quarta-feira, 31 de julho de 2019
E se parássemos de sobreviver?
“E sendo os relógios meros marcadores repetitivos de coisas que mudam sobre outras que duram, podemos falar de um tempo de processos humanos que se acelerou por referência a um tempo objectivo, cosmológico, imune à acção humana. Fazemos mais coisas, ou mais exactamente, fazemos acontecer mais ciclos de coisas (…). Mas isto de fazer mais ciclos de coisas não significa que aconteça mais, ou sequer o mesmo, nesses ciclos. Significa apenas que medimos muito mais o que nos acontece, que tornámos tudo mais contável, mais objectivamente mensurável e, por isso, também mais comunicável, mais partilhável, mais facebookável. A aceleração do tempo social serve um propósito muito objectivo de industrialização do acontecimento, tornando-o estruturalmente rentável, comercializável, unidade de troca, assimilado ao sistema produtivo (…). Neste processo de industrialização do acontecimento, estarmos obcecados por estar sempre a acontecer algo não faz com que aconteçamos mais. (…) Parar nas coisas tornou-se um mal tão grave como uma improdutividade económica superlativa, levada a todas as dimensões do nosso existir. Pelo contrário, tornou-se imperativo fazer-nos acontecer muitas coisas, tudo à semelhança do imperativo económico de produzir mais e mais em menos e menos tempo.”
E se parássemos de sobreviver? - André Barata
O que mais me impressiona na escrita de João Miguel Tavares não são naturalmente as suas opiniões, às quais tem todo o direito. É antes dar-me a sensação, enquanto leitor (concordante ou discordante), de que as suas crónicas, do seu título à ultima frase, parecem uma engenhosa e laboriosa obra de provocação. Esta ideia de escrever contra. Como se o conteúdo se secundarizasse a esta personagem que encarnou e que a tudo domina: a do grande provocador. Talvez por isso o resultado seja este, o discutir-se menos aquilo que pensa, e mais aquilo que deseja ser como interventor social. Menos o pensador e mais o protagonista. Claro que JMT não inventou o estilo provocador e nem isso é necessariamente desinteressante. Por exemplo, o César Monteiro. Também não creio que seja um problema de vazio de conteúdo. Muitos dos textos que li fazem sentido, apesar de não concordar com eles. Não posso naturalmente dizer que sejam vazios de ideias. O meu problema é que as ideias são sempre ofuscadas por esta espécie de sombra que paira sobre os seus textos, que é a necessidade de se auto-colocar sempre no centro de uma polémica, de um furacão. Mesmo que seja ele a criá-lo.
sexta-feira, 26 de julho de 2019
quinta-feira, 18 de julho de 2019
Her Smell (Her Smell – A Música nas Veias, 2018) de Alex Ross Perry
Em Abril de 2012, numa sessão do IndieLisboa vi The Color Wheel (2011), segunda longa do nova iorquino Alex Ross Perry, e recordo-me de ter pensado numa obra ainda a tactear um espaço pessoal. O preto e branco granuloso nos seus 16 mm, a desconstrução da comédia romântica, a dimensão pseudo-autobiográfica, os planos irrequietos como no meio da improvisação. Lembro-me de ter pensado demasiadas vezes em John Cassavetes. Mas tudo isto era normal, it’s part of the game. Em 2014, Listen Up Philip (2014) fez-me pensar demasiadas vezes em Woody Allen, um escritor emulando o seu pessimismo, as suas neuroses trágico-cómicas. Entretanto, havia mais referências possíveis: Noah Baumbach, os irmãos Safdie, e, com um bocadinho de imaginação mas tirando a regra e o esquadro, os primeiros Wes Andersons.
Mas como o tempo passou e havia nas obras de Perry esta vontade de pertencer a um imaginário já feito, perdi um pouco o interesse. Deixei passar Queen of Earth (2015) (pelo que leio um dos seus filmes mais minimais e conseguidos) e Golden Exits (2017). Ross regressa em 2018 com este Her Smell (Her Smell – A Música nas Veias, 2018) e um conjunto de habitués no seu cinema: desde logo o aqui montador, mas também produtor e realizador Robert Greene, o director de fotografia Sean Price Williams [que parece aqui ter continuado o louco, berrante e barroco das cores do incrível Good Time (2017) dos irmãos Safdie] e a maravilhosa actriz Elizabeth Moss que aqui é um monstro de decadência, um “naufrágio de mulher”, como se pode ler neste texto de David Ehrlich.
