O
estatuto de Werner Herzog parece ser daquelas coisas que mais do que
inquestionável, é uma abstracção que permite fazer explodir quaisquer ideias que
possamos trazer para a análise crítica do cinema. Expliquemo-nos. Ao ver a sua
última obra, o documentário Into the Abyss sobre um jovem condenado à pena de
morte no Texas, ressaltariam logo à partida dois estigmas. Um tema pisado e
repisado na história do documentário recente (uma das referências mais óbvias é The Thin Blue Line
de Errol Morris) visto a partir de uma simplicidade, ousaríamos, quase
televisiva (o predomínio das entrevistas, a música emocional, etc.). Contudo, a
voz do autor alemão, literalmente, na sua ausência de corpo, a marcar com o seu
inglês de sotaque germânico duro, produz um discurso que traz à tona o que de
mais precioso tem o género documental: a curiosidade antropológica, ontológica
mesmo, pelo mundo e seus avanços e recuos inesperados. É sobre esse filtro
franco, implacável por vezes, que todas as personagens que se expõem a Herzog, o
fazem na mais compreensível das suas razões: todos têm motivos, todos são
dignos de pena, revolta e admiração. Herzog, no seu primeiro encontro face to face com o assassino Michael, a
escassos dias da sua execução diz-lhe que não tem necessariamente que gostar
dele, que apenas considera que é ilegítimo que um ser humano condene outro a
morrer. Admirável é que em Into the
Abyss se reverta toda a fragilidade do tema da morte, do crime e da punição
que poderia gerar pena ou compaixão face às suas personagens noutra coisa. A
profunda emotividade do filme provém doutro lado. Arriscaríamos que ela nasce
do choque dos diversos discursos de honestidade: sobretudo entre o lado de lá
da câmara (por exemplos, os discursos de uma familiar da vítima que “gostou” de
ver a execução do criminoso, seja da frieza infantil e inconsequente do próprio
Michael Perry) e o lado de cá, a integridade sincera do realizador alemão. As
conversas com criminosos, vítimas, familiares, executores mostram que os
trágicos eventos parecem apanhar toda esta classe suburbana, pouco alfabetizada do Texas, por igual, numa torrente social que os ultrapassa muitas vezes. Como
Herzog refere a certa altura: como se o destino lhes tivesse dado um baralho de
cartas muito mau. Nesta torrente, o realizador alemão “salva” ainda os outros
pequenos “milagres” no filme: uma árvore que cresce no interior do carro cujo
roubo gerou três mortes, ou a sugerida inseminação artificial da namorada do
outro criminoso Jason Burkett, através do contrabando do seu sémen para o
exterior da prisão.
Sem
ser uma obra central na carreira de Herzog o visionamento de Into the Abyss produz
um “prazer” muito próprio, aquele inerente à natureza do contato entre a curiosidade
pelos motivos e a reserva nas causas.
O
filme será novamente exibido às 19:00 no dia 4 de Maio no Grande Auditório da
Culturgest.
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