domingo, 15 de julho de 2012

Inventário Moonrise


É preguiçoso escrever sobre um filme que não apreciamos usando apenas adjetivos como “mau”, “fraco”, “péssimo”, etc. Se assim é, quando se trata de filmes de que gostámos muito, essa adjetivação indolente, a manchar a prosa, roça a ofensa. Parece paradoxal chegar a um estado em que a palavra “fabuloso”, para falar do último filme de Wes Anderson por exemplo, se torna estranhamente insultuosa. Não quero explicar-me muito sobre isso que o meu caminho é outro e é long and winding, mas só umas breves palavras. O adjetivo costuma abrir um espaço de indeterminação precisamente porque o seu objectivo é... determinar. E isto porque, ao utilizar-se um número reduzido de adjetivos, as qualificações das coisas empobrecem e tendem para a uniformização. Por isso, em cada adjetivação, assim sem mais, parece que algo fica por dizer. E ainda mais importante do que isso: a pessoa por detrás do texto (isto no caso da crítica é muito relevante) faz puf e desaparece.

 Desta forma parece-me que a coisa mais singela a fazer com um filme como Moonrise Kingdom é um inventário de coisas que merecem ser ditas/refletidas/enumeradas. Correndo o risco do “enjoo” do leitor, trata-se no fundo da homenagem menos proibitiva que se pode fazer àquilo ou àqueles de quem gostamos.

 
1- Um, dois, três, ao lado, atrás e à frente. Há cineastas que trabalham a hesitação, a incerteza, a suavidade, como marcas disso que chamamos, (chamamos?) o humano. Expresso com clareza nos movimentos de câmara isto pode ser um compromisso qualquer. De repente lembro-me da estratégia deontológica (Rouch), ou da  imperceptilidade contra a dureza de um universo (há muitos, mas Ford e Anthony Mann parecem-me bons exemplos) ou ainda a expressão clara de uma sensibilidade autoral (Ophuls é óbvio mas também são tantos...). Ao invés, o que os movimentos de câmara de Wes Anderson nos mostram, assertivos, a segmentar os espaços, nessas linhas implacáveis horizontais, verticais, atrás ou à frente, é uma espécie de autismo criativo (se é que isto já não é uma redundância). É a primeira das expulsões de Moonrise Kingdom. Não há espaço de incerteza, há um olhar que tudo varre, de uma intencionalidade minuciosa. A casa dos Bishop, os acampamentos de escuteiros, sobretudo estes, são “modelos” (neste sentido, de modelagem) onde Anderson quer traçar pontos de vista seguros da sua visão. E nesse aspecto, a escrita de Anderson não podia ser mais equilibrada entre o facto (aquilo que aparece no plano) e o adjetivo (a forma como aparece no plano).



2- A casa farol da família Bishop. Não são propriamente novas estas construções de tom vagamente bizarro, cores brilhantes, aparentadas de lego adulto. O filme abre precisamente com uma exposição de 360º de alguns dos seus quartos e membros da família, passado essa circularidade depois a uma lateralidade que nos faz lembrar a forma como Tati filmava as janelas abertas dos edifícios citadinos em Play Time. Sendo ou não estratégia, o certo é que apesar de existirem muitos recantos, de aspecto fabular (as portas de ombreiras redondas, o soalho de um castanho brilhante; parece que lá vivem duendes) eles são sempre filmados isoladamente. Não há comunicação entre eles na forma com Anderson trabalha as cenas, isto apesar de serem muitos os membros da família (especialmente os rapazes). De grande importância é a fachada da casa, uma torre vermelha no meio do verde da ilha da Nova Inglaterra. Se de fora para dentro há uma relação militarizada, com essa torre a simbolizar um quartel (local depois mimado também no acampamento escuteiro de Harvey Keitel), de dentro para fora, o olhar binocular de Suzy dá à casa uma dimensão de farol que observa e planeia.


