terça-feira, 12 de abril de 2016

Não recordava o sangue

Ontem quando revia o Robocop lembrava-me vagamente daquela cena em que fazem a apresentação do robot  ED-209. Sabia que algo ia correr mal e que ia matar uma pessoa, por erro de funcionamento. Mas longe estava de me recordar do banho de sangue que aquilo é. O que acaba por entusiasmar Sherlock e Freud ao mesmo tempo. Ou seja, eu não me lembro da violência mas ela, para um miúdo de oito anos, foi como uma tatuagem directa no cérebro. E depois claro podemos falar dessa poesia louca da violência como uma das razões pelas quais este filme, mas também Total Recall ou Basic Instinct, não se escoaram simplesmente pelo ralo do tempo. O picador de gelo a perfurar jugulares, a mão de Peter Weller que rebenta com um tiro de caçadeira ou os braços de Michael Ironside que ficam nas mãos de Schwarzenegger, decepadas por um elevador, são apenas alguns exemplos da demência permitida naqueles tempos por outros loucos, de companhias como a Orion Pictures ou a Carolco Pictures.

Estes exemplos são do domínio de uma poética da violência. Ela não corresponde nos filmes de Verhoeven a um ideal de transgressão. Quanto muito de diversão. Já a transgressão da violência hoje tornou-se uma norma reguladora, ninguém fica chocado pois ir “além de” é o que se espera de um sistema que tem de se expandir conquistando novos espaços de captação. E esses novos espaços são as supostas “transgressões” vertidas em normas, camufladas de espaço fora da redoma.
Mas curiosamente nestes filmes, em que o sangue é menos regulado (ou menos politizado), não é a violência o que perdura. Ela apenas acrescenta um toque kitch a uma audiência que já sabe ler as conservadoras normas dos crimes e das vísceras. O que perdura é esse sentimento de ambiguidade:
Louras ou morenas? Memórias artificiais ou realidade? Criminosa ou inocente? Humano ou máquina? 
Estes dualismos Verhoeven trabalha até à exaustão, literalmente até à última imagem, fazendo com que o movimento emocional destes filmes cometa o verdadeiro crime sanguinolento sobre o espectador. O que lhe dá o golpe da incerteza, do espaço entre o meio sentado no sofá e o meio de pé.
O beijo final entre Arnold e Rachel Ticotin em Total Recall – What if this is a dream? / Then kiss me quick before you wake up. – termina com um fade to white, mantendo vivo o espaço da alternância entre o único e o espaço de recall ad aeternum. 
A cena de sexo final entre Sharon Stone e Michael Douglas em Basic Instinct é a suprema ilustração do movimento orgásmico como passagem da pequena morte à grande morte. Os movimentos são sustidos até à última, escondendo sempre, até revelar. Revelar que a «fuck of the century» não é outra senão um gigantesco mind fucking.
Os instantes finais de Robocop também são este rodopio entre o biológico como bug do artificial e as imposições deste sobre a memórias e acção humanas. Robocop está outra vez entre uma loura e uma morena (Nancy Allen e a mulher dele) mas o seu programa não lhe permite recordar desta última. Quando lhe é dada permissão para por um ponto final à ameaça principal em Detroit, fica a impressão que Murphy poderá voltar a casa. Mas como?
Estas aberturas da narrativa são, como parece evidente, as grandes pancadas destes três filmes. Foram elas que me atingiram entre os 7 e aos 12 anos. De tal forma que o sangue, por muito vermelho que tivesse sido, o esqueci por inteiro. Lembra-me isso sim, da dúvida, do momento em que…

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