Se andar para trás encontro muitos filmes vistos entre projecções domésticas, drive ins, cineclubes, salas pequenas e grandes, numa infância e pré adolescência em África, (Moçambique), ela já tão cheia de imagens. Daí saíram animações, aventuras, peplums, westerns, comédias, filmes indianos Bollywood românticos e dançantes, etc., etc. Gostava disto tudo com a permeabilidade de quem está a descobrir o mundo pela mão do pai que levava a família toda nestas viagens – pai, era exactamente igual a cinema.
Adorei sempre uma animação da Menina dos Fósforos que nunca via morrer, para mim ela dormia e sonhava, descobri mais tarde a linda versão do Renoir de 1928. Depois disto foi tanto filme que ficaria a dar muitas voltas para os mapear por ordem, ou desordem de gosto e atracção. Lembro-me do contexto associado à experiência do filme, isso é fácil lembrar, de arrastar um amigo francês, em Paris, para ver ‘’O último ano em Marienbad’’, do Resnais, que ele à partida achava chato. E finalmente não achou, gostou mesmo muito e eu gostei também, daquela matinée e daquele fio de palavras e memórias e da liberdade narrativa de andar para trás e para a frente – viva o nouveau roman! Lembro-me também logo do estrondoso "Le Mépris", o Godard perfeito, é fácil gostar é certo, dizia ser o meu filme preferido. Saí com a voz da BB, o seu o tom voluntarioso, agreste, ela em Camille, com a resposta na ponta da língua: “Paul: Pourquoi as-tu l’air pensive?” “Camille: Parce que je pense, imagine-toi!”. O filme tinha tudo do cinema e das outras coisas, e tinha ainda o Fritz Lang – outro que adoro. Com o Lang entrei nos filmes noir, lugar de puro prazer de onde ainda não saí. Ainda houve antes o Bogart (que o pus na parede), e a "Relíquia Macabra", aquele falcão maltês desenhou-me um sub mundo supra sedutor. A partir daí foi só abrir portas. Com o intrépido Bunuel foi um amor sem fim a mostrar a arma poderosa do humor a decompor o mundo, e o mundo visto à sua lupa. O Fuller foi outra perdição, há poucas palavras para o vigor e dimensão do seu cinema. Depois veio o Franju e o Borzage como belos encontros (beleza de fundo e formal), que valeram muito e continuam a valer.
Outra experiência de filme ligado ao contexto foi o magnífico "O Salão de Música", do Satyajit Ray, o genérico colou-se-me. Que forma mais enleante de entrar num filme, se não visse mais nada aquele início já tinha valido. Depois viria a personagem a fundir-se com o lustre, a olhar-nos, a entrar no seu círculo obsessivo, o salão, a música, (muita), a dança, o transe, tudo a puxar para o interior do filme. Mas o lustre, (metonímico), do genérico foi o que me ficou a bailar na cabeça e permitiu uma entrada hipnótica pelo filme dentro. O cinema a entrar assim com aquele pré-aviso, a crescer à minha frente, foi incrível, a mostrar a sua face obscura, profética, com uma clareza cega de uma missão a cumprir. Nunca mais o esqueci, revi-o depois mais vezes e gosto sempre daquele convite, daquela entrada no escuro do filme e no cinema.
E vou parar por aqui para não continuar com os westerns que adoro e entrar mais na poeira da memória com drama e paisagem a colar à pele.
*Carlota Gonçalves
* A Carlota é programadora no IndieLisboa, colaboradora no site À pala de Walsh, além de leccionar na área da estética.
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