Os atalhos da cinefilia são maravilhosos. Nunca tinha visto o clássico "Dark Passage" e não cheguei pela via mais óbvia: o par Bogart/Bacall. Nem pelo segundo caminho mais óbvio: admirando a arte de Delmer Daves. Mesmo que a câmara subjectiva da primeira metade do filme seja bem boa, e transporte o noir para tons (ainda) mais sombrios de thriller. Cheguei a "Dark Passage" pela curiosidade no trabalho do escritor e argumentista David Goodis. Mas mesmo este foi um caminho frustrado. Ao contrário de "The Unfaithful" (1947) de Vincent Sherman, onde o toque da escrita está bem à vista, aqui o argumento é menos conseguido. Demasiados diálogos de resolução, com acções mencionadas e não antes vistas, ou pelo menos intuídas, em off. Muita da resolução da intriga acontece nas palavras, não nas imagens. Mas, dito isto,"Dark Passage" é um daqueles filmes que brilham muito por causa dos seus secundários. O rosto e palavras intrigantes de Tom D'Andrea, o taxista que leva Bogart até à operação de mudança de rosto. Assustador e amigável ao mesmo tempo, uma cena inesquecível. Depois, os dentes desordenados de Clifton Young, que vai do criminoso inteligente ao banal rufia. E, depois, o que dizer daqueles olhos a pegar fogo de Agnes Moorehead? A trabalhar lentamente da chata à mulher solitária e perturbada. No momento final em que aparece todos os problemas de argumento se esfumam. Que actriz. E ainda nem falei do rosto controlado e olhos a faiscar de desejo de Bacall e as ligaduras Frankenstein de Bogart, apenas a deixar ver aqueles lábios fininhos. A cinefilia é feita destes atalhos-detalhes, do brilho que ofusca quando abrimos os olhos ao desconhecido.
quinta-feira, 30 de abril de 2020
terça-feira, 28 de abril de 2020
quarta-feira, 22 de abril de 2020
terça-feira, 21 de abril de 2020
Não quero parecer paranóico, mas o facto de o modelo escolar baseado na relação professor-aluno estar neste momento a passar num canal chamado RTP MEMÓRIA contém, do meu ponto de vista, algum valor simbólico, além da período especial de excepção em que vivemos. Especialmente, se tivermos em conta como há anos que o fenómeno MOOC (Massive Open Online Course) parece vir, progressivamente, a cavar uma sombra sobre o dito modelo presencial e pessoal.
terça-feira, 14 de abril de 2020
Raccords do Algoritmo #21: Chacun seu marisco
"Eles comem tudo, eles comem tudo. Eles comem tudo e não deixam nada."
Os Vampiros, José Afonso
Ainda não tínhamos curado as testas inchadas de andar à cabeçada uns aos outros pelo excelso ou medíocre valor cinematográfico e político de Gisaengchung (Parasitas, 2019) de Joon Ho Bong e eis que nos metem pela goela abaixo da sala de streaming (vulgo Netflix) outra parábola política que toda a gente vai ver e dizer coisas maravilhosas e péssimas. Só que desta vez vai ser pior porque estamos fechados na cave do filme do coreano (vulgo, o nosso isolamento covídico). Trata-se de El hoyo (A Plataforma, 2019), longa de estreia do espanhol Galder Gaztelu-Urrutia, que foi distribuída worldwide na referida plataforma no final de Março. Segundo se sabe a Netflix adquiriu os direitos logo após o Festival de Toronto do ano passado (no qual estreou), ou seja, antes de ter noção que iríamos passar a saber o que era afinal um passeio higiénico. Mas o seu timing de lançamento é bastante oportuno para capitalizar todo o nosso confinamento, uma jogada de mestre quase tão interessante quanto fazer bolos em formato de papel higiénico ou coelhinhos de chocolate da Páscoa envergando máscaras de protecção individual (true stories).
A alegoria reza assim: há uma prisão vertical com centenas de andares; em cada andar apenas dois prisioneiros num quarto que contém um grande buraco ao centro; todos os dias, por esse buraco, vai descendo uma plataforma que é uma mesa com comida e que permanece em cada andar dois minutos; é esse o tempo que os ocupantes de cada nível têm para se alimentar antes que a comida passe para o andar de baixo. É bom de ver que os níveis superiores refastelam-se e os debaixo... bom... os debaixo tentam sobreviver como podem. Esta é uma espécie de versão de La Grande Bouffe (A Grande Farra, 1973) virada do avesso, em que os comensais não comem até à morte mas morrem se não comerem. Entretanto, el hoyo, que em espanhol também quer dizer o buraco, mostra bem a dimensão hardcore da coisa. Os debaixo comem os restos dos de cima, mas o buraco é o da boca mas também é o do cú, e os de cima "'tão-se a cagar" para os debaixo. Literal e metaforicamente.
