domingo, 31 de janeiro de 2016

Sopa de nuvens

O tema deste mês da sopa de planos foram as nuvens: 

Tentar escolher um plano de nuvens de Wings (Asas, 1927) de William Wellman é coisa tão ingrata como cometer a mesma loucura com a pintura de Turner. Talvez o mesmo caos romântico, o mesmo medo do utilitarismo e da devastação racional trazida pela guerra, ajudem a explicar o paralelismo. Hesito entre as imagens dos céus enevoados, cortados a meio pelo voo em bando dos aviões-pássaros-de-metal, e os planos das “pinceladas” dos aviões em chamas, em queda livre, esborratando com o fim eminente as esborratadas nuvens. Hesito tanto que acabo por escolher nuvens mais homogéneas, com os aviões dos nossos heróis e amigos, lado a lado, David e Jack. O primeiro vai morrer e por embaciamento da visão do segundo. O plano já mostra esses aviões negros sobre as nuvens brancas como duplas cruzes que avançam no céu. Jack nunca soube ver, por entre o gasoso das nuvens e os eflúvios borbulhantes do álcool, quem o amava de verdade. Por isso não vai reconhecer o amigo, pois este pilota um avião alemão, nem vai perceber que é Mary (Clara Bow) a mulher que por ele espera. Já David soube aprender a lição do colega Gary Cooper que sabia que morrer era uma coisa que nem os amuletos da sorte podiam evitar. Filme de ar, de gases — nuvens, bombas, fumos, borbulhas de champagne — mas também de pesos, de matérias da terra. O corpo do soldado interpretado por Willam Wellman a cair morto com um cigarro na boca, a imobilidade do pai de David, peso na cadeira de rodas, e os corpos carregados, caídos, e, finalmente, a câmara nas trincheiras a filmar as lagartas do tanque a passar por cima do buraco por onde vemos. As nuvens de Wings têm qualquer coisa de destino trágico pintado pelos deuses, mas também algo de sonho leve, doce e fantasmático. O plano que melhor o ilustra aqui não está para muita pena minha. Mas descrevo-o: é aquele em que vemos na terra os soldados alinhados a perder de vista, a caminhar em direcção à negra sombra da guerra, e nos céus, “projecta-se” o filme do futuro que os aguarda, as histórias de batalha para os quais se dirigem. The sky is the screen.

Leiam aqui as outras escolhas.
Se Cavalo Dinheiro encerra-se com Murnau e Lang, é porque se deu ao luxo de uma indeterminação genética (dos personagens, do espaço-tempo – os flashbacks da Revolução dos cravos não são introduzidos por fondus; estão aí, como os registros clínicos) típica de “quem chegou tarde demais”, e se sabe obrigado não apenas a mostrar as coisas – como aqueles que injustamente são chamados de primitivos do cinema -, como a mostrar o mostrar, maldição moderna de que jamais sanaremos os efeitos devastadores na ordem causal, nas articulações e estrutura das nossas narrativas. Costa nos mostra como demonstra, como nas sínteses tempestuosas que os grandes dialetas operaram (Goethe, Kleist, Proust), o verso como o reverso da História do cinema, reapropriada por alguém que “praticou” tanto a sua vertente encantatória (O Sangue; Ne Change Rien) como seu lado de “olhar ontológico” (No Quarto da Vanda; Onde Jaz o seu Sorriso): Cavalo Dinheiro é um comentário rebuscado sobre a posteridade de Méliès – de Cocteau e Welles a Carax -, mas o mestre de cerimônias desta mise en scène hipnótica são as fotos de Jacob Riis (Lumière). O filme de Costa, tanto pelas heranças que abriga como pelas apostasias que sugere (Lumière, Méliès, Lumière por Méliès), é monumental não apenas visualmente, mas dialeticamente: tem o poder aurático de olhar de volta para nós, e nos dar vertigens.

