segunda-feira, 30 de abril de 2012

Dia 4 no Indie – Levando na tromba por Mizoguchi

 É inegável que existe uma dimensão romântico-fetichista que qualquer cinéfilo não poderá deixar de destacar em Cut, o último filme do Amir Naderi. O realizador, autor de obras fundamentais do novo cinema iraniano como são os casos de Davendah (1990) e Ab, Baad, Kaak (1989), decidiu fazer com atores japoneses um manifesto pelo cinema. Neste, Shuji, (o actor de Dolls, de Kitano) é um homem que organiza sessões de cinema semi-clandestinas em sua casa dando a ver clássicos da época em que, segundo ele, o cinema “não era uma puta” e sim uma arte. No tempo restante visita as campas de Ozu, Kurosawa, Mizohuchi, e percorre as ruas com um megafone debitando palavras de ordem para não deixar morrer o cinema que interessa e de ataque a esses sacanas que invadiram a sétima arte com propósitos exclusivamente capitalistas. Parece uma defesa acérrima e lunática que ganha novos contornos quando este começa a bater-se, literalmente, pelo cinema. O seu irmão morreu e deixou uma dívida a um grupo de mafiosos, sendo que a única forma que arranja para pagar é levar x yenes por cada soco que leva. Enquanto faz de saco de pancada, para resistir à dor lembra-se das suas sessões e seus filmes fetiche, Ugetsu Monogatari, de Mizoguchi, The Searchers, de John Ford, e por aí fora.

Ora aí está uma ideia de charme ao cinema, misto de requiem e grito de guerra, que espelha um pouco o passado iniciático de Amir Naderi, trabalhando em cinemas e lidando de perto com alguns conceituados críticos antes de começar a realizar os seus filmes. Mas continuemos o gozo do exercício de matrioskas que o filme desenvolve também por exemplo nos planos da primeira sessão de Shuji, em que vemos de longe o ecrã no seu terraço que projeta as sequências inicias de Sherlock Jr de Buster Keaton. Essoutra matrioska em que pensamos liga-se ao facto de, sendo este um filme sobre o auto-sacrifício pela arte, se sacrificar ele próprio, aos nossos pés, pela ilustração desta ideia de Naderi. Neste sentido sai sacrificada a desenvoltura narrativa que escreve e reescreve obsessivamente sobre as mesmas ideias, produzindo um objecto excêntrico extraído do mundo, até pelos espaços despovoados. Embora com alguns piscares de olhos ao cinema de David Fincher (Seven, Fight Club), o seu ralenti expressivo não deixa nunca que o filme se alvore em algo mais do que um objecto de curiosidade, tão mórbida, quanto nostálgica. Que seja hoje o fetichismo lunático uma forma bem verosímil de evocar o cinema de qualidade feito no passado é uma outra questão que nos deve fazer refletir.


 No âmbito da secção de cinema emergente foi ontem exibido Fat Cat dos belgas Nicolas Deschuyteneer e Patricia Gélise. É uma primeira obra que quer homenagear o noir, os ambientes sórdidos de cabaret, as femme fatales, a voz off que conduz a trama plena de golpes e pequenos crimes. Enzo é o seu anti-herói, uma personagem da galeria de Simenon, como já foi apelidado, cujas mãozinhas são de “ouro” e abrem qualquer cofre ou fechadura em 10 minutos. Ele, juntamente com uma colega de crime, iniciam então uma viagem perfeitamente MacGuffin pelos esquemas narrativos do noir. Na sequência inicial em que a vemos a roubar uma carteira numa estação ante o olhar de Enzo a nossa dúvida instala-se. A “recriação” bressoniana parece indicar qual a intenção para o recorte do ritmo e do fora de campo. Mas lembremo-nos que estamos ante uma primeira obra e aqui a importância do fora-de-campo não é muitas vezes convenção mas uma imposição. É o caso, perfeitamente visível pelo privilégio mais do que subjetivo pelos planos apertados e exiguidade dos espaços filmados, quer no interior, quer no exterior. Mas isso não é propriamente uma falta, é algo que aguça o engenho e em alguns casos o lado da experimentação sobre o código noir produz algum efeito, como por exemplo no número de jazz apresentado numa das noites, no braço de ferro ou nos jogos de póquer entre os frequentadores de “Fat Cat”. O grande problema de Fat Cat é outro, o de querer investir em duas coisas distintas acabando por não triunfar em nenhuma delas. Por um lado, o enredo não é suficientemente aberto para que o espectador não veja nele mais do que um pretexto. Essa é uma dificuldade de se querer mostrar mais do que o que se pode, deixando entender que a arte da sugestão tem limites. Do outro lado, aquela que nos parece que teria sido a aposta mais segura, a da paródia ao género é entravada pela “seriedade” do argumento.  O facto dos protagonistas serem jovens de mais para os seus papéis, as braçadeiras dos polícias, o jogo da iluminação, exigiam um filme mais solto e louco. Algo que Fat Cat nunca chega a ser.

