Vi esta semana pela primeira vez na vida três filmes do cineasta
experimental norte-americano Robert Beavers. Mas como ver pela primeira vez é
sempre ante-ver, nem estou certo de ter visto alguma coisa. Havia muitos planos
em estações, jardins, quartos, enquadramentos a arder, a desfazerem-se, a
desfocarem-se, como se desfocaram em mim, por certo, guardando apenas a
impressão de um mistério. E a vontade de conhecer mais e melhor. Enfim, conhecer. Chego a
casa e leio aquilo que apanho sobre Beavers. A sua relação de pupilo-mestre-mentor-colega
com um senhor chamado Gregory Markopoulos, a sua reduzida filmografia imune a
uma qualquer pipocracia. Numa altura em que até na literatura se produz à
medida, em que qualquer obra nasce para o grande olho posto na eternidade e nas
bocas do mundo, penso nesse pudor em mostrar o que se filmou. Na contradição
entre a obra que tudo quer explicar do mundo e mostrar-se (ver-se a ser vista)
e aquela que nada tem para dizer propriamente mas que é tão íntima que reduz o
estatuto social da arte à partilha afectiva com alguns que a compreendam, que a
sintam como mistério. Talvez por isso me tenha sentido iniciado a qualquer
coisa, uma "religião" da observação atenta do mundo, dos espaços mas
sobretudo da imagem misteriorosa que daí pode resultar.
“He said....” ou “...he said.”, intertítulos do menos comentado dos três filmes mostrados por Augusto
M. Seabra, SOROROS. Ou se começa a
dizer ou se acaba o que se disse. Isso é muito claro. O que é como quem diz ou se sabe para onde vão
as panorâmicas quando começam ou não. Ou talvez elas seja apenas a parte final
de algo que começou por ser um par de olhos, de uma lente, fixa, de um plano
fixo. Esse jogo entre as pontuações gramaticais e cinemáticas, Beaver joga como
exploração. Como se lê aqui
ou se “vive uma biografia” ou se “constrói uma biografia”. Viver a construir o
que se vive ou viver a vida que se construiu não é uma contradição é um propósito
artístico, que guarda o mistério de filmar como quem respira ou quem prova o sabor da água do rio. Entre as montanhas, as árvores nodosas e o silêncio de um
quarto, entre o interior e o exterior, os mesmos sons do pingo da água da
torneira, do raspar da lâmina sobre a barba, dos sinos a ecoar debaixo do lavatório.
Não há fronteiras que aguentam a relação entre o que ele vai dizer... e o que
... já disse. Fico com dois raccords na cabeça. Beavers passa da fechadura de uma
porta a um homem que fala, mexe os lábios, mas não o ouvimos (só a bengala de
cego no pavimento, como a gota de água a ritmar o filme para lá de qualquer
intenção ante-vista). No outro, um tecto do quarto de hotel e um plano do céu. Olhar para cima
e encontrar sempre os mesmos limites: ou não é o céu o tecto do mundo e o tecto
o céu das casas? Desarranjado, tudo desarranjado e dessa desordenação fiquei,
como no início: de olhos fechados, sem ter visto nada, tendo visto tudo.
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