Luís Soares Júnior sobre Cavalo Dinheiro

sábado, 30 de janeiro de 2016

Repara como o mundo arrefeceu

«Que recordações! Lembro-me, por exemplo, de que neste local, há justamente um ano, precisamente a esta hora, neste mesmo passeio, vagueei tão solitário e tão sombrio como hoje! E repare que nessa altura também os pensamentos eram tristes; ainda que não fosse mais feliz, sentia, apesar de tudo, que a vida era mais fácil e tranquila, não existindo nela esta ideia negra que agora a mim se apegou; nada desses problemas de consciência, sombrios e severos remorsos, que nem de dia nem de noite me deixam descansado. E uma pessoa interroga-se: mas então onde estão os teus sonhos? E sacode a cabeça, dizendo: como os anos passam depressa!... E novamente nos interrogamos: mas o que fizeste tu dos teus anos? Onde foste enterrar o teu tempo mais precioso? Viveste verdadeiramente? Sim ou não? Repara, dizemos para nós mesmos, repara como o mundo arrefeceu. Passarão ainda mais anos e, após eles, virá a triste solidão, virá com a sua bengala a vacilante velhice e, após eles, o tédio e o desespero. O teu mundo fantástico empalidecerá; os teus sonhos morrerão, fenecerão, cairão como as folhas mortas caem das árvores... (...)»

 in Noites Brancas, Fédor Dostoiésvky

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Do primeiro ao último plano de Pedro Costa


Como tentei, de forma talvez demasiado críptica, levantar no último post, existe esta relação, por via do dinheiro, entre o último filme de Pedro Costa, Cavalo Dinheiro e o seu primeiro, O Sangue. Neste havia um presente maravilhoso de aventura, de resistência (ao pai, ao tio, ao FMI, à cidade, aos constrangimentos do futuro) em que se ia ao parque e se ouvia The The. E era tudo tão bonito e sem explicação. Mas mais, all the money in the world couldn’t buy back those days. Vinte cinco anos passados, Ventura foi o que ficou, mesmo já a morrer, desta perpétua procura de uma raiz que nos una às coisas, de um espaço de intimidade onde as histórias e a dignidade das pessoas valessem ouro. Num passado "distante", quem sabe se no final dos anos 80 de O Sangue, podia-se sacrificar a palavra dinheiro, sem pudores, e dá-la ao nosso cavalo. O nosso cavalo dinheiro é o companheiro de viagem da ficção. Aos poucos, a ficção morreu, o cavalo morreu, ficou o dinheiro, só, imponente, como uma estátua que recusamos olhar de frente, por vergonha; dinheiro metido agora em envelopes, em embaraçosas pensões, em troca pelo corpo que se desgastou, como pedra, como pau, como tempo desperdiçado. 



Tornou-se uma evidência dizer que o cinema de Pedro Costa começa com uma estalada, isto é, sob o signo da violência. Nem vale a pena reabrir os significados dessa violência, quer no real, quer na experiência de vermos os seus filmes. Mas pense-se agora nessa estalada, também porque se escreve sobre relações princípio-fim, em raccord com o último plano de Cavalo Dinheiro, das navalhas em expositor. Em O Sangue, a violência abre o filme, a violência de uma falsa submissão, de uma chapada a alguém que já a consegue suportar. Uma estalada abrupta também ao espectador que vai demorar até habituar-se aquele negro, aquela luta pelo crescimento. Já em Cavalo Dinheiro essa relação com a violência é diferente. Nele há soldados e pontos na carne, macas de hospital, tanques e catanas. Mas essa violência surge como que evocada a partir de uma ferida interior, apresentada, como já vem detrás, pelos corpos na penumbra, a olhar as poucas réstias de claridade lá fora. Violência no passado então, que ganha um certo cunho abstracto e mítico pelo facto de ser invocada. Mas no último plano as navalhas são uma conclusão do filme, uma súmula, uma chapada de fim. Por estar separado da lógica narrativa do filme, este plano predispõe-se quer a uma leitura retrospectiva, quer sobretudo a uma lógica prospectiva. Este incitamento na sombra é  o que significam as frases ditas antes a Ventura no elevador: Esta história ainda não acabou. Os nossos sofrimentos serão alegrias para os homens do futuro. Este plano é eisensteiniano na sua intenção mas com uma subtileza alheia ao soviético. Não tenta prever o futuro, apenas apontá-lo, sob a ponta de uma navalha.