Com um orçamento um pouco maior do que é costume, Her Smell é suposto ser um vai ou racha para o cineasta. Perry escreveu longos (quase) monólogos desesperados para uma rock star em queda livre. As drogas, mais visíveis nos seus efeitos do que na sua presença, mas também este sentimento de envelhecimento, de has been. A dada altura, a cantora Becky Something, é esse o seu nome artístico, num momento de prece quase lúcida, pede: Cause this is it for old Beckster. Last train is leaving the station, and if I’m not on it then the whistle blows, that’s it for me. Lights out, last call, soup’s cold, ice cream’s melting. Beer’s warm. Yuck. Let’s rally… One more time. Perry inspirou-se na queda de Axl Rose, mas podia bem ser Courtney Love e já que pensamos neste memory lane não há como não evocar o brilho ofuscado de Norma Desmond. Ou nessa solidão mental e evocadora de Gena Rowlands em A Woman Under the Influence (Uma Mulher Sob Influência, 1974).
E nem por acaso paramos novamente em Cassavetes. A primeira metade do filme é um conjunto de longas cenas em espaços fechados – o backstage de um concerto, o estúdio, os diferentes camarins – e a câmara sacode-se por entre conversas tresloucadas, frases ressentidas, enquadramentos de olheiras, suores e borbulhas, fumos de bruxaria, quedas. Um show verdadeiro na sua orgiástica pulsão de drogas e sentimentos mal resolvidos, bem menos ensaiado no que o show oficial. Mas mais ou menos. Se é verdade que Ross Perry não larga a aura cassavetiana, não é menos verdade que tudo aquilo é menos improvisado do que se pensa. Moss disse mesmo que poucas frases que disse Becky não estavam já no papel e que as linhas de diálogo foram do mais difícil que teve de decorar até hoje. O que nos deixa neste limbo novamente: como se a maldição do cinema do realizador nova iorquino fosse a vontade de casar, à força, a escrita meticulosa de Woody Allen e a “falsa” liberdade cassavetiana. Nó górdio que transporta Her Smell para uma terra, não de ninguém, mas de um defraudamento constante: parece Shakespeare mas talvez seja apenas Gaspar Noé; parece um bailado sokuroviano mas é tanto o desejo redentor de um final (quase) feliz.
A segunda parte do filme não é vermelha nem mexida, é branca e estática. Reabilitação da personagem e do cineasta que regressa ao espaço do “terror” punk sem pulsão, um espaço transfigurado e à mercê para uma nova resolução. Ross filma então um inferno sem chamas, uma estranheza de um lugar onde, por entre espasmos, se falou de coisas importantes: ciúmes, egocentrismo, divórcio, relação mãe/filha, responsabilidade parental, ética profissional. Contudo, talvez fosse já tarde demais. Ross continua entalado entre o dionisíaco e a apolíneo: seja quando se regozija no excesso e no espectáculo da decadência do primeiro, seja quando parece procurar a mudança para o segundo, pois aí reside a redenção narrativa que continua a ser exibida como display técnico.
Dito de forma curta e grossa: vemos a manipulação no cinema de Alex Ross Perry. Seja na sua dimensão técnica, seja na sua dimensão dramática. Tudo é palco e palavra para a ideia. E quando assim é… não há embriaguez que nos valha. Podemos fingir-nos bêbados mas ainda vamos ser nós a levar o carro do nosso amigo para casa.
segunda-feira, 15 de julho de 2019
Raccords do Algoritmo #16: Doenças de acção e de inacção
Há duas frases do Herzog, uma muito conhecida, a outra menos – que aparentemente nada têm a ver entre elas – que me têm deixado a moleirinha assada nos últimos dias. A primeira é a resposta à pergunta que abre o fantástico livro-entrevista conduzida por Paul Cronin, Herzog on Herzog. Pergunta este ao realizador alemão se, antes de começar a conversa, tem algum conselho filosófico para dar aos leitores. Ao que este responde com uma citação de um magnata da hotelaria que, quando lhe perguntaram o que gostava de deixar como ensinamento para a posteridade, respondeu: “todas as vezes que tomes um duche, certifica-te sempre que a cortina do chuveiro está dentro da banheira”.
