Dentro desse núcleo dos filmes que amamos, teremos sempre os filmes que são pontos de viragem e de não retorno. Como se vivêssemos numa casa e descobríssemos portas - antes fechadas, impenetráveis, invisíveis aos nossos olhos - que nos dão acesso a novas divisões e dimensões: passagens para outra percepção das possibilidades do cinema. Talvez sejam estes os filmes da nossa vida, os que nos estruturam o olhar, contendo e expressando a nossa vida interior, os nossos desejos, medos e contradições.
Tinha três anos quando vi numa sala de cinema o “Bambi”, inscrito na minha linha biográfica como o meu primeiro filme. Não tenho qualquer memória concreta do momento, mas é curioso que a consciência da morte seja, ainda hoje, o tema que mais me move. Filme sobre a passagem do tempo, sobre o processo de luto, sobre a amizade e o amor, “Bambi” parece abranger, nos seus setenta minutos, a fenomenologia de viver no mundo.
Aos dezassete anos, após ver o “Aurora” do Murnau, desisti da ideia de ser advogado para concorrer à escola de cinema. Lembro-me de ficar tão siderado que percebi que não queria apenas passar a vida a ver filmes, mas também fazê-los. O caminho do cinema é violento, tão construtivo como auto-destrutivo, mas soube desde o primeiro dia de aulas que tinha encontrado o meu lugar.
Meses depois de ter entrado na escola de cinema, durante uma sessão na Cinemateca, lembro-me de um plano do “The Shop Around the Corner” do Lubitsch que me deixou sem coordenadas. Foi talvez o primeiro plano que me fez pensar no próprio conceito de plano. Percebi que uma imagem podia conter simultaneamente uma lógica estética, intelectual e emocional. Apreendi que havia ordens, sentidos e efeitos dentro da complexa estrutura do cinema. Senti que um plano era uma ação que arrasta consigo ecos e sonhos, jogando com esse momento onde o passado e o futuro colidem. Um plano onde a mão de Klara Novak (Margaret Sullavan) procura, em vão, uma carta numa caixa de correio. Uma mão que abarcava toda a fome afetiva, toda a vontade de encontrar e de ser encontrado, num momento a que se seguiria a desilusão e o vazio. A vida a acontecer, portanto.
Cada ida à sala de cinema é, será sempre, uma mão à procura de uma possibilidade.
Carlos Pereira*
*Carlos Pereira é realizador e programador de cinema, trabalhando atualmente como membro do comité de seleção para a Berlinale (Generation).
Para saber mais sobre a rubrica Árvore da Cinefilia.
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# 14 Alexandre Andrade
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# 16 Bruno Andrade
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#18 Luís Mendonça
#19 Rui Alves de Sousa
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