sábado, 28 de abril de 2012

Dia 2 no Indie- Deus, Tuning e Salaviza


Fazer hoje um documentário de curiosidade desinteressada sobre a religião católica parece ser tarefa quase impossível, própria de um verdadeiro “crente” no cinema. A ideia literalmente expressa por uma das intervenientes em Die Werde des Herrne (Flock of the Lord) de Romuald Karmakar - a de que a religião é algo que corresponde hoje a uma mentalidade “velha” - está no centro de uma vontade de documentar esse movimento de decadência. Este é um processo onde os verdadeiros movimentos de crença na “religião n.º 1” são substituídos, ou apanhados por uma câmara que é, na maioria das vezes, espelho de um olhar irónico que coloca o catolicismo no centro de uma crença desacreditada, própria de excêntricos e anacrónicos. A este movimento tendencial com que a história trata o tema, o filme de Romuald Karmakar não consegue escapar por inteiro. Quer dizer, a obra filmada para o canal ARTE sobre a morte do papa João Paulo II e nomeação do papa Bento XVI como seu sucessor é um tanto vítima do seu dispositivo formal de apresentação. O uso recorrente do fade to black mais do que favorecer a acumulação do fragmento, deixa, pelo que é retratado é certo, muitas vezes o espaço “neutro” para o espectador processar a ironia e o riso. É contudo também da sua estrutura que advém o melhor de Flock of the Lord. Se a sua primeira metade é um olhar irónico sobre a agitação espiritual, intelectual e económica que sofreu a pequena vila de Marktl, de onde Ratzinger é oriundo, a segunda faz um flashback até uns dias antes no Vaticano onde milhares de pessoas afluem para prestar as últimas homenagens ao papa recentemente falecido. Neste segmento a atitude de Romuald, talvez submetido ao espaço habitado, já procura menos a caricatura e mais o “viver com”: a exploração em travellings de plena curiosidade sobre os rostos e corpos dos crentes em espera nas longas filas, os labirintos das imediações da praça de S. Pedro, os cânticos, as palmas e as emoções. Desta feita o filme abre-se mais ao mistério religioso, negando sempre o contracampo do palco donde emana o “espetáculo”. É que este sempre esteve do lado nas pessoas, do lado da emoção embutida na carne e na psiché dos fiéis.

 
Alguma vez se perguntaram o que aconteceria a uma personagem de The Fast and the Furious se de repente fosse penetrado de uma sensibilidade adulta provinda das paragens do drama urbano francês?  Eu também não. Mas o certo é que Voie Rapide, a primeira longa-metragem de Christophe Sahr, filme que abriu ontem a competição internacional de longas-metragens do IndieLisboa dá uns lamirés sobre o assunto. Alex é um jovem que foi “apanhado” por uma mulher, como diz o amigo, ao ter um filho dela demasiado cedo. Vive então dividido entre o amor oficial adulto pela sua esposa e filha e o amor colorido e veloz pelo tuning, corporizado no seu Honda ultra quitado. Numa noite em que conduz o “amante” (em francês, la voiture) atropela uma pessoa e foge. Este episódio além de lhe custar uns valentes euros de arranjo do carro adensa-lhe a crise emocional e o crescente afastamento da família. Entre estes dois amores, esta longa-metragem toca os beats todos da arquitetura narrativa de qualquer conceituada escola de cinema. Mas fá-lo sempre numa escrita demasiado linear, para em qualquer dos momentos do filme possa guardar algum mistério e com ele, o envolvimento emocional, formal ou até sociológico do espectador...

 
A sessão prime time de ontem coube à ante-estreia nacional de Rafa de João Salaviza, vencedora do Urso de Ouro parta melhor curta-metragem em Berlim este ano. A completar a sessão a apresentação de Nana de Valérie Massadian, vencedora do prémio para melhor Longa Metragem em Locarno. A sessão mostra-nos que os filmes também não se medem aos palmos. Rafa, opera uma extraordinária operação de dilatação do espaço mas sobretudo do tempo. Quanto ao primeiro diga-se que a passagem do suburbano ao centro da cidade de Lisboa – a viagem de Rafa -  viagem que se diria de abertura do espaço, é sempre mantida no confinamento dos seus planos. A delimitação clara destes, sobretudo nos exteriores no centro de Lisboa parecem indicar que o espaço físico, na sua plena extensão, nitidez, está vedado na totalidade ao dilema social da suburbanidade. Quer em Arena, quer em Rafa, esse espaço não dado (veja-se a melhor sequência, a da interrogatório do protagonista, com um só campo visível) permite ao espectador estender o visível à custa do interior em convulsão. Quanto ao tempo diga-se que Rafa é claramente um filme cuja potencialidade se encontra enclausurada na curta-metragem. Esta clausura não encurta as ideias, adultifica-as através de um processo de evasão, como em preparação para um depois de Rafa. Desta feita, o último plano do filme revela isso precisamente. Que Rafa e Arena foram dignas provas de crescimento, no sentido de etapas de crescimento (até pelo seu Tema), de “ritos de passagem”, e que o seu autor, João Salaviza, está mais do que pronto para passar ao formato longo. 

 
Nana, por sua vez, poderia padecer do inverso, a não “rara” doença da curta metida no corpo de uma longa. Em universos próximos de Yuki & Nina (2009) de Hippolyte Girardot e Nobuhiro Suwa, ou recuando um pouco mais em Ponette (1996) de Jacques Doillon, Massadian pretendia aproximar-se do universo da sua infância através de uma menina de 4 anos chamada Nana. Esta vive no campo com a mãe perturbada nos seus dilemas adultos incompreensíveis e um avô que nunca está próximo da filha. Além de uma fotografia excepcional a cargo de Dominoque Auvray e da própria Valérie, o filme é muito deixando a cargo da própria Nana na capacidade que tem de encantar o espectador pelas suas reações precoces e brincadeiras desconcertantes. Neste sentido, a categoria do gag infantil acaba por tomar conta do filme, na sua capacidade de preencher a perigosa categoria do “querido” e do “enternecedor”, contaminando um pouco a premissa inicial. Ao longo do filme percebemos que Massadian está preocupada com a reação ao plano que irá existir do lado de cá e que isso lhe tolda algumas decisões. O tratamento da personagem da mãe é disso um bom exemplo.

Apesar das discrepâncias entre os dois filmes, colocá-los lado a lado, a “dançar juntos” como referiu Massadian, como aconteceu ontem e como sucederá em breve com a estreia comercial de ambos, parece-me uma ideia interessante. Isto claro se se inverter a ordem dos visionamentos. 

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