segunda-feira, 1 de maio de 2017

Um plano de Vertigo sobre o abismo

É no delay entre duas vidas, entre a cópia e o real, que surge este plano de «Vertigo» de que gosto tanto. Scotty que havia começado o filme a olhar o abismo, enquanto outros nele se despenhavam, agora parece ele próprio caído, despenhado num caso de «acute melancholia » e «guilt complex». Pelo menos é assim que o médico o descreve à «mommy» dele, a Midge, por quem nunca se apaixonará. Este plano (que são na verdade dois na montagem de George Tomasini) surge depois dela lhe trazer o Mozart, apesar de saber que ele não o vai ajudar de todo. A primeira vez que surge o plano ela diz-lhe: «I brought you a lot of other things, you can see what you like». O que mais gosto neste momento é que a imagem nos mostra o oposto, que Scotty está incapaz de saber o que gosta, que aquele picado abissal está lá para nos mostrar essa queda, essa vertigem como loucura. 

Esta queda, esta fractura da perspectiva, que nos aproxima tanto do colo de Stewart, da tintagem dos seus cabelos, das pernas finas e mãos inertes, começa já por instaurar o problema da divisão que o protagonista vive. Quer dizer, nos somos confrontados com uma proximidade com o actor como se saíssemos da «baixa altitude« da ficção e subíssemos aos píncaros da vista de Deus, da realidade. E só víssemos um actor que encarna uma personagem, que por sua vez está também ele dividido, apaixonado, por uma realidade que, afinal, se irá revelar apenas... uma cópia. Por isso este plano é tão importante para mim: pois é Hitchcock Deus que fala ao espectador dizendo-lhe que o que Scotty vive é o que todo o cinema vive e, já agora, todo o homem vive quando confrontado com os papéis que encarna no quotidiano. Mas se essa fractura parece indicar um plano intelectual, nada podia estar mais incompleto: os "ficheiros estão todos misturados" e além do problema metafísico que instaura a divisão entre Madeleine/Judy, o mais impressionante é esse metáfora visual da loucura como queda, de um homem caído na sua razão e emoção. 

E é o cinema que nos ensinou a olhar para um homem como uma geografia acidentada, algo que pode agir como uma montanha ou conter em si um abismo, impenetrável e sem fundo.

2 comentários:

  1. Como eu gosto de Hitchcock e deste filme. Mas, para mim, ele renasce a partir de outro momento e plano. Num outro momento de loucura... Quando Judy aceita e resigna-se a ser a cópia, a ilusão.

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  2. É quase impossível não digo gostar, mas pelo menos ficar indiferente a este filme. Sim esse momento é muito importante. Este que destaco foi apenas porque nunca tinha reparado, visto com olhos de ver, este plano. Mais por isso. Obrigado pelo comentário.

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