sexta-feira, 11 de março de 2016

Chorar na cozinha, rir na sala

Everything is a madeleine. Tudo é uma madalena, escreve o australiano Clive James no primeiro livro que dele leio, Unreliable Memoirs. Livro brilhante sobre a sua infância que tenta fazer um tanto aquilo que aponta a Proust: mais do que despoletar memórias, mantê-las numa trela curta e ordenada. Mas uma trela não tão bonitinha que não se transformem essas memórias em expressiva ficção. Para que nos serviriam então as suas descrições de aranhas como bolas de ping-pong vestidas de casaco de peles ou o rosto cansado e triste de resignação da mãe, mais forte que uma chapada, quando o pequeno Clive depositava mais uma manchinha de graxa na carpete da sala?

O raio do livro pôs-me a pensar na minha infância:

Dizem-me que era terrível, que fazia chorar crianças e dava chapadas a velhas. Não que se importassem muito, a rir-se todas bestas para aquele "anjinho loiro de caracóis" (descrição familiar, claro) agora de caronas todas acesas pelo tabefe. Partia mesas de vidro com os pés, perseguia pássaros com paus e mijava para garrafas de coca-cola que depois mandava para trás da televisão. Mas era tão fofo. Era o que diziam. Mas nem é desses feitos que queria falar agora. A madalena de hoje pertence à minha avó paterna. Dela herdei alguns traços fisionómicos e a asma. Ou talvez algo mais. Lembro-me de ir no banco de trás no carro do meu pai a caminho de casa dos avós no fim-se-semana. Viagem interminável com curvas redondas e livros nas mãos, de linhas a saltar-me doidas aos olhos. Quando finalmente chegávamos, esticávamos as pernas e eu olhava triste para o tanque de água no pátio da casa. Tanque que o Verão ou o Inverno nos impossibilitava de experimentar: verdete ou insectos, era uma água muito concorrida.

A minha avó, faces muitos vermelhas, mãos tremeliquentas e cabelo todo branco, vinha receber-nos. O meu avô expunha-se menos. Depois disto seguia-se um evento que eu não percebia bem. Lentamente a minha avó pegava na mão da minha mãe e levava-a, o mais discretamente possível, para a cozinha. Depois de fazer uma vistoria à casa toda - o topo das escadas exteriores do qual podia ver-se a fonte, a eira onde um lagarto ou outro se escapava por entre as entranhas da pedra, ou o velho aquecedor de pés da sala, mais estimulante do que o ecrã da televisão - tentava a cozinha. Mas ainda era território interdito, pois ainda lá estavam a minha avó que chorava e a minha mãe que lhe segurava na mão, acariciando-a, numa atitude consoladora.  Sei que chorava pois tinha os olhos vermelhos e a cara aguada. Uma vez alguém me disse, depois de mais um episódio destes que se repetia muita vezes, que a minha avó aproveitava este momento para fazer queixas do meu avô, desabafar. 

Nunca soube bem os motivos de tais choradeiras mas sabia que num espaço de minutos, a minha avó saía da cozinha e vinha ter comigo à sala. Sentava-se ao meu lado no sofá, às vezes era de noite e ficávamos assim um tempo, ora de mãos dadas, ora a sorver o calor vindo do tal aquece pés. Lembro-me que às vezes um dos nós dizia uma graça (quase sempre era eu) e ficava na expectativa de ver a reacção. Se por acaso a minha avó tivesse o azar de se rir, estava tudo estragado. Não ia parar até fazer com que ela tivesse um ataque de riso. E se as piadas não chegassem, recorria-se a armas de riso maciço: as cócegas. Dedos fininhos a entrar junto às costelas e a minha avó a contorcer-se. Nessas alturas o tempo suspendia-se por uns minutos até que ambos parávamos, olhando um para o outro, bochechas a latejar e a rebentar de vermelho, a respiração ofegante. A falta de ar vinha aí, mas quem queria saber disso? 

E era assim que começava o meu fim-de-semana, ou um período de ferias, com os meus avós: sob o signo do choro e do riso. Desculpem-me as madalenas mas tenho de as aproveitar quando surgem, pois regra geral sou bem melhor a recordar as coisas que não vivi.

3 comentários:

  1. Desculpar??
    Queremos mais!

    O cinema não basta... :)

    (magnífica compilação do recheio de um dia de férias durante a infância)

    Repito: mais, sim?

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  2. completamente de acordo com a alexandra: mais, se faz favor!

    gostei muito.

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