quarta-feira, 31 de agosto de 2016

e o socorro chegou

"Não sei quando morri. Sempre me pareceu que morri velho, por volta dos noventa anos, e que anos, e que o meu corpo o comprovava, da cabeça aos pés. No entanto, neste final de tarde, sozinho na minha cama gelada, sinto que vou ser mais velho do que o dia, do que a noite em que o céu caiu com todas as suas luzes sobre mim, o mesmo céu que tantas vezes olhei, desde que vagueava pela terra longínqua. Porque hoje tenho medo demais para me ouvir apodrecer, para esperar pelos grandes e violentos baques do coração, pelas contorções do ceco sem saída e para esperar que se cumpram na minha cabeça os longos assassínios, o assalto aos pilares inquebrantáveis, o amor com os cadáveres. Vou portanto contar a mim mesmo uma história, vou portanto tentar contar mais uma vez a mim mesmo uma história, vou tentar acalmar-me, e é nessa história que sinto que serei velho, muito velho, ainda mais velho do que no dia em que caí, clamando por socorro, e o socorro chegou. Ou talvez nessa história eu tenha regressado à terra, depois de morrer. Não, não é o meu género, regressar à terra, depois de morrer."

Samuel Beckett- "O Calmante" (1946)

terça-feira, 30 de agosto de 2016

The Conjuring 2: fantasmas do passado



Finalmente vi The Conjuring 2 e, desculpem, mas não consigo partilhar de algum entusiasmo desmedido que vou lendo ora aqui ora ali. O último Wan não revela, antes confirma, um autor muito imaginativo, que sobretudo se diverte tecnicamente na construção de set pieces. Revelador é antes que a inspiração narrativa se vá buscar a Amityville ou a um caso verídico do final dos anos 70, tentando transmitir uma certa aura de veridicidade ao todo. Então mas não era suposto também o espectador dar o seu leap of faith? Porquê então a oposição entre o espírito da dentadura (comédia) e a demónio assassino (terror), com o twist revelado entre a imagem vídeo que mente e o som que revela?

O mais interessante dos bons filmes sobre fantasmas é que eles mimam a mecânica no próprio cinema: mostrar o imaterial, o fantasmático, através do visível. E The Conjuring 2 cumpre isso, sendo sobretudo um bom filme de objectos. Os utensílios de cozinha que se dobram, o comando da televisão que muda de lugar, o balouço que balouça, os cruxifixos que rodam ou, finalmente, o carrinho de bombeiros brinquedo que apita no meio da noite. Essa cena em que a criança envia o carrinho, depois de o desligar e mandar para o interior da sua tenda de brincar (e o recebe depois ligado, empurrado por uma mão espectral) mostra bem o melhor e o pior de The Conjuring 2

O melhor é que nessa cena a câmara de Wan constrói sempre aquilo que chamo um “suspense no enquadramento” (literalizado, momentos depois, com a “suspense no quadro”, na cena com a pintura do demónio), recusando dar-nos até ao último momento a parte do enquadramento pelo qual desesperamos. O olho sádico de Wan ora olha demasiado para baixo (será que vem do tecto?) ou demasiado para o lado, recusando-nos a panorâmica ou o travelling.

Já o pior de The Conjuring 2 é achar que o terror só deve ser um conjunto de brincadeiras: toma lá o carrinho, dá cá o carrinho; dá cá o comando, toma lá o comando. E que nessas brincadeiras, as soluções visuais de suspense encontradas, por serem imaginativas, são o suficiente para o género. A técnica revelada num parque de diversões que faz com que The Conjuring 2 pareça, a espaços, um laboratório, entre o académico e o onanista, de como produzir o medo. O medo em formato abstracto, como será isso possível?