Essa é talvez a marca do verdadeiro activismo de Pedro Costa: um apelo à violência em surdina, uma violência justa que começou numa chapada e que, de momento, se vai acumulando no interior dos seus planos, das suas personagens, que morrendo, nunca morrem. Vagueiam.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Dinheiro é nome de cavalo


All the money in the world couldn’t buy back those days

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Resumo de uma viagem de metro

-umas luvas castanhas tentam fechar uma mala da mesma cor;

-uma rapariga procura imagens de sobremesas no seu telefone;

-uma mulher que, ao mesmo tempo que sorri para um companheiro de viagem, fecha os olhos duas vezes seguidas como num espasmo de felicidade;

-um plano de O Sangue de Pedro Costa: Pedro Hestnes a ofegar na noite escura, a tentar impedir que o pai se vá embora;

-a sensação de que o "toque-me" da máquina de venda de bilhetes é um símbolo qualquer do podre e do divino.

Antes e depois da morte: a escuridão

O Sangue- Pedro Costa
Das weiße Band- Michael Haneke

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Olmi, Dostoievsky e o som da máquina das fotocópias

A distância que separa o segundo romance de Fyodor Dostoievsky, O Duplo, e o filme de Ermanno Olmi, Il Posto, é de exactamente 115 anos. Aparentemente não há muita relação entre os dois. O primeiro, de 1846, conta a história de Yakov Petrovich Golyadkin, um conselheiro titular que, perante a chegada ao seu local de trabalho de um concorrente, um homem muito parecido consigo (no nome, na parecença física), resvala a pouco e pouco para a loucura. O segundo, de 1961, narra a entrada na vida laboral de um jovem licenciado milanês, Domenico Cantoni. Se genericamente podemos ligar as duas obras pela via da importância do mundo do trabalho na vidas dos dois protagonistas, o final do filme dá que pensar numa possível relação mais elaborada. Na última cena, Domenico, depois de obter o trabalho numa empresa, consegue finalmente o posto do título, passando a ter uma secretária sua, devido à morte de um colega de trabalho. Esse triunfo surge manchado sonoramente com o som do funcionamento de uma antiga máquina de fotocópias (uma das últimas imagens do filme) que funciona à manivela e que vai depositando, folha atrás de folha, num receptáculo próprio. Esse som repetitivo fica quando Olmi filma pela última vez o jovem Domenico, com ar sério, triste, e continua durante o genérico. 


Um dos triunfos maiores de Il Posto é que começar por filmar o crescimento do jovem (com atenção dada a um interesse amoroso por uma jovem que com ele se candidata às vagas na empresa) para depois lentamente entrar no retrato do mundo laboral. Embora dotado de sentido de humor, o filme nunca se torna uma sátira da modernidade como por exemplo em Tati. Ao invés, ele vai trabalhando o mosaico das figuras que compõem os trabalhadores da empresa. Primeiro guiado pelos olhos curiosos de Domenico e depois, e nisso consiste uma das coisas mais interessantes do filme, mesmo largando essa subjectividade. Olmi filma alguns dos trabalhadores nas suas casas, mostrando o que fazem  à parte do trabalho ou as dificuldades pelas quais passam, colocando a sua profissão como um mal menor para ir tentando debelar aquelas. Chegado o fim-de-ano, há uma sequência na qual o jovem trabalhador se escapa de casa para ir à festa de reveillon da empresa e aí várias vezes surgem planos onde o espectador nem sabe do jovem. Tal desprendimento mostra-nos que aquele universo laboral é maior e independente face ao nosso herói e que resta-lhe a ele integrar-se como todos os outros.

