Nos anos de conservatório organizei com uns amigos
uma maratona de cinema. A ideia era tão simples quanto isto: ver filmes em
barda pela noite dentro. O critério ainda mais imbecil era: filmes que tivessem
nomes estranhos, intrigantes. Intrigantes o suficiente para os querermos ver.
Lembro-me que fazia parte, entre outros, o SURF NAZIS MUST DIE da Troma e uma
curta de um realizador dinamarquês chamada GAYNIGGERS FROM OUTER SPACE. Foi
aí também que vi pela primeira vez ONIBABA. Do filme, inebriado pelos cafés e
as batatas fritas das quatro da manhã, já pouco me lembrava, excepto, claro, da
máscara do demónio, onibaba - que
quer dizer máscara da criatura velha ou grandma
ogre (avó ogre, quem as não tem) -e das percussões da banda sonora que me
faziam remexer as córneas de vez em quando. A seguir havia até um filme
surpresa a fechar toda aquela indigestão de imagens, mas ninguém sabia qual
era.
Há uns dias resolvi pegar na edição Masters of Cinema do filme do Kaneto
Shindô e confesso não ter tido grande pachorra para a versão comentada por ele
e por dois dos actores. Falavam de viagens de comboios que faziam a Tokyo em
intervalos de rodagem, de regimes alimentares, do lembras-te disso do
lembras-te daquilo... Mas nas pequeninas coisas escondem-se as grandes, marcadas
a ferrete debaixo dos olhos ou do inconsciente. Voltei a ONIBABA e lá estava a
máscara (como a de ferro do filme do Bava MASCHERA DEL DEMONIO; naquele ela que
era pregada no início, neste ela sai no fim) e lá estavam os tambores
infernais. Para além deles, ou no meio deles, o extenso palco feito de vento e
da relva revolta, susuki grass. Foi um
inferno filmar ali, disse Shindô (dizem sempre, mas desta vez acredito) e um
buraco. Le trou. Não é uma prisão
como em Becker. Nem serve para vizinhos comunicarem como em Tsai Ming-Liang. É
um buraco para o qual as duas mulheres (a sogra e a nora) que vivem naquele
nenhures, mandam os corpos dos homens que matam. Matam porque eles passam por
ali, distraídos, cansados, feridos, a caminho ou a fugir da guerra civil
japonesa e porque elas precisam de os roubar e de vender os seus pertences por sacos
de arroz. Assim sobrevivem duas mulheres em cenário de guerra à custa do seu
“buraco”.
O
realizador disse que aquele buraco representava a sobrevivência, a forma como
as classes mais baixas podiam resistir à destruição e à morte. Pôr a cabeça no
buraco significa esconder-se de, abrigar-se. Mas nós sabemos que apesar de ser
lugar comum dizer-se hoje que Freud era fraude, o buraco é o... E não me digam
que as relvas susuki também não são as pilosidades favoritas de João César
Monteiro. Eu até digo chega de divã mas é que este é um filme sobre uma mulher
que quer a todo o custo impedir a nora de... bem... dispor do seu “buraco”. Agora
fica-me bem dizer que também aprecio o contraste que o realizador utiliza entre
os planos picados e abertos sobre o matagal - como se dissesse, “vejam o que
acontece a estas pessoas que lutam numa superfície nua e inóspita que os obriga
a lutar” – e os grandes planos, sobretudo das mulheres. Como se o poder de
atracção feminino fosse assim filmado: o de trazer para perto o que está longe.
E fica-me ainda melhor dizer que a máscara que a mulher mais velha usa e a
desfigura (era spoiler isto, era) é
uma referência às vítimas de Nagasaki e Hiroshima. Agora, que a máscara serve
como método contraceptivo por interposta pessoa (a sogra quer afugentar a nora
do único homem das redondezas, depois de se saber que o filho, e marido desta,
faleceu na guerra), lá isso não se pode negar. E aquele plano da sogra quando se agarra, desesperada, ao tronco depois da nora se ter agarrado ao nariz do vizinho Hashi é o quê?
Entendam-me,
não é que ONIBABA seja um filme de causar enchumaços. É antes um excepcional
filme de terror japonês com um toque vagamente erótico. Mas a razão pelo qual
insisto nisto tudo é que naquela noite no conservatório eu só vi a máscara ao
som do tambor. E estes foram excitação que chegue. O cinema é feito dessas
picadas de abelha no olho que ficam lá a inchar e que no dia seguinte parece
que já nada foi.
Ah, o filme surpresa era o BAMBI mas depois
daquilo foi tudo carregar as olheiras, de directa, no primeiro comboio
Amadora-Oriente. Eram seis da manhã.
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