Há memórias que corrompem. Mas há também aquelas que nos desencarceram das águas paradas em que atascamos. Era bastante jovem, as cores tinham promessas — vermelho para vermelhíssimo, o escuro "luminava" numa questão de minutos. Era o tempo das portas encerradas. Sentia-me seguro, inerte, construindo fortalezas de quotidiano, engenheiro da solidão e da ilusão. Era o tempo do raio, da enxurrada, do terramoto como forma de fertilizar o presente. Nem um segundo concedido ao silêncio da neve, ao zumbido dos insectos, ou ao amor invisível. Recordo-me hoje de tudo isso: um amor desses, invisível, cores fortes, animais alados com caudas de dragão e escamas. Corações desenhados a encarnado. Palavras como "adoro-te" escrito ao inverso, espelho infantil de quem aprende a registar as palavras. Quase sempre o sol enchia o topo da página, muito grande, raios enormes amarelos, do tamanho da dádiva. Muitas vezes eu aparecia; outras vezes com a namorada da altura. Não me recordo, até hoje, de nenhum que não falasse de amor. Um amor-dinossauro, um amor-meteoro, um amor com braços elásticos, cabelos em pé, e lábios contornados.
Recordo hoje tudo isto que me ofereceu, como se fosse um rei. Na altura a porta estava fechada e recebi todos estes desenhos por debaixo dela. Que nem um correio, um presente que só hoje chega ao seu destino. Crescer também é isto: perceber partes do passado como uma oferta desaproveitada. A minha irmã relembra-se certamente destes desenhos que me enviava por debaixo da porta, destas declarações de amor, da vontade de pertencer a um mundo maior. E eu lembro-me desta bondade garrida, inocente, desapegada, destrancada. Memória esta que, anos depois, me desencarcera, lamparina que me guia na escuridão.
Recordo hoje tudo isto que me ofereceu, como se fosse um rei. Na altura a porta estava fechada e recebi todos estes desenhos por debaixo dela. Que nem um correio, um presente que só hoje chega ao seu destino. Crescer também é isto: perceber partes do passado como uma oferta desaproveitada. A minha irmã relembra-se certamente destes desenhos que me enviava por debaixo da porta, destas declarações de amor, da vontade de pertencer a um mundo maior. E eu lembro-me desta bondade garrida, inocente, desapegada, destrancada. Memória esta que, anos depois, me desencarcera, lamparina que me guia na escuridão.
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