O barulho da máquina das fotocópias, pela sua cadência, anuncia que o mosaico que Olmi foi filmando vai acolher Domenico e que este vai ter dificuldade de sair deste. Isto é, Il Posto é a transição de uma linearidade (o crescimento de um jovem) a um mosaico laboral, desembocando depois num filme circular por vir. Essa circularidade, esse ser que se vai repetindo, é no fundo, o tema de O Duplo. A fragmentação do eu, aqui sob o jugo do muito em voga na altura tema do doppelgänger (termo cunhado em 1796), anuncia a derrocada mental de Golyadkin. O seu duplo (real ou mental), na medida em que consegue tudo aquilo que ele não consegue (fama, integração social, respeito) permite criar um mecanismo de competição e desafio internos ante a pressão das aparências, ante a necessidade de se controlar a imagem especular que os outros têm de nós. 

Em resumo, embora a cronologia não o permita, não custa imaginar que o som da máquina das fotocópias, que entra pelos ouvidos de Domenico, possa desencadear uma mesma circularidade mental. No fundo, a loucura é também aquilo que não tem saída, que não tem um fora. Um sistema no interior do qual se dialoga consigo próprio, através de um sistema de duplos ou de roldanas de uma mesma linha de montagem psíquica.

115 anos de diferença e a mesma pressão laboral, a mesma repetição patológica.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Wiseman, Fulci: a poética laboral da insistência

Frederick Wiseman escreveu uma vez que, a partir de Titicut Follies, o seu primeiro filme, nunca mais deixou, graças ao cinema, de descobrir o drama intenso de cada dia na vida de cada homem. Nem a calhar pois queria falar-vos da poética laboral da insistência, desse "cada dia". Mas também de drama. Os dois vêm juntos no que vos quero contar. Re-vi ontem essa "comédia burlesca", passada num hospital psiquiátrico de Bridgewaters nos anos 60, começado e acabado com um dos guardas, Fred Astaire wannabe, a dirigir um espectáculo no interior do asilo. Mas, tirando isso, que vi eu? Nem tanto a indistinção prisioneiros-guardas ou loucos-psiquiatras. Nem sequer a evidência de qualquer documentário ser uma ficção pela escolha daquelas pessoas e situações, pela estrutura dos pequenos eventos que nos vão agarrando. O que vi foi uma câmara desnorteada, a procurar, a caçar com zelo, os homens feras enjaulados que se cruzam, infinitamente, nos espaços comuns, os loucos nus e "violados" que Wiseman filma como sempre filmará todos: quando falam, nós ouvimos, sem contracampo, pois a reacção essa é nossa, temos direito a ela! O que vi foi essa câmara insistente a filmar tudo, com a curiosidade de quem lá está e não de quem quer dar a ver. Câmara diária, quotidiana, que vai todos os dias para o "trabalho de ver" e que já deixou para trás a preocupação do cinema-verdade, de entrar a fundo no espaço para filmar sem uma suposta perturbação invasora. Não. Wiseman invade o espaço. Não para denunciar ou impor a sua visão mas para procurar uma identificação cinematográfica com a instituição, revelar esses movimentos. 

