Sentado, deitado ou de pé os filmes continuam a ter de ser vistos. Haja corpo para eles. A "sensação" sci-fi de 2018 é a segunda realização do argumentista de Saw (Saw-Enigma Mortal, 2004) e colega de escola de James Wan, Leigh Whannell. Falo de Upgrade (2018), ainda sem data de estreia por cá, um filme que actualiza tecnologicamente a lógica de RoboCop (Robocop - O polícia do futuro, 1987), adicionando (ainda) o ingrediente human enhancement (agora na fase da nanotecnologia) a uma história de vingança não muito distante de Death Wish (1974) e do vigilante Bronson. Mas enquanto no mundo imaginado por Verhoeven nos anos 80 havia uma candura deliciosa, o humano era uma fonte de mel e humanismo no meio de quilos de pesado metal, hoje, as lições de Cronenberg parecem ter sido apreendidas: o metal penetrou a carne, e, quando o corpo humano falha [o seu protagonista, Logan Marshall-Green, fica tetraplégico num assalto], chegam as metralhadoras incorporadas no tecido muscular (um novo significado para a palavra hand gun) e chega, sobretudo, um novo better brain.
O que mais interessa no filme de Whannell é precisamente a actualização do velhinho jogo de xadrez entre o homem e a tecnologia, na qual esta última começa a comer peças já no campo do adversário, isto é, desafiando a consciência humana, como a esse rei a quem se faz cheque-mate. Apetece citar Ágata:
"Podes ficar com as jóias, o carro e a casa / Mas não fiques com ele."
Na lógica de Upgrade, "as jóias, o carro e a casa" são isso mesmo, o material, ou melhor, a disponibilidade da materialidade de um corpo; e o "ele" seria esse último bastião de resistência, a consciência. É pena, contudo, que o filme se deixe fascinar pela observação do corpo "aumentado", os efeitos desse controlo de um corpo paralisado por um chip que o aumenta ao níveis de super ninja (como se diz, a dada altura) e tudo se perca um tanto na lógica do action movie, e dos twists e contra twists para achar um culpado da situação.
No entanto, essa inabilidade de um corpo fez-me regressar, com pezinhos (ainda funcionais) de lã, aos anos 70 e 60. O que fazíamos então com o nosso corpo quando esse passava do prazo de validade?
Escrevíamos, como Dalton Trumbo, sob um pseudónimo, quando o comunismo era "vírus mortal" que paralisava o corpo? Explico. Trumbo foi um notável argumentista norte-americano que escreveu parte importante da sua obra, sobretudo finais da década de 40 e década de 50, sob outros nomes. Falo de filmes tão notáveis como Gun Crazy (Mortalmente Perigosa, 1949) de Joseph H. Lewis, The Prowler (O Cúmplice das Sombras, 1951) de Joseph Losey, ou Roman Holiday (Férias em Roma, 1953) de William Wyler, este último tendo-lhe valido um Óscar, reconhecido apenas após a sua morte em 92. A razão deste "corpo escondido" deveu-se, já devem ter adivinhado, a ter sido um dos "dez de Hollywood" que recusou testemunhar ante o HUAC- House Un-American Activities Committee nos anos quarenta na perseguição comunista que se conhece. O resultado foi a prisão, o exílio no México e toda uma parte da sua carreira sob velada identidade.
Upgrade remeteu-me para a única experiência na realização de Trumbo, Johnny Got His Gun (E Deram-lhe Uma Espingarda...1971), baseado num romance que havia publicado em 1938, inspirado num caso verídico de um ferido americano da 1ª Guerra Mundial cujo corpo estava em tal estado – sem braços, pernas, visão ou audição, mas com consciência – que havia sido internado num quarto secreto durante cerca de 15 anos sem que se soubesse o que fazer com ele. [Se ao menos nessa altura se falasse já em chips miraculosos, a história seria naturalmente outra...] Trumbo tentou que o seu romance passasse ao cinema mas sem sucesso devido a todas estas ocorrências. Só em meados da década de 60, o produtor de Luis Buñuel, Gustavo Alatriste, se dispôs a produzir o filme, e a intenção era que fosse o espanhol a assumir a realização. Buñuel, que chegou mesmo a colaborar no argumento (e quem vir o filme percebe logo o seu dedo no onirismo que vai fazendo a ponte entre o jovem soldado na cama do hospital e as sequências do seu passado/sonho), acabou por não dirigir Johnny Got His Gun e tudo se fez apenas em 71, com Trumbo a encarregar-se da realização.
