segunda-feira, 9 de julho de 2012

Na mente de Wanda

Se há filme que está irremediavelmente colado àquilo que representa na História do cinema (e mesmo em outras histoires..), ele é Wanda de Barbara Loden. Mas antes de mais há um lado mítico em tudo isto que ajuda a cimentar os alicerces do fenómeno. A arte “imitou” a vida e Loden, mulher de Elia Kazan, nunca obteve o reconhecimento que desejava (desejava?). Morreu nova e pelo caminho toda a gente procurava unir o gérmen da irreverência, central à sua única realização, ao papel de irmã de Warren Beaty em Splendor in the Grass ou a outros desaires como a sua substituição, por imposição da produção, por Faye Dunaway em The Arrangement.  Para lá do traçar obsessivo de secantes entre a biografia e o que dela ficou em filme, importa pensar nessa dimensão representativa do ataque a um “american way of life” que, por maioria de razão, ainda enjaulava com maior veemência a condição feminina. Se nos lembrarmos de outros retratos femininos de “corte”, (pensamos numa improbabilidade, a personagem de Barbara Satnwick em All I Desire, de Sirk (1953) ou mesmo noutro exemplo mais canónico, Marlene Dietrich em Rancho Notorious) chegamos à conclusão que o não se ser expectável, mãe de família ou outro, acarretava sempre uma outra escolha igualmente forte, ainda que moralmente cinzenta.

Será então esta “peregrinação sem certeza moral” que leva Wanda a percorrer entulho, quartos de hotel, bares, salas de tribunal com rolinhos no cabelo, um grito de libertação feminina? Por certo que sim e por isso gente como Margarite Duras ou Isabelle Huppert quiseram distribuir o filme. Mas além desse “grito”, a questão que ainda hoje subsiste, atual, impenetrável como uma rocha, é: o que vai na cabeça de Wanda? Haverá nela um desistir ante o mundo?, quer dizer, uma desolação perante aquilo que não consegue e portanto uma quebra de expectativas? Essa parece ser, mais uma vez, uma leitura biográfica do filme. Mas e então eis que Mr. Dennis, o “Clyde” de Wanda, nesse jeito ainda mais cassavetiano que o resto do filme, lhe diz: “if you want nothing you’ll have nothing”. Embora Barbara precise de afecto que encontra em jeito mais ou menos random até chegar Dennis, e parece em certos momentos transparecer estar em baixo pela sua deriva emocional, essa falta de ambição nunca merece ser vista como pecado, antes um espaço de liberdade digna. Talvez por isso Wanda represente essa condição libertadora, incomunicável que transcende o género feminino e masculino.

Entre nós isso é bem visível por exemplo na forma como Jorge Silva Melo explica no seu texto sobre o filme que este foi para ele, à época, uma libertação do canon David Lean e outros que tais quando frequentava a London Film School. E que se traduz igualmente, na forma elegante de escrever sobre o filme, e cito o texto de Silva Melo: “(...) Já perceberam: não sou capaz de falar deste filme. Aliás, nunca ninguém foi”. A mesma coisa se sente na reflexão de Manuel Mozos aquando da sua primeira passagem pela sua mão na Gulbenkian. Lançando mão das “mais elementares tarefas da descrição” como as apelidava Foucault, Mozos enumera as principais indústrias da Pensilvânia (a metalurgia, os têxteis couro, o tabaco e químicas) para se “aproximar” do espaço de Wanda. Estes exemplos, mostram como o filme de Loden, mais do que dinamitar o sistema e repensar o estatuto do looser na sociedade norte-americana (tudo coisas que o cinema moderno, o da deambulação e da nova ontologia foi fazendo), criou um espaço para nos fazer pensar a incomunicação, o contorno à ditadura do destino, como espaços de possibilidade infinitamente ricos. Nunca saberemos o que foi na cabeça de Barbara, como o que foi na de Wanda. O que nos apazigua contudo é pensar que ler a sequência final do filme - na qual a protagonista prossegue no bar, fumando, bebendo, rodeada de estranhos - é algo que não podia estar mais longe do falhanço ou da redenção. O seu olhar, como as nossas palavras sobre ela, nunca poderão deixar de ser “baixos”, de estar aquém de qualquer noção de sucesso quer na cinema quer na vida.  

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