Este dualismo boca/rabo espelha bem duas outras duplicidades. Desde logo, o do próprio filme que, ao mesmo tempo que navega o explícito e o futurista de coisas como Saw (Saw - Enigma Mortal, 2004) ou Cube (Cubo, 1997), é ele uma espécie de Snowpiercer (Expresso do Amanhã, 2013) ou o já referido Gisaengchung. Depois também porque ele oscila, na sua parábola, entre a visão de um darwinismo social e a solidariedade espontânea. A arquitectura da prisão ilustra esta visão economicista que pressupõe que se os ricos estiverem bem, se comerem, se produzirem, toda a sociedade será saudável e ninguém vai para a cama com fome. É um modelo que podemos ver em alguns casamentos expressos na famosa cascata de chocolate. O chocolate escorre ao longo da cascata social, adocicando todas as bocas. Mas o argumento de David Desola e de Pedro Rivero mostra bem a falência desse modelo. Não só porque o chocolate não é matéria inesgotável – a mesa só passa uma vez por dia e todos têm de comer dela – como também quem se serve primeiro pode ter a tentação de comer todo o chocolate ou de simplesmente o transformar em merda.
O herói que seguimos na história procura achar uma solução alternativa. Segundo crê, a saída da prisão só se fará fazendo com que a comida dê para todos. É o modelo que podemos ver em alguns casamentos expressos na famosa pirâmide de mariscos. Mas com uma advertência, cada um só pode comer um bichinho. E cada um tem direito ao seu bichinho. Desculpem aos mais sensíveis se tento explicar o comunismo com recurso a artrópodes. É de mau gosto, eu sei, mas não tenho mais nada, o isolamento já pesa.
Uma cena em particular parece bem adequada a dizer-nos que a obra de Galder Gaztelu-Urrutia é apenas uma metáfora mascarada de filme de consumo rápido. Há uma regra no presídio futurista: quando alguém tenta usar os dois minutos em que tem a comida à frente para guardar mantimentos em vez de os comer, a temperatura do quarto sobe ou desce desmesuradamente. Por outras palavras: "meu marçano, se acumulares como faz o capitalista, provocas a catástrofe ecológica da quentura ou do gelo. Tiras apenas aquilo que precisas, se fazes o favor".
Isso deixou-me a pensar numa outra cena sobre o guardar comida. Mas um guardar para os seus, não para si. Estamos em 1936. O simplório tocador de tuba, Longfellow Deeds (Gary Cooper), habitante de uma pequena vila em Vermont, herda 20 milhões de dólares. Torna-se repentinamente num dos homens mais ricos dos Estados-Unidos e tem de ir para Nova Iorque tratar do seu património. Como com todos os heróis de Capra, o protagonista de Mr. Deeds Goes to Town (Doido com Juízo, 1936) é um homem com um coração de ouro. Mas a imprensa quer vendê-lo como playboy lunático, e os leitores do jornais etiquetam-no como mais um rico sem escrúpulos. A certa altura um pobre agricultor (John Wray) desesperado por não conseguir alimentar a sua família e irritado com as falsas excentricidades sobre Deeds, consegue furar os seguranças deste e com uma arma planeia matá-lo. No último instante arrepende-se, chorando, "I'm at the end of my rope". Que em português se pode traduzir precisamente por "estou no fundo do poço ou do buraco".
E como trata Deeds/Capra alguém que está no fundo do hoyo? Na cena seguinte Cooper senta-se em frente ao agricultor que tremendo e suando de fraqueza come de forma voraz. O empregado do milionário vem servir um pouco mais de comida e, a dada altura, o pobre homem pára de comer por um instante um pedaço de carne e pergunta ao dono da casa: "can I take some of this home with me?" Perante a resposta positiva de Deeds, o homem prossegue a refeição. Este é um momento importante pois é aqui que o herói capriano percebe que não basta querer não saber do seu património, é necessário algo mais. É preciso proceder à sua distribuição por quem não tem trabalho, por quem luta todos os dias por um pedaço de pão.
Interessante como mudam as retóricas do cinema. Muitos, mesmo entre cinéfilos, terão a tentação de olhar hoje para os filmes de Capra como ingénuos, como pedaços de uma doce utopia. E ao mesmo estar receptivos a uma mensagem igualitária, envolta em tripas e canibalismo como em El Hoyo.
Ainda o cinema e ainda a repartição. Quem está no topo ou quem tem muito não precisa de olhar para baixo. No filme espanhol podemos ver que esse "longe da vista" é um literal fora de campo. Com excepção dos vislumbres do imediato vizinho de cima ou de baixo, ninguém consegue ver os demais andares e seus habitantes. Podemos pensar que o Outro (aquele com quem devemos repartir, ajudar, dar a mão) habita o nosso fora de campo? Mas se isso é verdade, como trazê-lo para o nosso plano, o nosso campo de visão? Em que o Outro não seja como um monstro mental e mitológico, apenas abstracto, apenas imaginado, como nos melhores filmes de terror psicológico.
