quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Rostos quaisquer


Há dias com a imagem na cabeça de um boneco do tamanho de um ser humano, mas sem rosto. Esta imagem pertence à melhor ideia do filme Follow me Quietly (1949) de Richard Fleischer. Tenho andado, também por estes dias, a ler alguns textos de Alain Badiou sobre o cinema. Num deles ele escreve que quando falamos ou escrevemos sobre um filme estamos na realidade a partilhar imagens de imagens. Essa inscrição da imagem na imagem, ou o “cérebro como ecrã”, como dizia Deleuze, deixa-me a pensar nesta oposição: entre o rosto da massa e o rosto do indivíduo. Um filme como Anomalisa de Charlie Kaufman, brinca com o primeiro, um mundo distópico onde a reunião de todas as imagens pelo cinema daria a ver o mesmo rosto em toda a gente (mas ainda não chegamos ao ponto desse mesmo rosto ser a mesma imagem interna do espectador, mas isso é outra história). No filme de Fleischer, entre o papel que o estrangulamento tem no seu cinema e a questão do doppelgänger filtrado pela psicanálise da moda, temos esse espaço genérico de inscrição: o rosto sem rosto. O rosto do indivíduo que pode ser (que é) qualquer um.
O filme narra a história de um detective que vive obcecado por capturar um assassino cujo modus operandi é o de estrangular pessoas em noites de chuva. Nessa obsessão fica claro que o detective já quase tudo conhece da sua “presa” excepto o seu rosto. Por isso resolve mandar construir um boneco-duplo do assassino com o objectivo de ajudar as pessoas a reconhecer o “juiz” (essa é a alcunha do serial killer). Fleischer brinca muito com a sugestão que o assassino é praticamente igual (em compleição e hábitos) ao polícia, mas não vai até à sua efectivação (entretanto, tornada um cliché) de que afinal um era mesmo o outro. O interessante de Follow me Quietly, pagando o preço de uma certa decepção narrativa, é que precisamente ele apenas fica na fronteira do duplo, na tensão que leva a que um rosto possa ser sempre um rosto qualquer.
Badiou também fala nessa potencialidade dos filmes de Chaplin agradarem a chineses, americanos ou a esquimós. Segundo ele é a capacidade do cinema ser uma arte de massas, ao produzir uma noção de “humanidade genérica”. E é aqui mesmo que está a distinção entre esse rosto da massa [as faces todas iguais de uma sociedade formatada de Anomalisa, que nos remetem a uma “cristiano ronaldização” ou “justinbiberização” (quase tive uma luxação nos dedos ao teclar esta "palavra")] e os rostos genéricos ou em potência de Fleischer. Nestes todos cabemos, potencialmente, reclamando uma individualidade. Por isso não me largou esta imagem, à espera de eu me meter nela. O que vale é que estamos no Verão e não há chuva…

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