Creio que este sub-género de terror, tão importante, como disse, por trabalhar nessa fronteira entre o sensível e o inteligível, necessita de verdadeiras inovações. Se vivemos hoje entre a religiosidade espectral do capitalismo e a espectralidade religiosa do digital, porque raio todas as histórias de espíritos e fantasmetas nos pareçam tão anacrónicas e pesadas? Mesma a câmara de Wan, em toda a sua elegância e inteligência, por muitos rodopios que dê está sempre um tanto instalada no peso do demonismo e do susto do passado…

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Todo o começo em si esconde um sereno acabar.
E amanheceres há em que feroz o sol desaba,
E as palavras silábicas pedras amontoam o silêncio.
Nunca mais te vou dizer “para sempre”
Contudo este jogo da ausência só amanhã começa.
Só depois desse depois é que sim,
nunca mais te quero ver, nem a teu interminável beijo.
Cada um deve seguir o seu rumo mal acabe toda a vida,
E mesmo depois de toda a morte,
nem da tua voz de firme fruto vou querer saber.
Os teus olhos despertaram um relógio de ponteiros infinitos
E, animado, fui até às margens do último suspirar a ver do nosso caminho.
Lá não germinava nem começo, nem acabar, nem minhocas sequer.
E por isso cabisbaixo me deixo andando,

pois sei que me vais deixar logo após a eternidade.

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Rostos quaisquer


Há dias com a imagem na cabeça de um boneco do tamanho de um ser humano, mas sem rosto. Esta imagem pertence à melhor ideia do filme Follow me Quietly (1949) de Richard Fleischer. Tenho andado, também por estes dias, a ler alguns textos de Alain Badiou sobre o cinema. Num deles ele escreve que quando falamos ou escrevemos sobre um filme estamos na realidade a partilhar imagens de imagens. Essa inscrição da imagem na imagem, ou o “cérebro como ecrã”, como dizia Deleuze, deixa-me a pensar nesta oposição: entre o rosto da massa e o rosto do indivíduo. Um filme como Anomalisa de Charlie Kaufman, brinca com o primeiro, um mundo distópico onde a reunião de todas as imagens pelo cinema daria a ver o mesmo rosto em toda a gente (mas ainda não chegamos ao ponto desse mesmo rosto ser a mesma imagem interna do espectador, mas isso é outra história). No filme de Fleischer, entre o papel que o estrangulamento tem no seu cinema e a questão do doppelgänger filtrado pela psicanálise da moda, temos esse espaço genérico de inscrição: o rosto sem rosto. O rosto do indivíduo que pode ser (que é) qualquer um.
O filme narra a história de um detective que vive obcecado por capturar um assassino cujo modus operandi é o de estrangular pessoas em noites de chuva. Nessa obsessão fica claro que o detective já quase tudo conhece da sua “presa” excepto o seu rosto. Por isso resolve mandar construir um boneco-duplo do assassino com o objectivo de ajudar as pessoas a reconhecer o “juiz” (essa é a alcunha do serial killer). Fleischer brinca muito com a sugestão que o assassino é praticamente igual (em compleição e hábitos) ao polícia, mas não vai até à sua efectivação (entretanto, tornada um cliché) de que afinal um era mesmo o outro. O interessante de Follow me Quietly, pagando o preço de uma certa decepção narrativa, é que precisamente ele apenas fica na fronteira do duplo, na tensão que leva a que um rosto possa ser sempre um rosto qualquer.
Badiou também fala nessa potencialidade dos filmes de Chaplin agradarem a chineses, americanos ou a esquimós. Segundo ele é a capacidade do cinema ser uma arte de massas, ao produzir uma noção de “humanidade genérica”. E é aqui mesmo que está a distinção entre esse rosto da massa [as faces todas iguais de uma sociedade formatada de Anomalisa, que nos remetem a uma “cristiano ronaldização” ou “justinbiberização” (quase tive uma luxação nos dedos ao teclar esta "palavra")] e os rostos genéricos ou em potência de Fleischer. Nestes todos cabemos, potencialmente, reclamando uma individualidade. Por isso não me largou esta imagem, à espera de eu me meter nela. O que vale é que estamos no Verão e não há chuva…

sábado, 20 de agosto de 2016

"Poi piovve dentro a l'alta fantasia." A fantasia é um lugar onde chove lá dentro. 

Dante-Calvino-Visibilidade

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

O que pode o corpo morto-vivo?

