quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Aqui há apenas uma coisa morta

"Estou deitada na mesma cama em que morreu a minha mãe há muitos anos; no mesmo colchão; sob a mesma manta de lã negra com que nos tapávamos as duas para dormir. Nessa altura eu dormia ao seu lado, num espacinho que ela me arranjava debaixo dos seus braços. 
Creio ainda sentir o ritmo pausado da sua respiração: as palpitações e suspiros com que ela embalava o meu sono... Creio sentir a pena da sua morte...
Mas isto é falso.
Estou aqui, de boca para cima, pensando nesse tempo para esquecer a minha solidão. Porque não estou deitada só por um bocadinho. E nem estou na cama da minha mãe, mas dentro de um caixão negro como o que se usa para enterrar os mortos. Porque estou morta.
Sinto o lugar onde estou e penso...
Penso no tempo em que amadureciam os limões. No vento de Fevereiro que partia o caule dos fetos antes que o abandono os secasse: nos limões maduros que enchiam com o seu aroma o velho pátio.
O vento descia das montanhas nas manhãs de Fevereiro. E as nuvens ficavam lá em cima à espera que o tempo bom as fizesse descer ao vale: entretanto, deixavam vazio o céu azul, deixavam que a luz caísse no jogo do vento descrevendo círculos sobre a terra, revolvendo o pó e batendo nos ramos das laranjeiras.
E os pardais riam; debicavam as folhas que o ar fazia cair e riam; deixavam as suas penas entre as agulhas dos ramos e perseguiam as borboletas e riam. Era esse tempo. 
Em Fevereiro, quando as manhãs se enchiam de vento, de pardais e de luz azul. Lembro-me.
A minha mãe morreu nessa altura.
Eu devia ter gritado; as minhas mãos deveriam ter-se despedaçado, esmagando o seu desespero. Assim terias querido que fosse. Mas porventura não era alegre, essa manhã? Pela porta aberta, o vento entrava, quebrando os ramos da hera. Nas minhas pernas, a penugem começava a crescer entre as veias e as minhas mãos tremiam, mornas, ao tocar os meus seios. Os pardais brincavam. No campo, debulhavam-se as espigas. Lamentei que ela não voltasse a ver o vento a brincar nos jasmins; que fechasse os olhos à luz dos dias. Mas por que razão deveria chorar?
Lembras-te, Justina? Dispuseste as cadeiras ao longo do corredor para que quem viesse vê-la esperasse a sua vez. Ficaram vazias. E a minha mãe, só, no meio dos círios; a sua cara pálida e os seus dentes brancos quase imperceptíveis entre os lábios arroxeados, endurecidos pela morte lívida. As suas pestanas já quietas; quieto já o seu coração. Tu e eu, ali, rezando terços intermináveis sem que ela ouvisse nada, sem que tu e eu ouvíssemos nada, tudo perdido na sonoridade do vento sob a noite. Puseste o seu vestido negro, engomado no colarinho e nos punhos para que as suas mãos parecessem novas, cruzadas sobre o seu peito morto; o seu velho peito amoroso sobre o qual, a um tempo, dormi e que me deu de comer e palpitou para embalar os meus sonhos.
Ninguém veio vê-la. Foi melhor assim. A morte não se partilha como se de um bem se tratasse. Ninguém anda à procura de tristezas. 
Tocaram na aldraba. Tu saíste.
(...)
E as tuas cadeiras ficaram vazias até que fomos enterrá-la, com aqueles homens contratados, suando por causa de um peso alheio, alheios a qualquer pena. Fecharam a sepultura com areia molhada; baixaram lentamente o caixão, com a paciência que caracteriza o seu ofício, sob o ar que lhes refrescava o esforço. Os seus olhos frios, indiferentes. Disseram: «É tanto.» Tu pagaste-lhes, como quem compra uma coisa, desatando o teu lenço molhado de lágrimas, espremido e voltado a espremer e que guardava agora o dinheiro dos funerais...
E quando eles partiram, ajoelhaste-te no lugar onde a sua cara tinha ficado e beijaste a terra e poderias ter aberto um buraco, se eu não te tivesse dito: «Vamos, Justina, ela está noutro sítio, aqui há apenas uma coisa morta.»

Juan Rulfo - «Pedro Páramo» (Tradução Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues e Virgílio Tenreiro Viseu) 

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