À luz deste propósito, Wiseman revela-se o cineasta kafkiano da história do cinema e a realidade mostra-se como ficção. Bate três punhetas por dia. É demais., conclui o médico de serviço em relação a um dos pacientes. Outro faz das tripas coração para mostrar que está lúcido, que estar ali está a afectá-lo psicologicamente. A deixá-lo doente. O seu psiquiatra não acredita e carrega-lhe nos medicamentos, dizendo palavras como "esquizofrenia" e " perturbação esquizóide". Ele não acredita mas nós sim, porque esse é o talento de Wiseman: não de denunciar situações, mas de mostrar que a câmara tem a capacidade de deixar perceber que uma instituição é um espelho distorcido das conveniências da sociedade. Uma máquina que mostra o funcionamento da outra, num modus operandi institucional que se revela como ficção. Como filmar o outro lado do espelho: levar ao limite (a tal câmara insistente, o "cada dia") o impulso documental de ver o que está, para chegarmos às maravilhas e horrores do lado de lá do "facto": a lenda

Trocado por miúdos. Levar ao limite o documentário permite levantar do real uma qualquer ficção e viceversa. 

Vicerversa, sim. Reparem na insistência de um filme como Quella villa accanto al cimitero (1981) de Lucio Fulci. Uma distorção ficcional, uma "paródia insana" sobre os temas da psicanálise (uma das personagens chama-se mesmo Dr. Freudstein) e do crescimento. Quantas vezes filma Fulci a descida à cave daquela casa (de onde se vai sabendo vêm todos os problemas)? Quantas vezes a porta da cave se fecha não deixando a vítima no seu interior escapar ao seu "monstro" (simbólico ou real)? Quantas vezes Fulci acciona o mecanismo do suspense e do terror com o mesmo traçado? (O monstro persegue a babysitter, o filho, a mãe, o pai, para fora do antro, do espaço dos mortos.) Situações semelhantes de mise-en-scène, como se a escrita de Fulci insistisse na mesma situação ficcional para nela depurar uma essência qualquer. Uma essência do medo, do stress da sobrevivência, do sangue como depuração do vermelho-puro? Não é fácil dar respostas mas é mais simples ver em Fulci o movimento inverso de Wiseman: só levando a ficção ao limite, escrevendo e re-escrevendo os mesmos versos, se poderá chegar a uma depuração "documental". Chegar a algo que permaneça. A uma lucidez.

sábado, 16 de janeiro de 2016

I love you, Bowie



-Hello girl. I'm gonna miss you. I gotta do it this way... I'll send for both of you when I can... no matter how long it takes, I gotta see that kid... he's lucky; he'll have you to keep him squared around. (Keechie, in They Live By Night)

Se há carta que nunca ninguém esquece, se há espera que não acaba — quando virá ele buscar-nos? — se há noite que não termina, ela está aqui. Ser cinéfilo já é viver by night, mas é mais, é esperar que Bowie se volte a reunir com Keechie cada vez que entramos numa sala de cinema e as luzes se apagam. Mas desta vez que haja tempo, tempo daquele rapaz e daquela rapariga serem devidamente apresentados ao mundo em que vivem, em que vivemos. E que haja tempo para os vermos. Uma e outra vez.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Meditações de natureza imbecil sobre o tempo

Ora bem. Começou um novo ano. Já lá vão quase quinze dias e marcamos o fim de qualquer coisa e o início de qualquer outra coisa. Ambas têm em comum, parece, porem em andamento um "qualquer". A invariância é o tempo, esse decadente escultor que coloca as coisas nos sítios onde ainda não estiveram. Não era assim o poema? Entretanto começa o ano e morre David Bowie. 69 anos, cancro e o mundo chora — conjuntamente, como numa louca festa fúnebre — a sua morte. Dias depois, ontem, morreu Alan Rickman, o Hans Grueber do Die Hard que toda a gente vai associando aos Harry Potter's ao ponto da minha neurastenia. Morre aos 69 também, causa de morte, cancro. Não há coincidências, Margarida. Somos esse cadáver adiado, sem originalidade na morte, Fernando.



O tempo passa mas como sempre passou, com rimas. E nós insistimos em pensar a nossa alma como um verso livre, algo contemporâneo e original nessa merda toda.