Cut será ainda exibido dia 6 de Maio às 18:45 no Cinema Londres, sala 2 e Fat Cat dia 2 de Maio, no mesmo Londres, também na sala 2, às 21:15.



domingo, 29 de abril de 2012

Dia 3 no Indie - Há lá coisa mais política que engravidar? Sim, comer bolos



Em 17 Filles, estreia em longa-metragem da dupla Delphine e Muriel Cullin, há muita gente que engravida. Para ser preciso são 17 as raparigas de um liceu de Lorient que, num gesto que roça em partes iguais o ativismo político e a inconsequência adolescente, decidem engravidar em conjunto. Baseado numa história verídica, o filme, embora seguindo o tale insólito não deixa de, sempre que pode, lançar-se numa espécie de desejo de limpidez formal e negra. Como uma espécie de contratipo das meninas de Sofia Coppola em The Virgin Suicides. O ter um filho antes do tempo, como acontece à sua protagonista, a jovem Camille, é tratado como algo que faz explodir a experiência individual do crescimento. Para que não se sinta só nesse “belo calvário”, as suas colegas decidem acompanhá-la engravidando todas. A decisão de engravidar em grupo permite desta feita a transferência das responsabilidades para o conjunto, suportar en ensemble um movimento em direção ao desconhecido. Nesta transferência é muito curioso então que os principais movimentos de 17 Filles sejam circulares: o grupo na roda mecânica no parque, a roda que fazem na praia a fumar, ou mais tarde na dança ou na piscina. Esse movimento tipificado da psicologia de grupo, que tenta ser destruída por uma outra experiência de grupo, a visualização dissuasora na escola de vídeos de partos dolorosos, estabelece essa ponte com a mudança de movimento do filme. No seu pós-clímax, o movimento de Delphine e Muriel abandona essa circularidade e parte para um travelling lateral, sem profundidade sobre a praia, com que o filme termina. Nesse movimento a noção de “ato político inconsequente” que gerou a circularidade do grupo, surge superada, na sua contradição de ser político e inconsequente. Estamos já em virtude do crescimento das jovens, num movimento contínuo que exige da vida que permaneça nesse estado de nascimento perpétuo de experiências.


A abertura da secção “Parabéns Viennale”, de homenagem ao festival que se tornou uma das bússolas de referência do circuito de cinema independente, coube ontem a uma obra que, pelo menos aos mais conhecedores, deveria dispensar apresentações. Trata-se de Sedmikrásky (Daisies) de Vera Chytilová (1966), um, senão o, filme emblemático da nova vaga checa. As suas Marias do filme, uma loura, outra morena são emblemáticas de um mecanismo de descentramento da identidade e de “terrorismo das convenções” que quer o cinema surrealista moderno, quer, em parte, o feminismo no cinema abarcaram. Desta feita, o curioso é que a subversão pelos jogos de conquista, as experimentação do jogo e do limite do corpo e do sexo pela comida (que comandam a manipulação da montagem, da cor, da repetição, do estilo tout court) surgem-nos hoje, a mais de quarenta anos de distância, menos como algo que se auto-encerrou na história do cinema como uma aventura ética e formal. Ao invés, pensamos, ainda para mais integrado num festival de cinema independente, como o surrealismo em doses q.b. poderia ter fomentando uma alternativa bastante mais ambiciosa do ponto de vista criativo para aquilo que é atualmente o panorama do cinema contemporâneo, independente, ou arrojado, ou mais livre, se quiserem. É desse passado, que Daisies mostra em toda a sua pompa, desse “ser mauzinho por uma hora e picos”, que ecoam ventos que nos permitiriam pensar num futuro alternativo. Como seria se estivéssemos agora todos a colar os pratos dessa grande destruição?

