terça-feira, 28 de outubro de 2014

Onde está o tédio? (António Guerreiro)

 
"O tédio foi a tonalidade fundamental de uma
época, uma música plena de realizações
poéticas: em Baudelaire, em Leopardi e,
ainda, em Bernardo Soares do Livro do
Desasossego. Estas configurações epocais já
não fazem parte da “vocação” do nosso
tempo — da sua voz, já que elas foram definidas, por
Heidegger, num sentido acústico-musical. E o tédio,
esse, é hoje uma velharia erudita e literária que já só
se apresenta como objecto de uma arqueologia. O
tédio implicava a percepção de um tempo
exasperante de lentidão, de tal modo privado de
novidade que abria aquele abismo do spleen
baudelairiano: “J’ai plus de souvenirs que si j’avais mille
ans”. Já não é possível sentir o tédio porque o regime
de superabundância digital, que faz com que
estejamos sempre ligados a redes de comunicação e
imersos nos fluxos de distracção que elas fornecem,
provoca-nos uma estimulação sem repouso. A ideia
desenvolvida por Nathan Carr, de que a Internet nos
torna estúpidos, sendo embora interessante e
pertinente em muitos aspectos, não deixa de ser um
pouco simplista porque não consegue descrever de
modo convincente esta nova situação em que se
inverteu completamente o lugar da infra-estrutura e
da superestrutura e é como se caminhássemos com a
cabeça na terra e os pés para o ar. Provavelmente, é a
isto que se chama idealismo. A experiência do
“choque” contínuo que as grandes metrópoles
modernas proporcionarm, desde a segunda metade
do século XIX, não serve para descrever a situação
actual porque já não precisamos da rua, do
boulevard, do espaço público físico da grande cidade.
A última fase deste “capitalismo do espírito” que
captura e controla incessantemente o tempo e a
experiência consiste, segundo Jonathan Crary (autor
de 24/7, Late Capitalism and the Ends of Sleep), em
permanecer, sem interrupção, no estado de vigília.
Privada temporariamente de ligação às redes, a
maior parte das pessoas não consegue recuperar a
capacidade de sentir o tédio: passa imediatamente ao
pânico. A concentração e a atenção tornaram-se bens
raros, de tal modo que se pode dizer que o princípio
da raridade se deslocou radicalmente do pólo da
produção para o pólo da recepção. Daí que se tenha
tornado tão importante, actualmente, uma
“economia da atenção”. É ela que domina o
mercado. E porque é um recurso raro, assistimos a
uma corrida pela sua posse, por parte desta nova
economia. Sabemos muito bem como o jornal, que
foi em tempos “a oração matinal do homem
moderno”, tem dificuldade em sobreviver nesta nova
economia, com outras solicitações “atencionais”. E a
indústria do livro só sobrevive à custa do papel
impresso que não solicita, em grau elevado, a energia
mental da atenção. Em 2004, Patrick Le Lay, director
de um canal de televisão francês, a TF1, fez
afirmações numa entrevista que chocaram pela sua
crueza, mas definem bem o que é a economia da
atenção: “Numa perspectiva business, sejamos
realistas: no fundamental, a profissão da TF1 consiste
em ajudar a Coca-Cola, por exemplo, a vender o seu
produto. Ora, para que uma mensagem seja recebida
é necessário que o cérebro do espectador esteja
disponível. As nossas emissões têm por vocação
torná-lo disponível, isto é, diverti-lo e relaxá-lo para o
preparar entre duas mensagens. O que vendemos à
Coca-Cola é tempo de cérebro humano disponível.”
Estas palavras escandalizaram não por dizerem algo
de novo (a não ser aos ingénuos), mas porque
literalizavam demasiado aquilo que nos tem sido
transmitido por eufemismos ou por mediações

teóricas com um certo grau de elaboração."

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