Segundo apontamento imbecil sobre o tempo. Ao contrário dos anos transactos, dei conta ontem que vi quase todos os candidatos a melhor filme desta edição dos óscares. A crítica mais honesta que posso fazer sobre todos eles, largo senso, é que são uma perda de tempo. Resta-nos, insistentes nessa perda em comum, armarmo-nos em caçadores recolectores de cenas, de gestos, de cores, de intensidades. O visco das cenas de batalha do Inarritu, o olhar do violador no filme do quarto, a música do Mad Max, essas coisas que ficam tão bem em fundo verde, ou branco, ou vermelho.

Terceiro e derradeiro apontamento imbecil sobre o tempo. Esqueçam os problemas do chronos e do kairos, do Heidegger e do Santo Agostinho porque o que eu queria mesmo dizer é que o Richard Gere tem um talento fabuloso para entrar em filme irrelevantes. Talvez apenas concorra com Kevin Costner, neste campeonato muito particular. Em 40 anos de carreira e quase 60 filmes depois aproveita-se o quê? Dois, três filmes, se tanto? O Cotton Club, o Breathless do Jim McBride e o American Gigolo do Schrader? Há mais, sem ir ao refugo? O último, por exemplo, é uma coisa chamada The Benefactor e Richard Gere faz de filantropo. Nem vale a pena continuar. Olha, Richard, soube há pouco tempo que bastam ao cérebro humano 3/4 minutos sem oxigenação para sofrer lesões irreversíveis. Isto é, bastam menos de cinco minutos para começarmos a apodrecer ao nível do cérebro. E tu, rapara, andas nisto há anos. A mesma coisa para si, sr. Oscar.

Mas bem vistas as coisas talvez esteja a ser duro demais, um nazizinho do tempo. De que nos serve afinal o tempo se não for para o perder? Ninguém ganha ao tempo. Até já Bowie. Até já Rickman. Até já Richard.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Adiós



I am sorry for quickly
Jumping into the train
I waited but no one came
You just a little bit too late

The decision is mine
The decision is mine
So let the lesson be mine
Let the lesson be mine
The decision is mine
The decision is mine
Cause the vision is mine
The vision is mine


Adios Adios
 Adios to the little child in me
who kept on blaming everyone else
instead facing defeat
After All, why should i regret
If it wasn't for the mistakes
I made yesterday
where will i be by now

The decision is mine
The decision is mine
So let the lesson be mine
Let the lesson be mine
The decision is mine
The decision is mine
Cause the vision is mine
The vision is mine

Lest the trees cease breathing
Lest all the bees cease breeding
And all the salts in the dead sea
Ferment to honey...

Until then, I will be forever chasing
Chasing...
Chasing it all till the very end

The decision is mine
So let the lesson be mine
Cause the vision is mine
The decision is mine
So let the lesson be mine
Cause the vision is mine

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016


sábado, 9 de janeiro de 2016

Cinema clássico

O Sangue - Pedro Costa


-Não te perdes?
-Não.

The Danish Girl: o perigo do "based on a true story"


Nunca me caíram bem aqueles argumentos que se usam para justificar normalmente a validade de um filme medíocre: "Ah sim senhor, é um tema muito importante. Alguém tinha de o realizar". Os filmes fazem-se não porque carregam temas — sejam eles ofensivos dos diáconos remédios desta vida, sejam eles vozes libertadoras de uma sociedade mais "justa e igualitária" — mas porque alguém tem uma obsessão (nem que seja a de fazer dinheiro) e há uma cambada de malucos que alinham nessa demente missão. Anyway, dei por mim esta semana a invocar um desses argumentos proibidos depois de ter visto The Danish Girl de Tom Hooper.    

