(2010) procura contar a história de uma dos primeiras pessoas no mundo,
o pintor Einar Wegener, a submeter-se a uma operação de mudança de
sexo. Hooper constrói alguns planos com base na pintura da época,
mantendo o jogo das linhas de perspectiva e das cores. O actor principal
Eddie Redmayne, depois de no ano passado ter vencido o Óscar numa
história "inspiradora" em que encarna, como "génio deficiente
coitadinho" o físico Stephen Hawkins, continua aqui a fazer dançar todos
os músculos e olhares do seu corpo. Tudo bem, tudo isto está tudo certo
(ou antes, não está certo mas é expectável).
O
filme baseia-se no romance homónimo de um senhor chamado David
Ebershoff, que já de si se diverte a recriar ficcionalmente alguns elementos da vida do casal Einar Wegener (que viria a
transformar-se em Lili Elbe) e a sua esposa Gerda Wegener. Já será bom de
ver que aquele "baseado numa história real" com que se tenta vender o
carapau, já pouco tem de peixe. Mas o incrível é mesmo a tese do filme.
Portanto, Einar começa por ser um vigoroso jovem heterossexual casado
com uma bonita mulher (há cenas de sexo e tal) e quando esta começa a
pedir-lhe para posar para ela vestida de mulher para continuar uns
quadros, qualquer coisa muda no seu interior e surge Lili. A tese, meus caros , é meio freudiana: a de que o sentir-se mulher sempre lá esteve
mas estava recalcado e aqueles pedidos fizeram "despertar a mulher que
estava no seu interior."
Embora ache um tanto inverosímil que
isto se tenha passado mesmo assim ainda admito que só terei 100% certeza quando
ler algum relato pessoal de Einar/Lili. Convenhamos que há uma
sugestividade que Hooper e companhia quis aproveitar: ter um dos actores
mais badalados do momento a transformar-se assim de homem para mulher, de repente, ali, para a câmara.
Agora, um dos factos que foi elidido do filme foi a bissexualidade da
esposa, não deixando espaço a que pudéssemos pensar em como tudo
presumivelmente se deve ter passado de facto. Que Einar desde cedo se
sentiu mulher e que isso era consentido pela esposa, ou seja, que não
ouve nenhuma súbita transformação. O mal de esconder isto, e por isso
falava no argumento do "tema importante" que invoquei, é que depois o
filme sugere que poderia indirectamente ter sido a mulher, Gerda, a
causar-lhe os seus sentimentos femininos interiores. Numa cena ela
própria lhe pergunta se foi por causa dela que Einar se começa a sentir
como Lili. E depois Gerda é mesmo aqui retratada como a mulher
apaixonada e heterossexual que fica até aos últimos dias de vida do seu
marido. Como se ele padecesse de uma fulminante doença terminal. Sim, como se fosse uma doença, leram bem.
Não
sou um fanático da fidelidade histórica e na maioria das vezes até
prefiro um completo afastamento de um suposto "relato oficial" dos
acontecimentos (pois sabemos que quando se começa a querer contar o que
aconteceu ficamos sem filme e com uma soma colada de eventos que
dificilmente pode ser, bem... um filme). Agora, quando essa falta de
fidelidade sugere que uma mulher possa nascer no corpo errado, como se isso fosse uma
doença — e sobretudo se milhões estão a ver e a pensar "eh caraças, se o meu filho se
vestir como mulher pode estar perdido, deixa-me cá preparar umas chapadas para essa eventualidade, para me prevenir contra esse outro tipo de constipação mais grave"—
então aí, meus amigos, há problemas.
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