Será o filme “A noite dos mortos vivos” de 68 afinal uma metáfora para o ressurgimento aterrador do homem, e seu putrefacto corpo, depois de um enterro com pompa, levado a cabo pelos límpidos cangalheiros da digitalização e automatização técnicas? Espinoza, Deleuze: o que pode o corpo (ou o pós-corpo), morto-vivo?



quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Do ético ao estético




 Fotogramas de Walden- Jonas Mekas

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Love & Friendship


Curioso pormenor em Love & Friendship, último filme de Whit Stillman, adaptado de uma obra "menor" de Jane Austen. No centro da encenação vitoriana está a estratega dos amores e da gestão do património (sentimental e o outro), a viúva Lady Susan. Sem homem e com uma filha cujo futuro há também que assegurar, todos os espécimes masculinos de que se faz rodear são "ses" possíveis para um desfecho vitorioso. Um deles é jovem e interessante mas o pai ainda está vivo e portanto sem acesso à fortuna. O segundo pretendente possui um calhau no lugar do cérebro, mas tem dinheiro. O terceiro é o único que não vemos excepto num quadro do início (que o apresenta como homem extremamente atraente) e na cena final, em que não profere palavra. Porque é invisível este homem, este trunfo na manga do jogo da sedução e predação da época vitoriana? Talvez por ser casado e não se poder revelar a sua face (embora a sua mulher, enganada e desesperada, seja bem visível, contra a voracidade de Lady Susan que lhe quer roubar o marido). Talvez esse motivo leve Stillman a esconder-nos o derradeiro homem. Ou, e esta é a minha versão, para uma mulher de negócios não convém misturar "business with pleasure". Sendo este o único homem que a satisfaz amorosamente, deve ser deixado no fora-de-campo, lugar de todas as alucinações e fraquezas da carne. E quando finalmente o vemos, o seu silêncio revela a postura possível do homem-objecto: sem falar, sem se mostrar obstáculo à condução dos affaires da vida pública.

Sem contar com esta truque do visível, Stillman limita-se a mostrar a mecânica da voracidade e da ironia no feminino. Finda a apresentação do aparelho, retomemos a nossa vida de fantoches.

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Dos vencidos pela ira

Fitos no limo, dizem:"Tristes como
fomos no ar doce que do sol se alegra,
levando dentro acedioso fumo, 
tristes ficamos nesta lama negra."
Este hino gargarejam na garganta, 
sem palavras inteiras ou com regra.

Inferno, Canto VII,
A Divina Comédia, Dante 

terça-feira, 9 de agosto de 2016



Engraçado que toda a gente foi a correr ver num dos primeiros filmes da história, o "La Sortie de l'usine Lumière à Lyon" dos irmãos Lumière um símbolo da subjugação das massas pelo cinema após terminado o período de trabalho. Ou um sinal da popularidade da sétima arte e seu afastamento do verdadeiro conhecimento. O que é certo é que o trabalho parece ser uma realidade em extinção e o cinema (fragmentado ou expandido) parece estar para ficar. O que nos leva à questão: cinema após o trabalho ou o trabalho após o cinema?

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

sopa de abraços


Talvez John Wayne imaginasse que depois de todos os duelos, aventuras e caminhadas da sua mui fordiana vida, houvesse um tempo para um sereno regresso a casa e às origens irlandesas, onde pudesse usufruir pacatamente de todo o esplendor do amor e da família. É que isso, pelo menos até 1952, ano deste The Quiet Man (O Homem Tranquilo, 1952) só ocorreu, hipoteticamente, após as letrinhas “the end”, num muito distante rancho que tínhamos de imaginar. Não podia ele estar mais enganado. Mas vim falar de abraços e ele aqui está: um dos mais comoventes da história do cinema. Maureen O’Hara nos braços encharcados de Wayne, ou devo dizer, a ruiva Mary Kate a ser protegida do vento, da chuva e dos maus augúrios do cemitério, onde se passa a cena, pelo ex-pugilista Sean Thorton. Se a cena é romântica não se pode dizer que o cineasta o seja particularmente, pelo menos com ele nunca foi um amor e uma cabana, ou neste caso, amor e uma cama partida. Longe das primeiras visões bucólicas – em que Sean vê Mary Kate como uma angélica “guardadora de rebanhos” – e da benção com água benta, a relação dos dois começa com ventanias de bater portas, janelas partidas e “assombrações” a entrar pela casa adentro. Por isso, não vale a pena enganar ninguém. Este abraço não chega a ser o clímax do romantismo idílico mas sim o manter junto, com força, aquilo que a natureza revolta quer separar. Ele, que já tanto lutou, vai ensinar-lhe que o dinheiro é para mandar para a fornalha e que mais vale plantar rosas. Ela, que já tanto esperou, vai fazer-lhe ver que nem só de rosas vive o homem e que nem o mais tranquilo dos homens deve abdicar de lutar pelo amor. E desses ensinamentos, ou entre um murro e um abraço, se faz o mais romântico dos filmes.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Sucumbir ou salvar-se