O ciclo seguirá ainda com a exibição de mais quatro filmes, um por década da existência Viennale. Pelos anos 70 será exibido Cuidado com Essa Puta Sagrada (Warnung vor einer heiligen Nutte), de Fassbinder, enquanto que The Last of England de Derek Jarman representará os anos 80. La terre des âmes errantes, de Rithy Panh será o filme dos 90 e para a década 00 Los Angeles Plays Itself, de Thom Andersen.



A segunda obra a entrar em competição nesta 9ª edição do IndieLisboa foi The Color Wheel do norte-americano Alex Ross Perry. A sua segunda longa-metragem, em paragens mumblecore, traz as cores do título sobretudo para os seus diálogos constantes de embirração que opõem irmão e irmã nesta viagem de reconciliação filmada a preto e branco granulado. Alex, realizador e protagonista, vestindo a pele de uma personagem da galeria de Paul Giamatti, com menos vinte anos em cima, é alguém de quem se pode ter pena e ao mesmo tempo irritar profundamente. Se o lado cómico só triunfa ocasionalmente, a ambição dramática exposta na cena final de Color Wheel mostra uma atitude muita positiva de um filme ainda com limitações formais e dramáticas mas bem intencionado. E isso hoje conta muito.

17 Filles será novamente exibido dia 30 de Abril, 21:45 no Cinema São Jorge na Sala Manoel de Oliveira. Quanto a The Colour Wheel, ainda existem mais duas oportunidades de o ver. São elas no mesmo dia 30 de Abril às 21:45 na sala 2 do Londres e dia 1 de Maio, 21:30, na sala 1 do mesmo Londres.

sábado, 28 de abril de 2012

Dia 2 no Indie- Deus, Tuning e Salaviza


Fazer hoje um documentário de curiosidade desinteressada sobre a religião católica parece ser tarefa quase impossível, própria de um verdadeiro “crente” no cinema. A ideia literalmente expressa por uma das intervenientes em Die Werde des Herrne (Flock of the Lord) de Romuald Karmakar - a de que a religião é algo que corresponde hoje a uma mentalidade “velha” - está no centro de uma vontade de documentar esse movimento de decadência. Este é um processo onde os verdadeiros movimentos de crença na “religião n.º 1” são substituídos, ou apanhados por uma câmara que é, na maioria das vezes, espelho de um olhar irónico que coloca o catolicismo no centro de uma crença desacreditada, própria de excêntricos e anacrónicos. A este movimento tendencial com que a história trata o tema, o filme de Romuald Karmakar não consegue escapar por inteiro. Quer dizer, a obra filmada para o canal ARTE sobre a morte do papa João Paulo II e nomeação do papa Bento XVI como seu sucessor é um tanto vítima do seu dispositivo formal de apresentação. O uso recorrente do fade to black mais do que favorecer a acumulação do fragmento, deixa, pelo que é retratado é certo, muitas vezes o espaço “neutro” para o espectador processar a ironia e o riso. É contudo também da sua estrutura que advém o melhor de Flock of the Lord. Se a sua primeira metade é um olhar irónico sobre a agitação espiritual, intelectual e económica que sofreu a pequena vila de Marktl, de onde Ratzinger é oriundo, a segunda faz um flashback até uns dias antes no Vaticano onde milhares de pessoas afluem para prestar as últimas homenagens ao papa recentemente falecido. Neste segmento a atitude de Romuald, talvez submetido ao espaço habitado, já procura menos a caricatura e mais o “viver com”: a exploração em travellings de plena curiosidade sobre os rostos e corpos dos crentes em espera nas longas filas, os labirintos das imediações da praça de S. Pedro, os cânticos, as palmas e as emoções. Desta feita o filme abre-se mais ao mistério religioso, negando sempre o contracampo do palco donde emana o “espetáculo”. É que este sempre esteve do lado nas pessoas, do lado da emoção embutida na carne e na psiché dos fiéis.

