quarta-feira, 8 de abril de 2020



"Há um duplo movimento na epidemia. Por um lado, ela revela sempre a inescapável continuidade do espaço e do tempo (impossível de dominar, impossível de interromper) e, por isso mesmo, ela expõe a condição irremediavelmente colectiva desse «milieu», desse meio-ambiente, que estamos (ainda) na «obrigação» de partilhar. Esse foi, aliás, o grande trauma que acompanhou a burguesia ao longo do século XIX. Cada epidemia tornava visível não apenas a miséria extrema do espaço urbano produzido pelo capitalismo, mas uma profunda, inevitável e «intolerável» continuidade corporal, física e espacial entre a burguesia e o proletariado pobre e insalubre, empurrado para dentro dos quarteirões ou para os fundos infestados das «ilhas». Não se tratava apenas da súbita consciência do «outro» (miserável e invisível), mas a consciência aterradora de um espaço comum, irremediavelmente comum, demasiado próximo. Neste sentido, a epidemia é uma espécie de inversão fantasmagórica do liberalismo (que foi aliás o grande opositor, durante os séculos XIX e XX, a qualquer medida que visasse melhorar as condições de salubridade das populações). Se, em parte, podemos ver na epidemia a realização absoluta do liberalismo, a sua utopia plena enquanto construção de um espaço global, único, liso, infinitamente rentável na exploração imunitária dos corpos pelo vírus, ela é simultâneamente o seu maior pesadelo, porque expõe as consequências e as contradições do princípio da concorrência que organiza o corpo social – «a guerra de todos contra todos», como lhe chamava Engels –, ao mesmo tempo que torna evidente um espaço-tempo que longe de ser individualizado e isolável é comum e interdependente."

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