Há coisas parvas que se fazem. E ler Primo Levi ao deitar, já escrevi isto aqui há uns semanas, é uma dessas coisas. Naquela horinha que me serve para erigir uma suave ponte para o negro do sono, essa em que procuro ler coisas que outros compromissos, infelizmente, não mo permitem, é precisamente essa que venho ocupando com o complicado sistema de trocas de rações de pão e sopa nos campos de concentração, as pessoas que perderam a história num fino trapo de sujidade e ossos, a doença ligeira como benção, o adormecer na fome ou os mais mirabolantes esquemas de sobrevivência.

Num dos capítulos de Se isto é um homem, Levi escreve sobre essa divisão entre os homens que se salvam e os que sucumbem. Estes últimos são os que apenas cumprem as regras, os primeiros são aqueles que mais facilmente silenciam hábitos e instintos sociais. Os que sobrevivem são os que rapidamente percebem que estão sós e o que Outro é o "inimigo". Por sobre esse outro - refugiado, estrangeiro, incumpridor de normas (ou demasiado cumpridor, depende do contexto) - o cinema sempre se refastelou. Parece apenas uma diferença de grau: entre o índio do western, o mexicano amigo mas estranho, ou as viagens à Europa que o terror elege com frequência como uma descida ao inferno e ao obscuro.

Jeremy Saulnier é um realizador que em 2013 fez um filme chamado Blue Ruin sobre um homem comum e uma vingança. O tema do terror originado no desespero das circunstâncias extremas é um herdeiro de Levi. Do ano passado é o mais recente de Saulnier, Green Room. Com mais dinheiro e com Patrick Stewart e Imogen Poots, o realizador continua aqui a explorar essa ideia do contexto poder produzir a monstruosidade, mas desta vez descansando dos toques xenófobos que o americano médio papa tão bem. Os visados são um grupo de neo nazis que procura acabar com as testemunhas de um assassinato. Testemunhas essas que são uma banda de jovens que ali tinham vindo dar um concerto.

Obviamente que estamos aqui a falar de uma caricatura ingénua, interessando sobretudo os gestos formais de Saulnier. Green Room passa a ideia de que a sobrevivência se liga a uma rápida compreensão da passagem do paint ball à guerra, das balas de tinta às balas reais. Essa passagem deixa antever também a clássica imagem da organização dos oprimidos para resistir aos opressores. Sobre essa, Levi não põe em causa que possa existir até um dado limite. Contudo, quando a extensão do green room são barracões e barracões incontáveis como ante-câmara do extermínio, para sobreviver interessa sobretudo outra coisa: a organização, a piedade e o roubo.

Nesse esquema de darwinismo social levada ao horror, esses três ficaram aí conosco: a organização, a piedade e o roubo. Pequenos, dissimulados, os players como os que se salvam, vulgo, homens de "visão".

Não sei onde vou com isto. Sei que esta dose diária de insónia que administro ao meu sono me deixa consciente desta cruel balança. Como sobreviver? Em que prato da balança meter o pé? Entretanto, chegado ao final do livro de Levi, desconfio bem que prolongarei o sofrimento. O meu e, provavelmente, o vosso.

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

«Se admitirmos a desaparição do homem no fim da História, se afirmarmos que o 'homem continua vivo enquanto animal', precisando que 'aquilo que desaparece é o homem propriamente dito', não poderemos dizer que 'tudo o mais pode manter-se indefinidamente: a arte, o amor, a brincadeira, etc.' Se o homem volta a ser animal, as suas artes, amores e brincadeiras devem igualmente voltar a ser puramente 'naturais'. Seria assim necessário admitir que, a seguir ao fim da História, os homens construiriam os seus edifícios e obras de arte como as aves constroem os ninhos e as aranhas tecem as teias, executariam concertos musicais à semelhança de rãs e das cigarras, brincariam como brincam os animais jovens e praticariam o amor como os animais adultos.», Alexandre Kojève