Quase todos os filmes da Salomé Lamas parecem conter uma luta com a realidade. Não apenas no sentido em que um documentarista arranca do mundo as suas imagens, mas sobretudo um conflito que implica trazer para a visibilidade uma complexidade que esse mundo sempre contém e encerra. O não visto, o não assumido, o reprimido, o «não representável», o historicamente abafado são os propósitos (paradoxalmente) visíveis de uma realizadora como Salomé Lamas. Contudo, os seus filmes, não se limitam a justapor essas invisibilidades, mutando-as em obras visíveis. Por exemplo, «Eldorado XXI» que logo no título nos indica a visão que parte dos trabalhadores mineiros tem sobre La Rinconada y Cerro Lunar, nos Andes peruanos, não é (apenas) um olhar crítico da miséria laboral e da pobreza dessa comunidade. Desde logo existe um fascínio da autora, que já vem de obras como «Golden Dawn» (em que acompanhou um barco de pescadores holandeses no Mar do Norte) com a dureza do trabalho e seus movimentos rituais. Mas essa dureza também está presente na natureza (por exemplo, «Encounters With Landscape - 3X», filmado na Lagoa das Sete Cidades nos Açores), que Salomé compara, desafia, através do seu próprio métier. Percorrer o espaço com a câmara é um acto de desafio, e ao mesmo tempo de respeito, por essa mesma natureza.
Estes dois elementos, assim como a já referida intenção de explorar espaços/terras de ninguém como forma de os redimir e desafiar o espectador, confluem para este «Eldorado XXI», creio que o seu melhor filme à data. A confluência destes elementos permite ver o filme como uma sucessão de portas abertas. O duelo entre o plano fixo (o equivalente de uma mina do qual o espectador só sai passado quase uma hora) e os espaços abertos é apenas uma dessas portas. Mas está em causa também a tensão entre a imagem (mental) que fazemos de uma comunidade através das suas histórias de miséria ou jingles radiofónicos e as imagens que de facto nos são dadas a ver. E como a realidade é demasiado complexa para se ser (ou ver) apenas uma coisa, ou mesmo uma oposição, «Eldorado XXI» é muitas coisas mais. É um drama sobre a pobreza - por exemplo, a história da senhora com muitos filhos que chega à Rinconada sem trabalho, sem tecto, apenas com tripas para comer. É uma comédia subtil onde as coreografias da dança e das festas locais ou a música pop no meio das montanhas mostram o sorriso onde menos se espera. É um filme de terror onde os relâmpagos da tempestade e as máscaras na noite ganham contornos desconhecidos e assustadores. É ainda um filme que questiona as noções do sagrado e das crenças religiosas, como forma de suster a vida e o trabalho.
Mas em minha opinião «Eldorado XXI» é sobretudo um filme de comunidade: que sabe ouvir as histórias e as presenças das pessoas. Assim como o faz com a natureza que é tudo menos silenciosa e inerte em La Rinconada.
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