Dos biólogos aos cinéfilos, passando pelos maluquinhos dos
documentários de animais, há pouca gente que fique indiferente aos
filmes de Jean Painlevé. Há nele o que antecipa, há nele o que emociona,
mesmo o que diverte neste universo de polvos a copular, cavalos
marinhos a dar à luz ou crustáceos armados em guerreiros japoneses. Além
desta atracção de puxar o cinema para um género que actualmente sofre
de incontinência dramática e ficcional (lembro-me há uns anos de um
documentário sobre tubarões, tão bem montado mas tão pouco filmado que
parecia que Eisenstein tinha ido a uma ilha do pacífico filmar dois
tubarões a caçar peixe graúdo durante 2 minutos e depois tivesse
transformado aquilo num épico de hora e meia).
Seja como for não é
disto que falo aqui. O título que quer a edição BFI, quer a edição
Criterion deram à apresentação em dvd dos seus filmes, "Science is
Fiction", ajuda a ir mais correctamente ao fundo da chata e velha questão da relação entre ficção e documentário. Claramente quando Painlevé nos chama a atenção pela voz
off ou pelos planos de detalhe para a pulsação do cavalo marinho que
acelera, ou os olhos que mudam de tamanho quando está prestes a dar à
luz, ele está a trabalhar sobre o nosso arquivo ficcional do esforço e
das imagens estereotipadas do parto humano. Ou quando, com aquela voz
cavernosa que parece extraída de um filme de monstros da Universal,
solta, no início de Les Amours de la Pieuvre (1967), um "pieuvre, animal horrifique...",
juntamente com uma música assustadora, desloca a percepção que temos do polvo
para uma imagem sua pesada, misteriosa, que depois irá aligeirar à medida
que entra pelos affairs da sedução dos bichinhos lá mais para a frente.
Estes
exemplos são a técnica ficcional a entrar pelo universo da ciência,
pelo documentarismo. Contudo, essa permeabilidade, esse acasalamento
entre espécies, dá-se porque o órgão sexual masculino do drama ficcional
penetra, biologicamente, a cavidade do real. Quer dizer, e livrando-me
da horrenda metáfora, talvez Painlevé nos tenha mostrado o que é uma
evidência. É que a ciência, o seu método, as suas descobertas
progressivas do mundo, são apenas sistemas articulados de ficção que
usamos para gerir um aparente discurso de verdade incontestável e de progresso. Se a ciência for um tipo diferente de ficção, os sistemas
ficcionais do cinema, ao narrá-la, estão apenas a dar uma determinada
forma dramática a uma sequência que já de si contém em gérmen uma
estrutura narrativa. Sendo bichos da mesma espécie, a ciência e a
ficção, ou puxando mais longe, a ciência e a arte, talvez sustenham quer o
mais elaborado e inventivo exercício fílmico como se passa com os
filmes de Painlevé, quer permitam o mais elementar antropomorfismo do não
humano. Basicamente os pinguins a dizer, "fixe, malta!".
No fundo é como o sexo: há boas e más acoplagens. Não me consigo livrar da metáfora, desculpem-me, pela vossa saúde.
Estás desculpado. Esta maravilhosa prosa assim o dita.
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