 
Alguma vez se perguntaram o que aconteceria a uma personagem de The Fast and the Furious se de repente fosse penetrado de uma sensibilidade adulta provinda das paragens do drama urbano francês?  Eu também não. Mas o certo é que Voie Rapide, a primeira longa-metragem de Christophe Sahr, filme que abriu ontem a competição internacional de longas-metragens do IndieLisboa dá uns lamirés sobre o assunto. Alex é um jovem que foi “apanhado” por uma mulher, como diz o amigo, ao ter um filho dela demasiado cedo. Vive então dividido entre o amor oficial adulto pela sua esposa e filha e o amor colorido e veloz pelo tuning, corporizado no seu Honda ultra quitado. Numa noite em que conduz o “amante” (em francês, la voiture) atropela uma pessoa e foge. Este episódio além de lhe custar uns valentes euros de arranjo do carro adensa-lhe a crise emocional e o crescente afastamento da família. Entre estes dois amores, esta longa-metragem toca os beats todos da arquitetura narrativa de qualquer conceituada escola de cinema. Mas fá-lo sempre numa escrita demasiado linear, para em qualquer dos momentos do filme possa guardar algum mistério e com ele, o envolvimento emocional, formal ou até sociológico do espectador...

 
A sessão prime time de ontem coube à ante-estreia nacional de Rafa de João Salaviza, vencedora do Urso de Ouro parta melhor curta-metragem em Berlim este ano. A completar a sessão a apresentação de Nana de Valérie Massadian, vencedora do prémio para melhor Longa Metragem em Locarno. A sessão mostra-nos que os filmes também não se medem aos palmos. Rafa, opera uma extraordinária operação de dilatação do espaço mas sobretudo do tempo. Quanto ao primeiro diga-se que a passagem do suburbano ao centro da cidade de Lisboa – a viagem de Rafa -  viagem que se diria de abertura do espaço, é sempre mantida no confinamento dos seus planos. A delimitação clara destes, sobretudo nos exteriores no centro de Lisboa parecem indicar que o espaço físico, na sua plena extensão, nitidez, está vedado na totalidade ao dilema social da suburbanidade. Quer em Arena, quer em Rafa, esse espaço não dado (veja-se a melhor sequência, a da interrogatório do protagonista, com um só campo visível) permite ao espectador estender o visível à custa do interior em convulsão. Quanto ao tempo diga-se que Rafa é claramente um filme cuja potencialidade se encontra enclausurada na curta-metragem. Esta clausura não encurta as ideias, adultifica-as através de um processo de evasão, como em preparação para um depois de Rafa. Desta feita, o último plano do filme revela isso precisamente. Que Rafa e Arena foram dignas provas de crescimento, no sentido de etapas de crescimento (até pelo seu Tema), de “ritos de passagem”, e que o seu autor, João Salaviza, está mais do que pronto para passar ao formato longo. 

 
Nana, por sua vez, poderia padecer do inverso, a não “rara” doença da curta metida no corpo de uma longa. Em universos próximos de Yuki & Nina (2009) de Hippolyte Girardot e Nobuhiro Suwa, ou recuando um pouco mais em Ponette (1996) de Jacques Doillon, Massadian pretendia aproximar-se do universo da sua infância através de uma menina de 4 anos chamada Nana. Esta vive no campo com a mãe perturbada nos seus dilemas adultos incompreensíveis e um avô que nunca está próximo da filha. Além de uma fotografia excepcional a cargo de Dominoque Auvray e da própria Valérie, o filme é muito deixando a cargo da própria Nana na capacidade que tem de encantar o espectador pelas suas reações precoces e brincadeiras desconcertantes. Neste sentido, a categoria do gag infantil acaba por tomar conta do filme, na sua capacidade de preencher a perigosa categoria do “querido” e do “enternecedor”, contaminando um pouco a premissa inicial. Ao longo do filme percebemos que Massadian está preocupada com a reação ao plano que irá existir do lado de cá e que isso lhe tolda algumas decisões. O tratamento da personagem da mãe é disso um bom exemplo.

Apesar das discrepâncias entre os dois filmes, colocá-los lado a lado, a “dançar juntos” como referiu Massadian, como aconteceu ontem e como sucederá em breve com a estreia comercial de ambos, parece-me uma ideia interessante. Isto claro se se inverter a ordem dos visionamentos. 

