segunda-feira, 30 de março de 2015

Quando os cavalos marinhos dão à luz (não, não é M. Rebelo Pinto)

Dos biólogos aos cinéfilos, passando pelos maluquinhos dos documentários de animais, há pouca gente que fique indiferente aos filmes de Jean Painlevé. Há nele o que antecipa, há nele o que emociona, mesmo o que diverte neste universo de polvos a copular, cavalos marinhos a dar à luz ou crustáceos armados em guerreiros japoneses. Além desta atracção de puxar o cinema para um género que actualmente sofre de incontinência dramática e ficcional (lembro-me há uns anos de um documentário sobre tubarões, tão bem montado mas tão pouco filmado que parecia que Eisenstein tinha ido a uma ilha do pacífico filmar dois tubarões a caçar peixe graúdo durante 2 minutos e depois tivesse transformado aquilo num épico de hora e meia). 



Seja como for não é disto que falo aqui. O título que quer a edição BFI, quer a edição Criterion deram à apresentação em dvd dos seus filmes, "Science is Fiction", ajuda a ir mais correctamente ao fundo da chata e velha questão da relação entre ficção e documentário. Claramente quando Painlevé nos chama a atenção pela voz off ou pelos planos de detalhe para a pulsação do cavalo marinho que acelera, ou os olhos que mudam de tamanho quando está prestes a dar à luz, ele está a trabalhar sobre o nosso arquivo ficcional do esforço e das imagens estereotipadas do parto humano. Ou quando, com aquela voz cavernosa que parece extraída de um filme de monstros da Universal, solta, no início de Les Amours de la Pieuvre (1967), um "pieuvre, animal horrifique...", juntamente com uma música assustadora, desloca a percepção que temos do polvo para uma imagem sua pesada, misteriosa, que depois irá aligeirar à medida que entra pelos affairs da sedução dos bichinhos lá mais para a frente.

Estes exemplos são a técnica ficcional a entrar pelo universo da ciência, pelo documentarismo. Contudo, essa permeabilidade, esse acasalamento entre espécies, dá-se porque o órgão sexual masculino do drama ficcional penetra, biologicamente, a cavidade do real. Quer dizer, e livrando-me da horrenda metáfora, talvez Painlevé nos tenha mostrado o que é uma evidência. É que a ciência, o seu método, as suas descobertas progressivas do mundo, são apenas sistemas articulados de ficção que usamos para gerir um aparente discurso de verdade incontestável e de progresso. Se a ciência for um tipo diferente de ficção, os sistemas ficcionais do cinema, ao narrá-la, estão apenas a dar uma determinada forma dramática a uma sequência que já de si contém em gérmen uma estrutura narrativa. Sendo bichos da mesma espécie, a ciência e a ficção, ou puxando mais longe, a ciência e a arte, talvez sustenham quer o mais elaborado e inventivo exercício fílmico como se passa com os filmes de Painlevé, quer permitam o mais elementar antropomorfismo do não humano. Basicamente os pinguins a dizer, "fixe, malta!".

No fundo é como o sexo: há boas e más acoplagens. Não me consigo livrar da metáfora, desculpem-me, pela vossa saúde.

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