Claro que já devem ter percebido que se trata de um filme espectacular onde o grande timoneiro de fitas inesquecíveis como Les Misérables (2012) e The King's Speech (2010) procura contar a história de uma dos primeiras pessoas no mundo, o pintor Einar Wegener, a submeter-se a uma operação de mudança de sexo. Hooper constrói alguns planos com base na pintura da época, mantendo o jogo das linhas de perspectiva e das cores. O actor principal Eddie Redmayne, depois de no ano passado ter vencido o Óscar numa história "inspiradora" em que encarna, como "génio deficiente coitadinho" o físico Stephen Hawkins, continua aqui a fazer dançar todos os músculos e olhares do seu corpo. Tudo bem, tudo isto está tudo certo (ou antes, não está certo mas é expectável).

 O filme baseia-se no romance homónimo de um senhor chamado David Ebershoff, que já de si se diverte a recriar ficcionalmente alguns elementos da vida do casal Einar Wegener (que viria a transformar-se em Lili Elbe) e a sua esposa Gerda Wegener. Já será bom de ver que aquele "baseado numa história real" com que se tenta vender o carapau, já pouco tem de peixe. Mas o incrível é mesmo a tese do filme. Portanto, Einar começa por ser um vigoroso jovem heterossexual casado com uma bonita mulher (há cenas de sexo e tal) e quando esta começa a pedir-lhe para posar para ela vestida de mulher para continuar uns quadros, qualquer coisa muda no seu interior e surge Lili. A tese, meus caros , é meio freudiana: a de que o sentir-se mulher sempre lá esteve mas estava recalcado e aqueles pedidos fizeram "despertar a mulher que estava no seu interior." 

Embora ache um tanto inverosímil que isto se tenha passado mesmo assim ainda admito que só terei 100% certeza quando ler algum relato pessoal de Einar/Lili. Convenhamos que há uma sugestividade que Hooper e companhia quis aproveitar: ter um dos actores mais badalados do momento a transformar-se assim de homem para mulher, de repente, ali, para a câmara. Agora, um dos factos que foi elidido do filme foi a bissexualidade da esposa, não deixando espaço a que pudéssemos pensar em como tudo presumivelmente se deve ter passado de facto. Que Einar desde cedo se sentiu mulher e que isso era consentido pela esposa, ou seja, que não ouve nenhuma súbita transformação. O mal de esconder isto, e por isso falava no argumento do "tema importante" que invoquei, é que depois o filme sugere que poderia indirectamente ter sido a mulher, Gerda, a causar-lhe os seus sentimentos femininos interiores. Numa cena ela própria lhe pergunta se foi por causa dela que Einar se começa a sentir como Lili. E depois Gerda é mesmo aqui retratada como a mulher apaixonada e heterossexual que fica até aos últimos dias de vida do seu marido. Como se ele padecesse de uma fulminante doença terminal. Sim, como se fosse uma doença, leram bem.

Não sou um fanático da fidelidade histórica e na maioria das vezes até prefiro um completo afastamento de um suposto "relato oficial" dos acontecimentos (pois sabemos que quando se começa a querer contar o que aconteceu ficamos sem filme e com uma soma colada de eventos que dificilmente pode ser, bem... um filme). Agora, quando essa falta de fidelidade sugere que uma mulher possa nascer no corpo errado, como se isso fosse uma doença — e sobretudo se milhões estão a ver e a pensar "eh caraças, se o meu filho se vestir como mulher pode estar perdido, deixa-me cá preparar umas chapadas para essa eventualidade, para me prevenir contra esse outro tipo de constipação mais grave"— então aí, meus amigos, há problemas.

Paletes de palas


quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Quem pode falar em nome dos pobres?


Quem pode falar em nome dos pobres? Quem pode descrever o que é sentir o frio a entrar pelas frestas da casa mal iluminada?; o buraco na sola da bota quando, noite ainda escura, nos pomos a caminho do trabalho?; ou o vazio no estômago depois de darmos a única comida que sobra no frigorífico aos nossos filhos?; e a alegria de ter uma breve nota a mais na carteira no final do mês?

