Revi há pouco dois filmes de Hitchcock do pós guerra - Notorious (1946) e The Paradine Case (1947) - e é engraçado ver como (e o que) muda na passagem rápida (um ano de diferença entre os dois filmes se tanto), do expoente da arte do cineasta ao filme que Gregory Peck não se importava de queimar, literalmente, da sua filmografia. No primeiro, a relação entre o triângulo, chamemos-lhe assim - intriga/problemas interiores das personagens/objectos -, articula-se de uma maneira fluída, e todos os vértices desse triângulo têm algo a acrescentar. Já no segundo filme, o topo do triângulo, essa relação com os objectos, pelo menos essa parte, parece ter sido decepada pelo desejo de criação lisa e explicativa do produtor David O. Selznick.
Mas concretizemos um pouco. Em Notorious, na base do triângulo estava aquilo que sempre menos interessava a Hitchcock, o MacGuffin (a atmosfera e os cordelinhos que fazem as personagens agirem). Mas neste caso até as referências às bombas de urânio e aos segredos alemães da segunda guerra traziam um presciente comentário cultural à actualidade de 46. O segundo elemento do triângulo é composto pelo amor crescente de Cary Grant por Ingrid Bergman e o sacrifício desta por ele. Notorious é notoriamente um filme sobre o amor e o sacrifício. E para mostrar esse amor Hitchcock usa aquilo que mais o distinguiu na história do cinema: chaves, fechaduras, garrafas e rótulos, chávenas de café envenenadas. Como esquecer aquele movimento de câmara que nos revela as chaves da garrafeira que Alicia havia roubado ao marido? Esse é um movimento que transforma o espectador naquela própria chave, apertada, em tensão, nas mãos de Hitchcock pelas próximos minutos de festa.
Já em The Paradine Case importava ao produtor sobretudo explicar, lentamente e com pormenor, as razões que levaram Alida Valli à morte do marido. Conta-se que Hitch fez uma série de planos sequência que Selznick ordenou que saíssem, assim como efeitos de luz que, como era hábito no cineasta, marcassem o rosto do "culpado", neste caso o anjo demoníaco de Valli. Como percebeu que não podia usar todo o triângulo para contar a história, Hitchcock interessou-se sobretudo pelo seu segundo vértice. Trabalhou o ciúme de Ann Todd que, sendo mulher de Peck, sabia que este passara a querer defender a sua cliente por motivos menos profissionais e mais amorosos. Mas mais uma vez Selznick precisava de dar a ribalta à sua descoberta, Valli, e ao dinheiro em caixa que representava o protagonismo de Peck.
Desta feita toda a relação triangular de The Paradine Case se desequilibra. A trama ganha preponderância mas ela nunca pode ser explicada por imagens, apenas por palavras. O exemplo mais flagrante pode ver-se comparando a forma como neste filme o veneno que mata a esposa de Valli, um copo de vinho de Borgonha que nunca vemos em "acção", é contado pelas testemunhas do caso, isto é, tornado abstracto e teatralizado, expulso do campo da acção visível. Basta comparar com as cenas de envenenamento progressivo de Ingrid Bergman em Notorious para perceber que o filme de 1947 falha quando o topo do triângulo - o trabalho com a materialidade dos objectos e dos espaços para gerir a acção das personagens e a informação ao espectador - é tornado abstracto, não visto, deixando de satisfazer quer o dilema interno das personagens, quer do próprio plot.
Uma nota curiosa é que uma das excepções em The Paradine Case é a entrada de Louis Jourdan no tribunal, nas costas de Alida Valli. Aqui a câmara, mais do que acompanhar a sua entrada, mostra-nos o olhar cúmplice de Valli sentindo nas suas costas a chegada do amante. É um momento em que os olhos de Valli devêm "objectos hitchcockianos", espelhos que antecipam culpa, desejo e amor. É um momento em que a trama passa para segundo plano, para o cinema contar coisas dessa trama interior.
Talvez também por frustração de todo este processo logo a seguir Hitchcock iria fazer Rope, um filme onde nem por um momento o cinema deixa de "actuar" sobre o que se pode revelar e o que se deve esconder, jogo preferido do mestre.
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