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Into the Abyss


O estatuto de Werner Herzog parece ser daquelas coisas que mais do que inquestionável, é uma abstracção que permite fazer explodir quaisquer ideias que possamos trazer para a análise crítica do cinema. Expliquemo-nos. Ao ver a sua última obra, o documentário Into the Abyss sobre um jovem condenado à pena de morte no Texas, ressaltariam logo à partida dois estigmas. Um tema pisado e repisado na história do documentário recente (uma das referências mais óbvias é The Thin Blue Line de Errol Morris) visto a partir de uma simplicidade, ousaríamos, quase televisiva (o predomínio das entrevistas, a música emocional, etc.). Contudo, a voz do autor alemão, literalmente, na sua ausência de corpo, a marcar com o seu inglês de sotaque germânico duro, produz um discurso que traz à tona o que de mais precioso tem o género documental: a curiosidade antropológica, ontológica mesmo, pelo mundo e seus avanços e recuos inesperados. É sobre esse filtro franco, implacável por vezes, que todas as personagens que se expõem a Herzog, o fazem na mais compreensível das suas razões: todos têm motivos, todos são dignos de pena, revolta e admiração. Herzog, no seu primeiro encontro face to face com o assassino Michael, a escassos dias da sua execução diz-lhe que não tem necessariamente que gostar dele, que apenas considera que é ilegítimo que um ser humano condene outro a morrer. Admirável é que em Into the Abyss se reverta toda a fragilidade do tema da morte, do crime e da punição que poderia gerar pena ou compaixão face às suas personagens noutra coisa. A profunda emotividade do filme provém doutro lado. Arriscaríamos que ela nasce do choque dos diversos discursos de honestidade: sobretudo entre o lado de lá da câmara (por exemplos, os discursos de uma familiar da vítima que “gostou” de ver a execução do criminoso, seja da frieza infantil e inconsequente do próprio Michael Perry) e o lado de cá, a integridade sincera do realizador alemão. As conversas com criminosos, vítimas, familiares, executores mostram que os trágicos eventos parecem apanhar toda esta classe suburbana, pouco alfabetizada do Texas, por igual, numa torrente social que os ultrapassa muitas vezes. Como Herzog refere a certa altura: como se o destino lhes tivesse dado um baralho de cartas muito mau. Nesta torrente, o realizador alemão “salva” ainda os outros pequenos “milagres” no filme: uma árvore que cresce no interior do carro cujo roubo gerou três mortes, ou a sugerida inseminação artificial da namorada do outro criminoso Jason Burkett, através do contrabando do seu sémen para o exterior da prisão.

Sem ser uma obra central na carreira de Herzog o visionamento de Into the Abyss produz um “prazer” muito próprio, aquele inerente à natureza do contato entre a curiosidade pelos motivos e a reserva nas causas.

O filme será novamente exibido às 19:00 no dia 4 de Maio no Grande Auditório da Culturgest.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

IndieLisboa´12



É já hoje que se inicia mais uma edição do festival lisboeta que é há já alguns anos nome de peso do circuito internacional de cinema independente. O festival, que decorrerá entre 26 de Abril e 11 de Maio, apresenta, na sua 9ª edição, perto de 250 filmes, espalhados pelos cinemas São Jorge, Londres e Culturgest.

A sessão de abertura do Indie está a cargo de Dark Horse de Todd Solondz que, dois anos após Life During Wartime, volta a falar de personagens marginais. Desta feita um trintão que vive em casa dos pais e passa o tempo a procurar brinquedos antigos no e-bay. O filme será exibido às 21:30 na sala Manoel de Oliveira no Cinema S. Jorge.

O outro grande destaque da noite vai para o último trabalho de Werner Herzog, homenageado na secção Herói Independente do IndieLisboa’09. Into the Abyss é um documentário que acompanha os últimos momentos antes da execução do assassino Michael Perry e a entrevista a familiares de algumas das suas vítimas. Certezas de vida e de morte convocam a uma reflexão sobre a pena de morte e os limites da ação e da jurisdição. O filme passa também às 21:30 mas no Grande Auditório da Culturgest. No Pequeno Auditório arranca às 21:45 a Competição Internacional Curtas. No S. Jorge, sala 3, às 21:30 terá lugar a sessão Director’s Cut Curtas, reflexão sobre o cinema composta também por várias curtas metragens.