Torna-se assim fácil perceber que, a par da mensagem anti-militarista que acabou por ser premiada em Cannes nesse mesmo ano, Johnny é também um filme que, ainda que inadvertidamente, comenta parte da carreira do próprio realizador, de mãos e pés atados. Situação de que apenas se começou a libertar com o "auxílio" de Otto Preminger e Kirk Douglas quando estes insistiram que o seu verdadeiro nome aparecesse no genérico de Exodus (Éxodo, 1960) e Spartacus (1960). Mas enquanto Upgrade é um filme sobre a desesperada e imediata superação da imobilidade, Johnny é um filme-meditação acerca da mobilidade como condição de comunicação com o exterior. O que não deixa de ser interessante, pois é possível imaginar um raccord entre os dois. O soldado Joe (Timothy Bottoms) tenta aperceber-se da sua condição, recorrendo, oniricamente, à fé e diálogo com Cristo (um excepcional e novíssimo Donald Sutherland), à conversa com o seu falecido pai (o não menos genial Jason Robards) e numa empatia possível com uma das enfermeiras. O calor do sol, a comunicação por código morse, o aperceber-se do tempo que passa, a mensagem da chegada no Natal, mesmo a hipótese de eutanásia, são tudo soluções que o filme de Trumbo trabalha para evitar o isolamento com o mundo. No final - spoiler - o jovem cujo corpo nunca vemos ao longo do filme (mesmo nas sequências de juventude, aquele aparece-nos nu, na penumbra) permanece encerrado, mas não morto, pedindo ajuda, SOS. Empatia e comunicação como superações da mobilidade.
Agora imaginemos este raccord, em que esse corpo sobrevive e que, chegando a 2018, recebe uma pílula tecnológica que o faz mover e matar e esmurrar como ninguém. A razão pela qual a Whannell não lhe interessa reflectir acerca da imobilidade mas sim adicionar-lhe acção e movimento é o mesmo motivo pelo qual a apresentadora da RTP, Sónia Araújo, sabe que, quando convida uma professora de yoga para o programa tem de ir comentando sempre a sua meditação em directo, escapando ao essencial silêncio, ao horror do vazio declarado pela "caixa que mudou o mundo". Mas essa recusa de Whannell tem também, e ainda, o mesmo motivo que fez os médicos que trataram o caso de Joe encerrá-lo num quarto. Pensar que o contrário da paralisação de um corpo é a injecção de movimento. Por isso, Johnny Got His Gun termina nesse implacável pause, nessa espera pela tecnologia. E Upgrade, quarenta e tal anos depois, parece vir dizer-nos que a espera foi, em parte, em vão. A mobilidade como uma forma de acrescento do cinético não se confunde com o movimento do cinema. Talvez nem fosse necessário recorrer às cenas a cores, do passado e dos sonhos do soldado Joe, para perceber que o filme de Trumbo se mexe muito mais. O cinema do filme de Trumbo mostra-nos, inequivocamente, que a mobilidade é sobretudo um affair de emoção, da capacidade de nos transportar de uma carne que é nossa, para outros espaços que se fazem, progressivamente, nossos. Falou-se da "ousadia" da hipótese da eutanásia ser avançada assim no cinema americano nos anos setenta, mas essa ousadia é menor quando comparada com este verdadeiro valor do movimento, do que fazer com um corpo que, fisicamente, não se mexe. E sim, estou a falar de Oliveira, e Dreyer, e os êxtases frenéticos da imobilidade física. Se acham que isto não é ousado o suficiente, recuemos ainda mais dez anos.
Les dimanches de Ville d'Avray (Os domingos de Cybele, 1962) de Serge Bourguignon foi o candidato francês aos Óscares em 1963. Escândalo. Na "sombra" ficaram, nada mais nada menos do que: Jules and Jim (1962) e Vivre sa vie: Film en douze tableaux (Viver a Sua Vida, 1962). A indignação fazia algum sentido até porque se dizia que as grandes influências do realizador francês eram sobretudo as viagens e documentários que tinha feito pela Ásia e, quanto muito, uma certa veneração (um certo espelhismo, e aqui a palavra, como verão, é importante) face à dimensão narrativa do cinema norte-americano. Longe, portanto, dos experimentalismos da vaga. O filme, adaptado de uma obra de um romancista francês, Bernard Eschasseriaux, começa com imagens a negativo da guerra da Indochina, desencadeando no momento em que o soldado Pierre (o alemão Hardy Krüger) "devirá" pedra ao atingir mortalmente uma criança. O resto das imagens que Bourguignon filmou poderiam bem ser uma tentativa de resposta a essa pergunta que venho deixando nas entrelinhas: "o que farei eu com este corpo?".
