domingo, 12 de fevereiro de 2017

Morrermo-nos

As primeiras frases do texto do Antonio Guerreiro sobre a eutanásia, acerca da necessidade de não definir o que é a vida através de critérios médico-científicos, recorda-me o preâmbulo de Hannah Arendt do seu «A Condição Humana». 

Escreve ela (em 58, note-se):

«Recentemente, a ciência tem-se esforçado por tornar «artificial» a própria vida, por cortar o último laço que faz do próprio homem um filho da natureza. O mesmo desejo de fugir da prisão terrena manifesta-se na tentativa de criar a vida numa proveta, no desejo de misturar, «sob o microscópio, o plasma seminal congelado de pessoas comprovadamente capazes de produzir seres humanos superiores» e «alterar(-lhes) o tamanho, a forma e a função»; e talvez o desejo de fugir à condição humana esteja presente na esperança de prolongar a duração da vida humana para além do limite dos cem anos.

Esse homem futuro, que segundo os cineastas será produzido, em menos de um século, parece motivado por uma rebelião contra a existência humana tal como nos foi dada — um dom gratuito vindo do nada (secularmente falando), que ele deseja trocar, por assim dizer, por algo produzido por ele mesmo. Não há razão para duvidar de que sejamos capazes de realizar essa troca, tal como não há motivo para duvidar da nossa actual capacidade de destruir toda a vida orgânica da terra. A questão é a de saber se desejamos usar nessa direcção o nosso novo conhecimento científico e técnico — e esta questão não pode ser resolvida por meios científicos: é uma questão política de primeira grandeza, e, portanto, não deve ser decidida por cientistas profissionais nem por políticos profissionais.»

Ou seja, eutanasiar-nos a nós e/ou à Terra, desfazer-nos e refazer-nos noutra coisa é coisa que não deve ser encaixotada nos critérios científicos da mera possibilidade ou impossibilidade.

«Morrermo-nos» não deve ser um affair de máquinas. Máquinas de facto ou máquinas sociais, pouco importa.

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