segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Coelho Mau - Carlos Conceição


É o primeiro plano de Coelho Mau (2017) e já estamos em viagem. Seguimos uma mota e a câmara passa, de forma elegante, das rodas da viatura e da estrada alcatroada até aos seus dois jovens ocupantes - João Arrais, presença obrigatória do imaginário de Carlos Conceição, e Julia Palha. Ele tem um chapéu de orelhas de coelho, ela uma máscara de oxigénio. Adereços de juventude ou necessidades de idade adulta? O filme, claro, não dará resposta evidente, pois é nesse "entre" que habita. As oposições criativas entre a carne "culpada" e a alma inocente (penso precisamente em Carne de 2010), entre a turbina da juventude e a desaceleração da velhice [o mesmo Arrais e Isabel Ruth em Versailles (2013)], e finalmente, entre o moralismo dos contos de fadas e o fetichismo dos contos de fodas, são tudo terrenos onde Carlos Conceição quer plantar as sementes da sua discórdia cinematográfica.

A atitude não parece ser uma curiosidade por ver o "sangue" que resulta do embate destas realidades tradicionalmente separadas. Trata-se de fazer ver que, como aqui neste seu último filme, não há uma verdadeira separação entre o coelho e o lobo, entre o maravilhoso e o perverso, entre o desejo sexual e o acto de abnegado sacrifício. Por isso é tão importante aquele momento em que a personagem do João, depois de entregar a sua irmã "às feras", cá em baixo junta à sua casa na árvore, imita um mocho e é do bosque que lhe vem a reposta: um uivo de lobo. Ao contrário do que acontece algumas vezes no formato curto - onde cada plano, pelo seu apuro formal, poderia ser em si mesmo uma curta-metragem - em Coelho Mau as personagens vêem o seu universo expandido pela noite que as habita e que aos seus problemas lhes responde. Estamos assim na arte de tornar o curto-longo, na capacidade de sugerir pelos indícios um mundo mais aberto, onde ao espectador "desamparado" lhe vem, simultaneamente, a inocência demencial de James Stewart e o seu amigo em Harvey (1950), a bizarria cool que foi o filme de Richard Kelly em 2001, Donnie Darko, e claro, o monstro nocturno de látex, de O Fantasma (2000), de João Pedro Rodrigues, realizador que é, por cá, o parente mais natural para o seu cinema.

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