Mas, ao contrário do filme de Dalton Trumbo, aqui não é bem o corpo que fica inutilizado. Aliás, trata-se um homem alto, louro e bem constituído, como descreve a dada altura a sua namorada Madeleine (Nicole Courcel), quando procura por ele. É antes o espírito que vagueia, sem identidade, amnésico, órfão de uma certa capacidade de integração mental, até sexual, no seu pós-guerra. Falta introduzir a terceira personagem, também ela órfã, uma menina abandonada pelo pai num convento de freiras e que começará a passar os domingos com Pierre. Como em Johnny Got His Gun os despojados de guerra procuram uma qualquer reparação, física e/ou emocional. Não por acaso, quer num quer noutro filme são as sequências no Natal as mais líricas e duras.
Pode dizer-se, e com uma dada razão, que Les dimanches de Ville d'Avray é um filme hiper-consciente da sua atmosfera de melancolia e abandono. Sobretudo nas cenas de passeio pelos bosques de Pierre – o amante que "deveria" ser pai –, com a sua Françoise si belle (Patricia Gozzi) – a amante platónica que "deveria" ser filha. Momentos de um onirismo fantasmático, retirado do mundo, em parte responsabilidade da luz maravilhosa de Henri Decaë e a fazer lembrar um pouco Hestnes e Inês de Medeiros em O Sangue (1989). Mas também se deve salientar que a mise-en-scène de Bourguignon trabalha, incansavelmente, sobre uma ideia de reflexo, sendo que os planos mais evidentes de tudo isto são: 1) um que apanha o andar na rua de Pierre através de um espelho lateral de um carro que faz tremer e tremer a sua imagem; 2) os passeios dos dois no bosque vistos, ou melhor, desenhados pelos reflexos das águas. E quando digo uma mise-en-scène incansavelmente reflexiva refiro-me ao facto de tudo se enrodilhar a dada altura em torno deste encontro de reflexos de pessoas despedaçadas, uma criança-adulto e um adulto-criança, que desfazem uma ideia de sexualidade proibida, que contorna – são os anos sessenta, lembrem-se – a questão da pedofilia. E depois, e aqui está talvez o facto deste ser um pouco um "filme órfão" de um realizador que pouco rasto deixou, tudo procura reflectir, icónica e narrativamente, esta ideia, como por exemplo podemos ver na metáfora das gaiolas que Pierre constrói com um amigo escultor. Ou como tudo parece antever, avisar-nos, para a tragédia, que, quando acontece, mais parece uma pedra que antes de cair, já estava no chão.
E termino este mês com um posfácio-twist – também tenho direito – revelando-vos a verdade. Ou como tive a ideia inicial para esta crónica. Vendo o magnífico programa Nanette da comediante Hannah Gadsby. Sendo originária da Tasmânia, e lésbica, a sua adolescência e início da vida adulta não foi nada fácil na pequena ilha australiana. O seu trabalho permitiu-lhe fazer uma espécie de sublimação cómica do seu passado, como forma de lidar com anos de traumas, discriminações e violências. E tudo porque o seu corpo, como o dos protagonistas destes três filmes, era visto como necessitando "reparação", upgrade. O mérito de Nanette está numa certa imbricação corpo-alma, forma-conteúdo. Na sua forma, ele percorre todo o espectro: faz-nos rir, faz-nos emocionar, faz-nos ficar angustiados, tensos, enervados, revoltados. E nessas transições não somos mais do que um io-iô nas suas mãos. Uma das frases que mais cravadas ficam é aquela em que Gadsby, ao nível de uma definição de identidade de género, se identifica sobretudo como "cansada". Cansada de ter de afirmar a sua identidade, de a usar como um estandarte (fazer dela comédia de efeito político), de suportar que, tal como os soldados que tratam Joe, o melhor é mantê-la num quarto escuro à espera de "solução".
Durante o espectáculo, nesse espectro que vai do humor ao desgosto, da auto-crítica à raiva e ao ressentimento, há momentos complicados, há frases com as quais nada concordo. Nomeadamente, a ideia de que a tomada de consciência de que a nossa História é patriarcal e cheia de abusos sobre as mulheres, deve ser expandida ao ponto de uma certa reescrita daquela. Como um gigantesco lápis azul que extirpasse/desvalorizasse/criticasse tudo o que tivesse tido origem por via desta desigualdade e abuso de um género sobre tudo o que o rodeou. Pergunto-me que História sobraria se fôssemos de facto consequentes, se essa ideia fosse mais do que perigosa retórica de natureza censória? O que não quer dizer que não possamos alterar a história a partir de agora. Mas em tudo o mais Nanette é brilhante e deixa-nos sobretudo a resposta, quando Gadsby deixar de "cantar e dançar" sob o seu trauma, à pergunta: "que farei eu com este corpo?". Com este corpo talvez possamos contribuir para que ele seja aceite tal qual é, para que mais do que se reponha uma igualdade de géneros e se combatam os abusos de uns sobre os outros, se tenha o poder de destruir a própria balança que faz o humano pender mais para a direita ou mais para a esquerda. É isso que talvez possamos fazer com este corpo e com este "chip" chamado consciência.
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