Recordo-me que há uns anos ter visto "Le Locataire", logo após "Rosemary's Baby", e de me ter desiludido. Estaria demasiado focado na espera de uma surpresa final e a circularidade kafkiana deste novo apartamento de Polanski (cujo desfecho se sabe ou intui poucos minutos depois de começar) arrastou todo o meu olhar com ele para a inútil esfera da previsibilidade. Há uns dias, agora que já tinha "deitado a história fora" (isto é, que tinha percebido o corpo do cinema a mutar-se entre a masculinidade do drama e a subtil feminilidade de uma presença) vi outro filme. A circularidade é, desconfio, outra: a das alturas. Poucas horas antes de vomitar e antes da sua "doença" se manifestar, Trelkovsky, embriagado, deitado na cama com Stella e já incapaz de cumprir um desejo em relação ao sexo oposto, fala da identidade que sobe pelo corpo acima até à cabeça. Ela é o limite o partir do qual já deixamos de falar "eu" e uma qualquer parte do corpo. A identidade resiste assim aos safanões, num movimento de baixo para cima, dos pés para a cabeça, em que esta é um último bastião de sanidade. Nessa ascensão, Trelkovsky, filho de Norman Bates, pinta os lábios, coloca uma peruca de mulher, parte os dentes da frente à espera que estes ainda digam algo de quem ele foi. Quanto o cume é atingido, o homem devém mulher e resta o movimento inverso: o mergulho das alturas para a dureza do chão, cá em baixo. Mas não uma vez, várias. Até o suicídio, ou a possibilidade de morte, entram na ordem da circularidade (que é como quem diz do espectáculo, da repetição do show do teatro ou do cinema; quão geniais são essas panorâmicas em que os vizinhos se transmutam em espectadores de uma actuação e as janelas em camarotes de sala de espectáculo?). O mergulho para a morte repetindo-se na exacta medida em que o avalia o olhar do exterior, do Outro-Vizinho-Desconhecido. Amparam-no ou empurram-no sempre, nessa "subida" até à perda da identidade e nessa "descida" até à perda da vida. O corpo, a mente, o outro: os três pilares desta incrível metamorfose que é "Le Locataire". E nessa circularidade é duvidoso que o tempo passe, seja o olhar de dentro para fora ou de fora para dentro, nesse egípcio sarcófago que é, no fundo, a expressão de todo e qualquer o voyeurismo social.
Sem comentários:
Enviar um comentário