No Londres, na sala 1, às 21:30 são exibidos dois filmes do artista contemporâneo chinês Ai Wei Wei: Ordos 100 e So Sorry. Na sala 2, às 21:15, inicia-se com um conjunto de curtas-metragens a secção Pulsar do Mundo, que procura refletir sobre as grandes questões da atualidade mundial.


 Podem consultar aqui a restante programação.

domingo, 22 de abril de 2012

A elipse renoiriania




A ideia panteísta de comunhão com a natureza, o espaço de inocência e completude na vida e no amor são traços da jouissance renoiriana que em Partie de Campagne (1936) se literalizam. Talvez por isso seja o filme que mostra de forma mais límpida a complexidade, o célebre “chacun a sa raison” contido na vontade de viver da melhor forma que cada um pode e sabe. O final entrecortado, alguns dirão abrupto, da obra, já mostra outra coisa. É a rememoração de um espaço onde se foi feliz. Para isso, o marido de Henriette surge grotesco, clownesco. Nele, como espelho, podemos ver plenamente os anos de tristeza que a jovem esposa viveu quando se casou. A dessintonia de destinos mal juntos como desfecho comum do naturalismo do francês. É sobretudo a luz talvez que nos mostra isso na conclusão, na “elipse” para a frente, no final de The Diary of a Chambermaid (1946) na qual Céléstine cumpre o desígnio do final feliz hollywoodiano, anti-Renoir, ao casar-se com o doente Georges. É essa luz “bouleversante” que nos revela que o plano inicial da protagonista foi cumprido (obter muito dinheiro e finalmente não querer saber do amor) e o “até que a morte nos separe” ganha então tons de ironia suprema. Num caso, o terceiro como espelho, como noutro, a luz reveladora, tratam-se de pistas, sintomas, de que a elipse em Renoir luta para vir a campo. Sempre tendo como desígnio clarificar ao espectador o “inclarificável”.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Como cortar um porco ao meio?



“Si nous voulons savoir de quelle valeur sont les biens de la Terre, considérons-les du lit de la mort : ces honneurs, ces divertissements, ces richesses nous serons enlevés un jour. Il faut conséquemment travailler à nous sanctifier et à nous enrichir des seuls liens qui nous suivent dans l'éternité. (Saint Alphonse de Liguori).”

As pequenas coisas que levamos para a eternidade, aquelas que constroem a nossa imortalidade, são as que Otar Iosseliani decidiu agarrar com o belíssimo fresco rural que é Petit monastère en Toscane (1988). Há por certo um sentido de apaziguamento com o mundo, quando se trata de filmar, em observando e em participando, dos rituais quotidianos dos abades de Castelnuovo Dell’abate, perto de Sienna em Itália e dos habitantes de uma vila vizinha na Toscânia. Para isto não há truques de montagem ou outros. De quê serviriam? A neutralidade e peso da câmara limitam-se a estar lá e a refazer actividades: a apanha da azeitona, o abate de porcos, a limpeza da terra, as refeições, o tempo sem alegria ou tristeza. Os pés das senhoras, de Cristo, as canções litúrgicas ou boémias, as festas populares, tudo se sucede, sem dar azo a esse “monstro” chamado ritmo. É esse estranho peso da neutralidade, da passagem, que contém em si o mistério das coisas íntegras. Esse pecado de dar a ver a uma distância milenar e carinhosa parece contrastar com a imaginação sem freio da ficção do georgiano. Este aparente contraste de registos causa perplexidade, não fosse essa responsabilidade bela, benigna, que é o traço condutor da visão de Iosselini. O autor confessa que não sabe porque faz um filme destes, hoje, para quem, porquê? Nós não sabemos tão pouco e isso é uma virtude.    

Contudo, Petit monastère en Toscane choca connosco, enquanto proprietários de um discurso sobre a “perda,” embate nesse  sentimento ilusório ou real (?), de que algo está para acabar. E que esse fim será irreparável.

No final do filme há a promessa de regressar aqui, vinte anos depois, para retomar esta gente num segundo filme. Os vinte anos passaram. A medo, dizemos, que Iosseliani ainda nos deve esse retorno.