domingo, 10 de setembro de 2017

Árvore da Cinefilia #18- Luís Mendonça


Lembro-me perfeitamente do momento em que se deu a minha cine-filiação. Foi na RTP2, na apresentação de João Bénard da Costa a Spellbound. Bénard isolava de todo o filme a sequência do beijo entre Ingrid Bergman e Gregory Peck. Hitchcock filmava o pico da paixão através de uma metáfora: várias portas que se abriam em direcção ao infinito. Era a suprema imagem da volúpia. A paixão não conhecia obstáculos. Não havia segredos atrás da porta, mas somente puro êxtase. Este beijo não é só um beijo, parecia que explicava assim João Bénard da Costa. Através do cinema, aquele encontro de lábios rompia com o espaço e com o tempo. Esta lição de Bénard, prévia ao filme, deu-me a ver uma possibilidade que me abriu os olhos acerca da potência de um cinema – o da Hollywood clássica – que me iria habituar a ter como uma casa: se o encontro daqueles dois lábios pode tudo, também o encontro do olho com a superfície das imagens permite todas as viagens. E como podemos sonhar à boleia de refinados – e até docemente envergonhados – momentos de paixão fílmica apresentados num filme com mais de 60 anos...

Por portas e mais portas. É este o percurso do cinéfilo no encontro com os objectos do seu desejo – os filmes e, neles, os rostos das estrelas, os gestos dos corpos, os movimentos de câmara, os embates da luz no cenário, uma cosmologia que existe apenas ali, na cabeça. Não, Bénard era um romântico e punha a cinefilia sob o signo do coração. Punha, desse modo, o coração a ver, e a rever, e a rever-se, num filme psicanalítico filmado por Hitchcock, sonhado por Dali. Quando vi a sequência do beijo, previamente lida por Bénard, já não vi outra coisa senão a leitura dessa sequência que o ex-director da Cinemateca Portuguesa me presenteara. O cinema estava no modo, tão contagiante, como olhamos e sentimos os filmes. A cinefilia é o feitiço que permite que o cinema nunca se esgote ou se canse de nós ou nos "feche a porta". Uma história de amor sobre portas e mais portas que se abrem para lado nenhum. Até ao infinito.

*Luís Mendonça

*O Luís além de ser um dos membros fundadores do site À pala de Walsh é também doutorado em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. É ainda autor do livro "Fotografia e Cinema Moderno: Os Cineastas Amadores do Pós-Guerra".

Para saber mais sobre a rubrica Árvore da Cinefilia.
Edições anteriores: #1 Francisco Rocha.
                                    #2 Pedro Correia.
                                    #3 Carlos Alberto Carrilho
                                    #4 Álvaro Martins
                                    #5 Leandro Schonfelder
                                    #6 Samuel Andrade
                                    #7 Vítor Ribeiro
                                    #8 José Marmeleira
                                    #9 Maria João Madeira
                                    #10 João Lisboa 
                                    # 11 Ricardo Vieira Lisboa  
                                   #12 Daniel Curval  
                                    #13 Inês N. Lourenço
                                    # 14 Alexandre Andrade
                                    # 15 Vasco Câmara
                                                    # 16 Bruno Andrade
                                                    # 17 Carlota Gonçalves

Sem comentários:

Enviar um comentário