Há coisas parvas que se fazem. E ler Primo Levi ao deitar, já escrevi isto aqui há uns semanas, é uma dessas coisas. Naquela horinha que me serve para erigir uma suave ponte para o negro do sono, essa em que procuro ler coisas que outros compromissos, infelizmente, não mo permitem, é precisamente essa que venho ocupando com o complicado sistema de trocas de rações de pão e sopa nos campos de concentração, as pessoas que perderam a história num fino trapo de sujidade e ossos, a doença ligeira como benção, o adormecer na fome ou os mais mirabolantes esquemas de sobrevivência.
Num dos capítulos de Se isto é um homem, Levi escreve sobre essa divisão entre os homens que se salvam e os que sucumbem. Estes últimos são os que apenas cumprem as regras, os primeiros são aqueles que mais facilmente silenciam hábitos e instintos sociais. Os que sobrevivem são os que rapidamente percebem que estão sós e o que Outro é o "inimigo". Por sobre esse outro - refugiado, estrangeiro, incumpridor de normas (ou demasiado cumpridor, depende do contexto) - o cinema sempre se refastelou. Parece apenas uma diferença de grau: entre o índio do western, o mexicano amigo mas estranho, ou as viagens à Europa que o terror elege com frequência como uma descida ao inferno e ao obscuro.
Jeremy Saulnier é um realizador que em 2013 fez um filme chamado Blue Ruin sobre um homem comum e uma vingança. O tema do terror originado no desespero das circunstâncias extremas é um herdeiro de Levi. Do ano passado é o mais recente de Saulnier, Green Room. Com mais dinheiro e com Patrick Stewart e Imogen Poots, o realizador continua aqui a explorar essa ideia do contexto poder produzir a monstruosidade, mas desta vez descansando dos toques xenófobos que o americano médio papa tão bem. Os visados são um grupo de neo nazis que procura acabar com as testemunhas de um assassinato. Testemunhas essas que são uma banda de jovens que ali tinham vindo dar um concerto.
Obviamente que estamos aqui a falar de uma caricatura ingénua, interessando sobretudo os gestos formais de Saulnier. Green Room passa a ideia de que a sobrevivência se liga a uma rápida compreensão da passagem do paint ball à guerra, das balas de tinta às balas reais. Essa passagem deixa antever também a clássica imagem da organização dos oprimidos para resistir aos opressores. Sobre essa, Levi não põe em causa que possa existir até um dado limite. Contudo, quando a extensão do green room são barracões e barracões incontáveis como ante-câmara do extermínio, para sobreviver interessa sobretudo outra coisa: a organização, a piedade e o roubo.
Nesse esquema de darwinismo social levada ao horror, esses três ficaram aí conosco: a organização, a piedade e o roubo. Pequenos, dissimulados, os players como os que se salvam, vulgo, homens de "visão".
Não sei onde vou com isto. Sei que esta dose diária de insónia que administro ao meu sono me deixa consciente desta cruel balança. Como sobreviver? Em que prato da balança meter o pé? Entretanto, chegado ao final do livro de Levi, desconfio bem que prolongarei o sofrimento. O meu e, provavelmente, o vosso.
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