A segunda frase não é propriamente de Herzog, surge antes no último plano da sua terceira curta-metragem, Die beispiellose Verteidigung der Festung Deutschkreutz (The Unprecedented Defence of the Fortress Deutschkreutz, 1967). Esta é uma sátira sobre as questões da guerra na qual quatro soldados entram num antigo castelo austríaco abandonado, outrora utilizado pelo exército russo no conflito com a Alemanha na 2ª Guerra Mundial. Encontram armas, uniformes… só não vislumbram inimigos e como estamos no território da dimensão psicológica, imaginária (cruel até) da propensão humana para a luta, é necessário criar de raiz novos inimigos à força, centelhas de novíssimas guerras. E o filme, dizia, termina com a seguinte frase, no seguimento da ilustração da necessidade antropológica que teríamos da guerra: “mais vale a derrota do que nenhuma guerra”.
Disse que estas frases nada tinham de irmãs, mas talvez um esforço hermenêutico as possa levar ao altar. Ambas, cada uma à sua maneira fazem a apologia da acção. A primeira rejeitando aquilo que tipicamente esperamos de um grande ensinamento teórico para a vida e que tem tudo a ver com outras dimensões do planeta Herzog: a recusa sistemática da ironia e do simbolismo (what you see is what you get); a recusa dos ensinamentos teóricos das escolas de cinema em detrimento da necessidade de viver a vida através da acção física; da necessidade de superar os próprios limites e aprender com os próprios falhanços [Herzog disse a propósito do seu primeiro filme de sempre, a curta Herakles (1962) que se falhasse iria falhar tão profundamente que nunca mais se levantaria]; ainda uma certa força intelectual, auto-confiança, independência para levar adiante os seus próprios projectos, enfrentando sem receios a dureza da realidade. A realidade em Herzog parece dura porque são duros os olhos que a registam.
A segunda frase é igualmente proveniente desta necessidade de enfrentar, em sentido lato, os obstáculos. A acção como um motor da aprendizagem e de superação. Os inimigos não são apenas os outros, mas uma vontade de superação interior, seja ela a de carregar um barco pelo Perú acima ou de percorrer milhares de quilómetros a pé. A biografia e a filmografia de Herzog estão cheias destes episódios. A primeira longa-metragem de Herzog, filmada na Grécia, nas ilhas de Kos e Creta, Lebenszeichen (Sinais de Vida, 1968) começa precisamente com este lema: se eu não tenho nada para fazer, enlouqueço. E é literalmente assim, a história de um soldado alemão, Stroszek, ferido durante a segunda guerra mundial que, não aguentando a inactividade, enlouquece. Loucura cuja imagem mais poderosa é do actor principal, Peter Brogle, disparando contra dezenas de milhares de moinhos de vento, imagem quixotesca esta que Herzog viu aos 15 anos quando visitava Creta e o seu avô arqueólogo que, de facto, havia enlouquecido ali; imagem que ficara marcada no seu imaginário e que passaria a filme.
Este seu primeiro filme é interessante porque expande a ideia da curta Die beispiellose, na qual a acção deve ser mantida a qualquer custo para evitar a loucura. Aliás, a primeira metade de Lebenszeichen dá-nos este sentido meio desconexo no qual os soldados procuram entreter-se e encontrar pequenos objectivos de acção, sejam eles pintar portas, construir máquinas para apanhar baratas ou decifrar inscrições gregas antigas. Mas este interesse pela acção desdobra-se no lado de cá da câmara e é aqui que ele se torna, quando a mim, mais interessante. Os “sinais de vida” do título em português são simultaneamente os típicos “sinais do caos” das rodagens herzoguianas que começaram aqui. Herzog conta que pouco tempo antes de começar a filmar deu-se um golpe de estado na Grécia e todas as autorizações de rodagem foram canceladas e os meios de transportes paralisados. Além disso, a filmagem teve de ser adiada por 6 meses devido a um acidente com Peter Brogle, equilibrista, que partiu um osso no calcanhar. O realizador conta ainda que o exército queria proibir as rodagens por causa do fogo de artifício que poderia ser confundido com armas em tempos de guerra…
Enfim, aquilo que passaria nos anos seguintes a ser o novo normal, como se se pudesse dizer que o próprio Herzog montaria em torno dos seus filmes esta máxima de superação dos seus próprios limites, uma máquina de acção, hiper-resistente, que, confrontando a realidade, adia sistematicamente a posição de cedência, de hesitação, de inactividade. Posições estas que fariam de Herzog um espectador louco e adormecido e não aquilo que sempre quis ser: um artesão lúcido e musculado. Como um dos culturistas de Herakles, primeiras imagens que escolheu para abrir a sua Obra.
