terça-feira, 16 de maio de 2017

A devolução



Um homem de barba caminha na praia. Esta está semideserta e ele vem junto à água. Do sítio onde o comecei a observar não conseguia ver quem era. Um pontinho pequeno, passos depois, um ponto maior, até ganhar formas: as pernas longas, os braços caídos, a cor da pele a tornar-se diferente do creme da areia e do azul da água. Não sei ao que vinha, talvez ao mesmo que eu, isto é, a nada. O seu movimento entrava-me para dentro da cabeça e oferecia-me presentes. Todo aquele espectáculo de cores, o poder enquadrá-lo tão ao longe e ao alto, o imaginar a língua que falaria ou os sinais dos seu corpo como efemérides de uma batalha. Tudo isso que ele me deu, sem me pedir nada em troca, eu próprio lho teria ofertado, acaso ele tivesse olhado na minha direcção, quando ao pé de mim, passou rente à espuma da água. E se o tivesse feito, teria sido uma troca perfeita. É que ele estava a devolver ao mundo, sob a forma de uma acção tão simples como passear à beira mar, tudo aquilo que o próprio mundo lhe havia dado instantes antes. A mesma coisa comigo. 

É tudo uma questão de devolver o que se recebe, de inspiração e de expiração. Mas um devolver transformado, o que engrandece a troca dos seres e das coisas que nos rodeiam. Este senhor, não riam, é a prova de que o capitalismo é uma religião que apenas inspira, não expira. O consumo de bens, que se torna um acto auto-suficiente e nervoso, mais do que implicar uma fractura na lógica do «eu preciso disto para isto», estabelece a quebra desta troca. Eu apenas abro as cancelas do corpo e do espírito a todo os estímulos, ruídos, dejectos, experiências. Mas não desfruto delas, isto é, não há nenhuma devolução para o exterior. E essa devolução, sob a forma de algo interiorizado e retrabalhado pela razão e sensibilidade de cada um, não ocorre por dois motivos. O primeiro porque não há tempo, é preciso passar ao consumo seguinte. O segundo é que a uma bulimia de estímulos e bens corresponde uma anorexia reflexiva e espiritual. Como aquelas rochas que caem num poço e não ouvimos bater no fundo. Não há fundo. Ou se há, de facto, o próprio não o consegue ouvir.

E volto ao senhor da praia. Se acaso ele soubesse que me estava a dar tudo aquilo, será que iria querer algo em troca? Ou será que iria modificar o seu comportamento, ou seja, colocar-se em modo de venda, de auto-promoção de uma imagem para ser consumida? Tudo isto é confuso, mas uma coisa parece clara. A devolução genuína não é feita apenas a pessoas, é feita em direcção a tudo o que existe. Mas são depois as pessoas que "apanham" o resultado dessas devoluções - é esse o genuíno consumo -  e fazem-no para logo após, elas próprias, tudo devolverem, sem o saber. Mas já tudo mastigado, destruído, reencantado por outra ponte e por outra vida. O dinheiro, a troca consciente são, de facto, ficções. E perigosas, pois desajudam de viver. 

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