terça-feira, 9 de junho de 2015

Preguiça com pedigree


Lia um ensaio de Jorge Luís Borges sobre que Flaubert existiria por detrás de Bouvard e Pécouchet e sentia-me estupidamente cómodo e digno. Como se pudesse vislumbrar, finalmente, uma genealogia qualquer entre os ataques de preguiça deste vosso fulano e a espera de Godot, a insubmissão de Bartleby e, agora, a renovadora incompreensão dos referidos copistas. Todas estas invisíveis rebeldias, niilismos de constrói secretária / "destrói" secretária são por certo, sabemos, os atributos do homem moderno, pós-cristão, afundado na opressão do próprio presente imediato. Não me interessa, afinal de contas, colocar a minha preguiça moderna em bicos dos pés. Seria antes e sobretudo útil perceber que genealogia é essa que, partindo destes três momentos, desemboca num determinado funcionalismo individual sem "rather not", num brilho fosco dos olhares da mais comum fila de desemprego sem ideal de espera por quem quer que seja (quando mais Godot), num desencanto pelo saber que não é certamente apontado a uma falência dos sistemas de conhecimento (como acontecia com a intenção do autor de "Madame Bovary" ao escrever o seu último e inacabado livro), antes por uma falta de tesão pelas coisas.
 
Seja como for, resta-nos a espera, a já contemporânea espera, sem erecção, sem reacção, junto destas secretárias a escrever não sobre coisas que acabem, nem comecem, mas sobre coisas que continuem e se renovem todos dos dias de forma ligeiramente diferente. Até porque, como escreveu o próprio Flaubert, "O frenesi de chegar a uma conclusão é a mais funesta e estéril das manias." E, como concluir é morrer, fico-me assim, dolente, a preguiçar...

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