Quem pode falar em nome dos pobres? Os ricos podem falar dos pobres mas não sabem nada. Os pobres podem, de facto, falar dos pobres. Mas onde se fincam essas palavras num papel que não se desmanche pela chuva e pela lama? Onde chegam tais palavras de fome e de riso desfigurado? Os artistas podem, de facto, falar dos pobres, mas a partir de que momento são os encantos da sua graça, uma exploração, uma escadinha pessoal e astuta para escapar dessa mesma pobreza?

Dostoiévski escreveu sobre os pobres. E no seu primeiro romance, Gente Pobre, escrito em 1846 com apenas 25 anos, ele não deixa de mostrar o seu estilo. Pela voz de Varvara Dobroselova e Makar Devushkin, personagens principais que vivem defronte um para o outro e trocam cartas e mimos, o autor goza com a má literatura russa da época e enaltece Gogol e Pushkin. No final do livro Dostoiévski já era a nova "estrela" da literatura russa. Mas isso não impediu de nos mostrar a pobreza como uma circularidade epistolar infinita entre as pequenas e as grandes tristezas/alegrias. Um presente infinito, sem perspectiva de fuga, além do remendo no casaco, do remendo na barriga, do remendo na dignidade quando um outro pobre nos possa dizer o quão pobres, afinal, somos.

Eu não sei quem pode falar em nome dos pobres, e isso, não sei, deixa-me mais pobre. 

terça-feira, 5 de janeiro de 2016



I touch your lips and all at once the sparks go flying
Those devil lips that know so well the art of lying
And though I see the danger, still the flame grows higher
I know I must surrender to your kiss of fire

Just like a torch, you set the soul within me burning
I must go on along this road of no returning
And though it burns me and it turns me into ashes
My whole world crashes without your kiss of fire

I can't resist you, what good is there in trying
What good is there denying you're all that I desire
Since first I kissed you my heart was yours completely
If I'm a slave, then it's a slave I want to be
Don't pity me, don't pity me

Give me your lips, the lips you only let me borrow
Love me tonight and let the devil take tomorrow
I know that I must have your kiss although it dooms me
Though it consumes me, your kiss of fire

Since first I kissed you my heart was yours completely
If I'm a slave, then it's a slave I want to be
Don't pity me, don't pity me

Give me your lips, the lips you only let me borrow
Love me tonight and let the devil take tomorrow
I know that I must have your kiss although it dooms me
Though it consumes me, your kiss of fire....

domingo, 3 de janeiro de 2016

Spotlight





Pois... é um pouco isso. E como em 2015 o factor choque da pedofilia na igreja católica é igual a 0, nem sou americano —e por isso mesmo, menos interessado nos detalhes do procedimento do caso— restam poucos motivos de interesse em Spotlight

Entretanto também li que isto vai ao "fundo da questão" como nos filmes de Wiseman. Credo, as coisas que se escrevem... Ainda para mais em locais respeitáveis.

Palavras infectadas

Enquanto isso... numa tradução de Dostoiévski:

Diz o senhor que me ocultava a verdade porque me ama. Eu bem vejo o que o Makar Alekséevitch faz por mim, já desde o tempo em que me quis convencer de que apenas gastava comigo o dinheiro que dizia ter de reserva no montepio, para o que desse e viesse. 

sábado, 2 de janeiro de 2016

2016, eis-nos no mesmo lugar

CARACOL, EIS-NOS NO MESMO LUGAR.
Que pressa... Tenho andado para lá 
E mais depressa ainda para cá
E nem ultrapassei o teu vagar!
Tu és a tartaruga e eu Aquiles.
Meu calcanhar a minha inteira vida...
Ó Sísifo, persegue essa subida
Com alma calma, ainda que vaciles...
És a medida grata dos meus dias.
Saber-te insuperável traz-me alento.
Inglório, o nosso esforço é esquecimento
Quando da vida a bota nos esmaga.
O jardineiro chama-te uma praga.
Tu, praga? Só se for de alegrias!

in Nó - Daniel Jonas