Mas…
Mas… Tudo isto é imediato. E no tempo, ao contrário do espaço, só nos conseguimos mover numa só direcção. Esta é um dos pensamentos que podemos encontrar em Iluminacja (Iluminação, 1973) filme do polaco Krzysztof Zanussi que venceu o Prémio Fipresci e o Leopardo de Ouro no Festival de Locarno. O protagonista é Franciszek Retman (Stanislaw Latallo), um jovem estudante que, sendo bom a todas as disciplinas, resolve estudar física. Zanussi fez um filme acerca desse trajecto unidireccional que é a passagem pela universidade para a idade adulta, um trajecto cuja “ansiedade moral” – é esse o lugar comum com que se descreve o universo do cineasta polaco do pós-guerra – pressupõe uma busca do conhecimento, uma vontade de “iluminação”, mas também uma colocação estratégica no espaço de uma Polónia dominada pelo comunismo e pelas diferentes expectativas que se esperam de um jovem inteligente.
Ao contrário do herói do filme de Herzog, cuja doença é a inacção, o físico de Zanussi padece do inverso: é a acção, em toda a sua irreversibilidade, que o vai tornando mais angustiado. Franciszek não quer por isso escolher uma especialidade durante a faculdade e são os eventos da sua vida que parecem puxar a acção adiante. Nomeadamente, a gravidez da sua companheira, facto que o faz interromper os estudos. O realizador polaco constrói este mundo de potencialidade – em que o ser humano é destituído de qualidades quando se submete a uma experiência de vida, quando, como diz o protagonista, “se intervém de forma tão brutal no material base da alma”. Por isso, a sua mise-en-scène é a da construção da cena a partir de um espectador expectante. Um Franciszek que surge frequentemente enquadrado longe da acção (entre frames de janelas, cantos de sala, portas), cujas lentes grossas dos seus óculos observam as cenas decupadas através de montagens rápidas de detalhes impressionistas, mosaicos de imagens servidos com uma banda sonora atonal.
A vida do protagonista de Iluminacja vai avançando de momento em momento, com inserts dos documentos da sua formação, com sequências de conversas filosóficas acerca do papel da física, da ética das experimentações científicas, da capacidade de progresso da sua profissão. A realidade impele o herói às diferentes acções, mas qualquer uma destas impõe essa ansiedade da escolha do melhor caminho: ciência ou religião, vida profissional ou pessoal, lentidão ou velocidade, país natal ou estrangeiro, sujeição ou não das cobaias às glórias do avanço científico. E ainda havia o problema da bomba atómica, questão de físicos, assunto de Humanidade toda.
Ao concluir a comparação improvável convém ter noção que Lebenszeichen é uma obra de começo e que por isso ele tende a falar de forma vociferante e a explodir-nos na cara: é o já referido momento dos fogos de artifício no qual Stroszek resolve “atacar” a cidade a partir da fortaleza onde se encontrava em recuperação. Já Iluminacja é uma obra mais madura (Zanussi realizava desde o final dos anos 50) e contém nela toda a inquietude em tensão. No final, o jovem físico à beira de chegar aos 30 anos é-lhe diagnosticada ansiedade, já com alterações nas artérias coronárias e o médico sugere-lhe começar a viver menos intensamente. Uma doença de acção e um apelo ao remédio da inacção. Na cena final Franciszek surge sorrindo, imóvel, na água de uma praia com a sua mulher e filho. Um final de stasis, oposta à explosão herzoguiana.
Colocar estes dois filmes lado a lado deixa-nos ver uma dada geometria da vida. Quando a indolência ataca explode-se do centro para toda a parte, a tensão acumula como uma bomba cujos estilhaços e suas trajectórias serão essas acções de substituição. Quando é a actividade que corrói, a explosão ocorre dentro, desligam-se aos poucos os mecanismos, desaceleram-se os ponteiros, espera-se que o fogo de artifício não rebente. Que apague nas águas doces ou salgadas da improdutividade.
sexta-feira, 12 de julho de 2019
Uma das melhores aberturas de um livro de sempre
PAUL CRONIN: Before we start, are there any philosophical insights you’d like to give your readers so they might sleep easier at nights?
