quinta-feira, 30 de abril de 2020

Atalhos-detalhes




Os atalhos da cinefilia são maravilhosos. Nunca tinha visto o clássico "Dark Passage" e não cheguei pela via mais óbvia: o par Bogart/Bacall. Nem pelo segundo caminho mais óbvio: admirando a arte de Delmer Daves. Mesmo que a câmara subjectiva da primeira metade do filme seja bem boa, e transporte o noir para tons (ainda) mais sombrios de thriller. Cheguei a "Dark Passage" pela curiosidade no trabalho do escritor e argumentista David Goodis. Mas mesmo este foi um caminho frustrado. Ao contrário de "The Unfaithful" (1947) de Vincent Sherman, onde o toque da escrita está bem à vista, aqui o argumento é menos conseguido. Demasiados diálogos de resolução, com acções mencionadas e não antes vistas, ou pelo menos intuídas, em off. Muita da resolução da intriga acontece nas palavras, não nas imagens. Mas, dito isto,"Dark Passage" é um daqueles filmes que brilham muito por causa dos seus secundários. O rosto e palavras intrigantes de Tom D'Andrea, o taxista que leva Bogart até à operação de mudança de rosto. Assustador e amigável ao mesmo tempo, uma cena inesquecível. Depois, os dentes desordenados de Clifton Young, que vai do criminoso inteligente ao banal rufia. E, depois, o que dizer daqueles olhos a pegar fogo de Agnes Moorehead? A trabalhar lentamente da chata à mulher solitária e perturbada. No momento final em que aparece todos os problemas de argumento se esfumam. Que actriz. E ainda nem falei do rosto controlado e olhos a faiscar de desejo de Bacall e as ligaduras Frankenstein de Bogart, apenas a deixar ver aqueles lábios fininhos. A cinefilia é feita destes atalhos-detalhes, do brilho que ofusca quando abrimos os olhos ao desconhecido.

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