À Sombra das Mulheres. Poderoso título que Philippe Garrel chama para o seu último filme. Poderoso pois podia bem ser todo o seu cinema que se comprime ante esta premissa, ou antes, um dos seus problemas estéticos: de que é feita a sombra que emana da figura das mulheres e atinge em cheio o corpo e psique masculinas? Neste seu filme está em causa esse afrontamento, expresso no rosto inexpressivo e corpo incapaz de abraçar e mostrar amor, de Stanislas Merhar. Pierre é a figura típica do amante garreliano, num desespero surdo pós-nouvelle vague e que está sempre preso nessa sombra. Sombra que tal como com as “suas” mulheres são duas. De um lado, a companheira de há anos, com quem faz filmes e vive uma vida no limiar da pobreza, e do outro lado, a amante, jovem estagiária numa produtora de cinema, estudante de doutoramento. Mas essas mulheres são os desdobramentos do problema da sombra. É a sombra feminina como o espaço da “influência sobre”, como as sereias que cantam aos marinheiros de Ulisses, mas também a sombra como o porto de abrigo contra uma intensa luz do real.
Mas como referi, nada disso é muito novo, pois o luto das relações, o nascimento dos amores, as infidelidades, os ciúmes, sempre compuseram grande parte da cartilha dos “estudos garrelianos”. Mas então o que muda, ou por outra, o que evolui no cinema de Garrel? A resposta talvez tenha de se começar a procurar na curta duração de L’ombre des femmes (À Sombra das Mulheres, 2015), 73 minutos [algo que já vem do seu anterior filme La Jalousie (Ciúme, 2013), 77 minutos]. Filme curto, depurado, mas cuja explicação fica, creio, aquém de um traço característico do cinema do francês: a economia de meios. Esta simplicidade – pela qual se depuram os espaços da sua beleza, pela manutenção apenas do que é vital, as escadas, as camas, os breves passeios e as palavras essenciais – faz parte de um gesto de frontalidade.
Costuma dizer-se que Garrel sempre trabalhou no limite do home movie, que sempre buscou na máxima simplicidade, uma qualquer verdade essencial da intimidade e do drama. Isso não deixa de ser um facto aqui mas a brevidade parece também provir de um movimento autobiográfico (que sempre esteve no cinema de Garrel) aqui despindo-se lentamente dos “desvios” que o aspecto familiar e pessoal trazia. Não é por acaso que o seu filho, Louis Garrel, é aqui puxado para fora de campo, numa vozoff absolutamente linear e sem paixão. Não deixa de ser verdade que essa crueza advém em parte de um olhar maduro e desencantado sobre a vida, sobre uma perda de minutos atrás de minutos, que nem o amor ou as reconciliações apaziguam.
Se há de facto esse caminho da perda de adjectivos para a vida – ou a sua frontalidade, dirão alguns – há também uma certa compressão substantiva de um olhar linear, adulto, sem floreados. É a dimensão documental de L’ombre des femmes. Ao espectador fica essa dúvida no ar. Que documentário está de facto a ser filmado? Um sobre um veterano resistente francês ou um sobre as rupturas e continuidades de uma relação amorosa? Qual a verdadeira Resistência “militar” inerente ao amor? O que vale mais: o herói impostor ou o cobarde sincero?O argumento, fruto da colaboração com Jean-Claude Carrière, parece permitir todas estas ambiguidades.
Frequentemente se escreve que todas os documentários são ficções. Já o contrário é menos comum mas parece que L’ombre ameaça dizer-nos algo nessa direcção.Como se finalmente o cinema de Garrel fizesse evoluir o autobiográfico a um ponto onde ele se tornasse documental, deixando ver que o outro lado do íntimo e pessoal é o registo da observação do mundo todo. Não é que Garrel seja propriamente os irmãos Lumière mas há de facto a sensação que estarmos a assistir a um documentário sobre a natureza e evolução das relações amorosas. Ou seja, por dentro tudo nos diz: “sim, é mesmo assim que tudo se passa.” E não há como não sair abanados pela crueza disto tudo. Pelo facto de todas as distracções estéticas (e outras) se terem ido e só termos ficado com isto: algo tão fiel mas ao mesmo tempo sem escapatória…
Texto belo mas pejado de spoilers (penso que é assim que se chama àqueles bichinhos que sussurram segredos aos passantes :)
ResponderEliminarTendo lido, por onde será agora a escapatória? :)
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O que me vale é que só deverei ter a possibilidade de ver o filme em sala (faço questão) lá para 2036, num daqueles lugares perdidos nos confins de uma terra onde um senhor já encurvado, entre o doce e o rezingão, insistirá ainda na memória, com mostra, das coisas belas.
Pois... de facto não resta muito para adivinhar da trama do filme. Mas, se me posso defender, só desta vez, o filme é sobre isso mesmo: sobre nada se poder esconder, onde tudo é dolorosamente assim, visível.
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