Calvary é um bom filme para explicar como o mecanismo do overwriting pode ser uma qualidade. Diálogos de um nível besta-metafísico, com uma estranheza linchiana a tentar controlar o riso do bizarro. John Michael McDonagh ao mesmo tempo que quer recriar o sacrifício crístico do padre James, coloca o magnífico Brendan Gleeson entre 12 lunáticos discípulos, cada um deles a muito bem poder matar um padre ao fim-de-semana. O filme tem uma dessas premissas genuinamente loucas e improváveis: um pecador confessa-se ao padre dizendo-lhe que sabe qual o sabor do sémen, que foi abusado repetidamente em criança por um seu colega eclesiástico e que por isso mesmo, no próximo domingo, vai matar o seu confessor, culpando-o pelos pecados do outro. A partir desta insanidade temos uma semana de calvário em que Brendan se vai preparando para a execução. O whowilldunit é nosso pois o padre sabe quem é o culpado. Mas o mais incrível em Calvary é que esta premissa doida, à primeira vista, comporta o "pecado" de ser demasiado subserviente à alegoria espiritual e religiosa que se concluirá no domingo seguinte. E até sabemos o local, na praia. Mas se nos pusermos a pensar um bocadinho, esta motivação vaga, displicente, serve apenas para desinvestir no thriller e apostar tudo na redenção. Qualquer um podia ter morto o padre James. Qualquer um podia não tê-lo feito. Tal é indiferente ante a forma como McDonagh joga o "erro" da escrita como trunfo. Desta forma, as cenas, verdadeiras set pieces de actuação e escrita (a cidade é pequena e o orçamento ainda menor, põe-no como evidência) podem muito bem deixar-se ir, resvalar ao ridículo, voltar à crise de fé e deixar que no final o espectador se sinta tão pecaminoso como qualquer das personagens. E sem saber bem porquê. Ou melhor, o único crime foi ter gostado de cinema e ter achado o sotaque irlandês algo que se bebe tranquilamente ao fim-de-semana em direcção à anestesia etílica.
quarta-feira, 1 de julho de 2015
O sotaque dos padres irlandeses embebeda
Calvary é um bom filme para explicar como o mecanismo do overwriting pode ser uma qualidade. Diálogos de um nível besta-metafísico, com uma estranheza linchiana a tentar controlar o riso do bizarro. John Michael McDonagh ao mesmo tempo que quer recriar o sacrifício crístico do padre James, coloca o magnífico Brendan Gleeson entre 12 lunáticos discípulos, cada um deles a muito bem poder matar um padre ao fim-de-semana. O filme tem uma dessas premissas genuinamente loucas e improváveis: um pecador confessa-se ao padre dizendo-lhe que sabe qual o sabor do sémen, que foi abusado repetidamente em criança por um seu colega eclesiástico e que por isso mesmo, no próximo domingo, vai matar o seu confessor, culpando-o pelos pecados do outro. A partir desta insanidade temos uma semana de calvário em que Brendan se vai preparando para a execução. O whowilldunit é nosso pois o padre sabe quem é o culpado. Mas o mais incrível em Calvary é que esta premissa doida, à primeira vista, comporta o "pecado" de ser demasiado subserviente à alegoria espiritual e religiosa que se concluirá no domingo seguinte. E até sabemos o local, na praia. Mas se nos pusermos a pensar um bocadinho, esta motivação vaga, displicente, serve apenas para desinvestir no thriller e apostar tudo na redenção. Qualquer um podia ter morto o padre James. Qualquer um podia não tê-lo feito. Tal é indiferente ante a forma como McDonagh joga o "erro" da escrita como trunfo. Desta forma, as cenas, verdadeiras set pieces de actuação e escrita (a cidade é pequena e o orçamento ainda menor, põe-no como evidência) podem muito bem deixar-se ir, resvalar ao ridículo, voltar à crise de fé e deixar que no final o espectador se sinta tão pecaminoso como qualquer das personagens. E sem saber bem porquê. Ou melhor, o único crime foi ter gostado de cinema e ter achado o sotaque irlandês algo que se bebe tranquilamente ao fim-de-semana em direcção à anestesia etílica.
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