Reparem na última imagem deste texto, abaixo. Este é o momento em que Deeds começa a repartir os seus 20 milhões por um conjunto de agricultores. A cada um dará um pedaço de terra, animais e outros recursos para se poder estabelecer. O que ressalta à vista desta estratégia de "a cada um o seu marisco"? Capra não coloca os destinatários da generosidade do herói no fora do campo. Eles permanecem, todos, em campo. E mais. Na estratégia política de Capra, campo não é apenas uma figura cinematográfica, é algo palpável pois é campo (terra) o que cada um vai receber. Se isto é um cineasta ingénuo...
segunda-feira, 13 de abril de 2020
Os Olhos do Farol (2010) Pedro Serrazina
Um dos mais belos filmes da animação portuguesa. É difícil não pensar em Epstein, nos ventos e tempestades de Le tempestaire (1947). O poder de controlo e descontrolo do mar e das suas raivas. Aqui uma menina que vive com o seu pai, faroleiro, também parece ter essa habilidade. A sua tristeza ou zanga eriçam os mares. O pai vive na sua quarentena física, encerrada numa torre, símbolo que uma quarentena emocional. Um passado que não sai à rua. A vastidão do areal e a prisão gradeada do farol opõem-se. Serrazina trabalha com a sobreposição de duas figuras femininas, com a simbologia do vermelho, com as sombras ancestrais da brincadeira da filha a serem evocações do passado, com o trauma como imagem fixa - pintura. As sugestões do seu talento parecem intermináveis. Mas são apenas quinze minutos de uma precisão absoluta para nos atingir violentamente no coração.
Nyo Vweta Nafta (2017) de Ico Costa
Se penso numa casa como um espaço de abrigo, o mundo não deixa de ser um muito mais emocionante abrigo global, porque cheio de descobertas e incertezas. O nosso confinamento temporário tirou-nos essa possibilidade de ir por aí "ao deus-dará", rumar de forma incerta, descobrir criativamente o espaço. É o que faz de forma maravilhosa esta pequena ficção de Ico Costa, filmada em Inhambane. Uma das personagens procura uma mulher, Nafta. Essa busca é apenas a centelha ficcional de uma procura muito mais vibrante: a câmara não pára de trabalhar para insuflar-nos os sentidos de novas coisas. Cores fortes, o interior atravancado de autocarros (que não conhecem distanciamento social), a partilha de desejos e palitos (que não conhecem distanciamento social) ou o bulício de mercados e bailes (que juntam as pessoas, como uma banalidade que nos sabe hoje a miragem). Nyo Vweta Nafta mostra-nos pequenas encenações da vida na cidade moçambicana, mas sempre ancorada neste desejo documental de furar a higiene e o confinamento da construção artificiosa. Quem o viu não vai mais esquecer aquela descida progressiva de uma esplendorosa baobá. Não estamos apenas com os jovens que apanham frutos para vender, uns sonhando com café (o vício dos ricos; a "ritalina" da produção) outros com cerveja no tasco. Estamos com Ico Costa na descida, símbolo de um filmar e ouvir o verdadeiro, o que cresce das terras, cá em baixo: as gentes.
sábado, 11 de abril de 2020
My Trip Abroad
“My Trip Abroad”, livro de memórias de uma viagem de férias de Chaplin à Europa no início dos anos 20, não me cativa por aí além. As descrições são sobretudo de passagens entre festas, almoços, jantares, travessias, impressões fugidias em ritmo rápido. Contudo há algo nas suas entrelinhas que vale todo o livro. Esta é afinal uma viagem em busca da solidão e do silêncio. Uma busca em vão, uma impossibilidade de fugir desse monstro devorador chamado multidão. Mas a coisa não é assim tão simples. Creio que é na passagem pela Alemanha, onde finalmente poucas pessoas o reconhecem, que Chaplin se revela afinal triste precisamente por isso, habituado que estava a vénias, salamaleques, pedidos e presentes. A fuga à confusão, que era afinal uma fuga de si próprio, revela-se uma tentativa frustrada de separar a persona no ecrã do homem. Mas quando passamos todo o tempo a ser a pessoa pública, até a pessoa privada sente falta dessa vida bigger than life.
segunda-feira, 6 de abril de 2020
quarta-feira, 1 de abril de 2020
Três prenúncios ou três coincidências
Três prenúncios ou três coincidências. A primeira vemos que o cinema viu a persona de The Tramp (Kid Auto Races at Venice, 1914) acontece que…
1.Ele é o emplastro entre a câmara e o “acontecimento”. Isto é, o seu desajeito e inoportunidade são sinal também da sua persistência. Não basta ficar com a biografia de Chaplin para o comprovar, é preciso tirar ilações no que diz respeito à sua “lição humanista”. Bem precisados estamos da sua resiliência;
2.Ele não está no ritmo do “acontecimento”. A corrida de carros é (ou torna-se) background sem grande importância. Chaplin viverá sempre dessa inversão: no detalhe vive a relevância, no evento, muitas vezes, a banalidade;
3.Ele surge de improviso, no meio da multidão real. Sabemos como era perfeccionista no domínio do seu “relógio suíço”, o seu corpo. Mas esse domínio absoluto é para estar nas ruas, para dar às gentes. Na primeira vez que o espectador viu The Tramp ele já era símbolo do povo.
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