WERNER HERZOG: Well, let me say just this, something for human beings everywhere, whether they be filmmakers or otherwise. I can answer your question only by quoting hotel mogul Conrad Hilton, who was once asked what he would like to pass on to posterity. “Whenever you take a shower, always make sure the curtain is inside the tub,” he said. So I sit here and recommend to people the same. Never ever forget the shower curtain.
quarta-feira, 10 de julho de 2019
O tambor e o tempo
Apesar do esforço das escolhas, no final de contas, o padrão acumulador acaba por transformar tudo em perigosa aleatoriedade. Num muito recomendável livrinho editado o ano passado pela Documenta, E Se Parássemos de Sobreviver? Pequeno Livro Para Pensar e Agir Contra a Ditadura do Tempo, o seu autor André Barata, aflora esta questão. O tempo visto a partir de um padrão de acumulação e “industrialização de acontecimentos”. Um esforço, como nota o autor, por fazer acontecer mais, a partir de um tempo “contínuo e sem falhas”, “acelerado” e “medida de produtividade”.
E se eu vos disser que a lista acima provinha de um tempo de repouso, aquilo que, cada vez mais por conveniência, chamamos férias? Férias que não se confundem com turismo, mas sim com a cansativa procura de um espaço/tempo para estar descansado. Isto é, tentar exportar o nosso corpo e mente para um outro tempo que destrua os automatismos desta montagem sem fim, de perpetuação de um presente que adiciona sem parar. Procurar recuperar a experiência da passagem do tempo marcada por aquilo que nos acontece, para usar a expressão de André Barata, em vez do inverso, no qual o tempo medido dita duramente como viver e o ritmo do consumo das experiências. O que me faz lembrar a resposta de um senhor em Marrocos, há uns anos, quando lhe perguntei se sabia a que horas é que uma dada loja, fechada, iria abrir na manhã seguinte: “abre quando o dono chegar”.
Volto ao velho tambor da máquina de lavar e às férias. Num café de Peniche, numa dessas manhãs de sábado, começo a Sibila. Quase no início, leio Isidra despachando um seu pretendente: “Versos? Meta-os pelo rabinho acima…”. Sorrio com a invectiva, de olhar absorto, e os avós da mesa ao lado, perante a sistemática e ruidosa destruição da mesa de refeição pelo seu netinho querido, sorriem de volta, achando-me solidário com a sua impotência para fazer parar o pequeno diabrete. Havia um tempo em que ficaria chateado por não ter sossego para ler no café. Hoje limito-me a ler, preservando, o mistério do que acontece.
domingo, 7 de julho de 2019
quinta-feira, 4 de julho de 2019
Terra de Hiroatsu Suzuki e Rossana Torres
Mais de dez anos após Cordão Verde (2009), a sua estreia na realização, a dupla Hiroatsu Suzuki e Rossana Torres volta ao Vale do Guadiana, concelho de Mértola, para filmar. Desta vez uma hora de duração e no centro da maioria dos seus planos dois fornos cobertos de terra, junto a um lago, fumegando, produzindo artesanalmente carvão a partir de madeira. Contudo, este não é um filme didáctico sobre os procedimentos dessa actividade. Aliás, a recusa de planos muito aproximados, de detalhe, e o privilégio de composições mais afastadas e gerais (há quem veja nessa escolha algo de fordiano – com o interior dos fornos a corresponder ao abrigo da “casa”, face ao espaço aberto do monument valley) afasta essa hipótese. Em vez disso, Terra (2018) procura um outro “grande plano”, que é como quem diz, a interacção do homem com o fazer da natureza (a luz a mudar, as sombras, os estados da terra, as formas do fumo e do céu). Como se para filmar de perto a natureza e a integração do homem nela (e não este como o centro da physis) o grande plano correspondesse ao plano geral.
E nessa escala Hiroatsu e Rossana procuram a criação de quadros atmosféricos e telúricos em movimento, nos quais se dão a ver as micro-perturbações do espaço pelo escoamento langoroso no tempo. O filme habita esses micro choques entre o visível e o audível: uma matilha de cães que surge muito ao longe já depois de ser anunciada pelo seu ladrar, um grupo de aves migratórias que rasga o crepúsculo, uma labareda tímida que surge no meio do fumo misterioso; resgatando assim o espectador do seu habitual entorpecimento, da sua visão toldada por uma certo verbalismo e narrativização causal – o espectador testemunha de um dado evento produtivo – e obrigando a tornar-se, por momentos, nessoutro espectador observador de uma progressiva e gradual transformação. No fundo, resgatando uma certa vitalidade primordial do cinema e suas matérias-primas (a mudança da luz, da cor, da acção nos espaços, mas também o tempo do olhar, do sentir, do pensar) para um tempo de observação do outro. O outro que não é necessariamente o humano, que pode bem ser a água, o fogo, o fumo, os pássaros, os fornos em combustão. Ou essa imagem recorrente, do fumo saindo dos fornos como uma Terra, pachorrenta, fumando.
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