sábado, 30 de maio de 2015

Sou mãe de um cão

Não sou a melhor pessoa para escrever isto mas porque não há ninguém aqui à mão, cá vai. Tendo eu passado os últimos três meses a tratar de um cão bebé - que irreflectidamente adquiri ao pensar que seria um estágio para aqueles outros de marca humana -, e tendo eu lentamente metamorfoseado-me em mãe solteira de 35 anos que chama o seu cão de "o meu menino" e o leva à rua ao colo mais vezes do que na realidade necessita, tendo eu feito tudo isto deveria ser legalmente impedido, durante um tempo indeterminado, de escrever ou opinar criticamente sobre filmes onde pontuem afáveis canídeos que interfiram com as minhas hormonas maternais de dono.

O cão é o do laço

Devia ser impedido sim... mas como não fui, digo-vos que, além de ter achado o Sivas o melhor filme deste último IndieLisboa, agora a distribuição portuguesa sabendo do meu ponto fraco me estreia um filme húngaro onde o protagonista é um cão ruivo. Além de ser ruivo possui muitas outras qualidades entre as quais suportar o mesmo treino do Rocky, ser perseguido insistentemente por mafiosos que acontece labutarem num canil ou ter de levar com um "sogro" com a sensibilidade de uma espingarda, que o abandona numa espécie de segunda circular lá deles. No final, o realizador Kornél Mundruczó quer compor o triunfo dos porcos em versão cão, e o nosso herói liberta centenas de cães do canil apenas apaziguados ante o talento da dona do ruivo, de súbito tornada trompetista de Hamlin. A coisa excede-se, a metáfora política evidencia-se e o White God do título, espécie de contraponto do White Dog do Fuller, é vítima da uma certa visão romântica e antropomórfica desses seres que adoram cheirar esquinas mal lavadas e lamber orelhas pela manhã.

Entre esta versão um tanto salvífica e a da indagação filosófica do olhar animal (com tradições filosóficas conhecidas Singer-Derrida-Agamben, por exemplo) há uma outra via um tanto indiferente à especificidade e poderes dos animais. Em Timbuktu, de Abderrahmane Sissako (em estreia esta semana), há também essa metáfora dos animais a serem perseguidos (há um antílope que foge em desespero de um grupo de jihadistas logo ao abrir) tal como os humanos nessa cidade que dá nome ao filme. Mas além dessa ideia há galos como símbolos de poder, os burros interrompem jogos de futebol e as vacas, com nome de tecnologia de navegação automóvel, podem condenar um homem à morte. Esta circulação indiferente entre o homem e o animal, que obviamente não esquece uma determinada hierarquia sobretudo motivada por questões de trabalho e subsistência, é talvez a melhor homenagem que o racional pode fazer ao dito irracional. Papel invisível e omnipresente o dos animais nesta história sobre fundamentalismo religioso, e que, caso tivesse um cão entre estes referidos, seria mesmo uma obra-prima. Não o tendo é só um bonito filme, mais eficaz do que a "beleza" da odisseia do nosso pobre amigo ruivo-húngaro de 4 patas.

Mas eu não sou a melhor pessoa para escrever isto. Porque neste momento eu defendo que todos os filmes deviam ter (pelo menos) uma personagem cão. Eu não sou a melhor pessoa para escrever isto até porque neste momento eu já sei em que locais de Lisboa há snacks para cão mais saborosos e mais em conta.

4 comentários:

  1. Como te percebo...Ainda não arrisquei ver o White God, tenho receio que possa ser tempo perdido, como o do Fuller certamente não espero, seria um milagre nos dias que correm um filme com animais e profundo.

    Bom texto. É um filme que guardo boas recordações.

    Já agora, se tiveres oportunidade visita o meu espaço que tem uma nova imagem:
    http://cinemaschallenge.blogspot.pt/

    : )

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  2. Tãoãoão lindo texto, e eu até sou toda miauauaus :)

    ___
    faltam-me os filmes, mas a culpa do "interior" , da fata de cinema e de horror à Cultura não é minhauão.

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  3. Obrigado pelas simpáticas palavras :) Andreia vou espreitar a tua nova casa. beijinhos :)

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