3- What kind of bird are you? A pergunta que Sam faz a Susy, e que tem o condão de servir quase como um “queres namorar comigo”, é feita num plano absolutamente central. Dedo apontado a ela (a nós). De entre os possíveis pássaros (as outras raparigas), Sam tem de repetir a pergunta, como que a mostrar-nos, “não não és tu, nem tu, é ela que eu quero”. Essa simetria quer no plano, quer na vontade, acho que é uma boa pista para entrar nos seus valores de composição e mise-en-scène. Não existe nenhum momento que falte a esse desejo de simetria, harmonia, centralidade. Tudo é agradável ao olhar, sendo esse absoluto imperativo da linha, da cor, do movimento, aquilo que serve para construir uma reflexão sobre a autoridade (dos pais sobre os filhos, dos adultos sobre as crianças, das organizações sobre o indivíduo). Por outras palavras e simplificando muito é preciso acentuar o “direito” para ver a falta do “torto”. Além dessa certeza formal (às vezes parece a minúcia de Kubrick a funcionar numa lógica de arquitetura limpa), há uma visão do plano ela própria arquitetural. Excepto quando faz parte do gag do plano - revelar algo que está fora de campo - dir-se-ia que este não existe. Quer dizer, tudo é feito para pertencer ao plano, em todas os seus inúmeros espaços de leitura. Lembramo-nos do plano, perto do final, em que à direita Sam e Susy conferenciam sobre se devem mesmo casar e à esquerda um rapaz salta no trampolim. Esta organização que privilegia sempre a inclusão parece ter um lado “sacrificial”, isto porque o digital permitiria uma abundância muito menos esforçada.



4- Casinhas, árvores e tendas às cores. As cores fortes de Wes Anderson sempre carregaram com essa ironia toda. Talvez a intencionalidade da coisa se tivesse esbatido um pouco com  Fantastic Mr. Fox, naturalmente por se tratar de uma animação. Aqui, a cor surge na interseção dessa ironia (a cor como entrada numa dimensão de comédia e estranheza pop) e uma dimensão bastante clássica de composição. Como Minelli ou tantos outros a cor é sobretudo expressiva e adiciona esquemas de leitura nos seus planos, ajudando a produzir rimas visuais. E como brinca Anderson com os beges, os amarelos e os verdes na relação dos escuteiros e sua “parafernália” com a natureza. Nunca se trata contudo da cor como forma de “explodir” a visualidade das suas imagens. O garrido destas é sobretudo forma de compor uma espécie de reino, kingdom, uma lógica própria que o seu olhar impõe à realidade.




5- Com a boca cheia de palavras. Simon é órfão, fugiu do seu acampamento e está apaixonado. Mas em todos os momentos, anda, fala como se tivesse toda a certeza do mundo. Calmo, de olhos elevados por trás dos óculos grandes, boca cheia, parece tornar tudo obviamente fácil e natural. Já a certeza de Susy é vagamente diferente, mais rebelde e dorida. Nessa milimétrica direção de atores, da insanidade à depressão, do amor à ingenuidade, parece não haver espaço algum para o overacting. Este sobra sempre para o lado do excesso também ele trabalhado. Win-Win situation. Um exemplo, os gestos de um dos escuteiros na derradeira reunião na casa da árvore antes de tentarem salvar Simon. É no trabalho com os atores que percebemos que a manufactura implacável de Wes Anderson, não sendo aí travada (pois cada trejeito é apesar de tudo manipulável), sofre um certo abrandamento. É que o analógico dos atores é, por estes dias, uma “ave rara” que merece ser preservada.


 
6- Crescer ou não crescer? Wes Anderson pertence a uma jovem geração de cineastas que pela primeira vez pode chegar ao patamar da idade adulta e olhar para trás com a sensação de que o passado não tinha acabado. De que muito do que fizera e vivera na adolescência sofria apenas pequenos desvios ou cedências. O seu universo compunha-se de uma infantilização adulta (a maturidade como conceito em risco) sobretudo tendo como objectivo um outro olhar geracional que minasse as concepções tradicionais dos laços familiares e de amizade. Chegados a The Darjeeling Limited, o seu quinto filme, nascia uma sensação de amargura, como se se tratasse de um olhar que já tinha exposto toda a sua razão e já não tivesse para onde ir. No entanto, em Moonrise Kingdom essa visão abre-se e confunde-se. Por um lado, prolongam-se os “adultos crianças” - cuja excentricidade não permite apagar, antes acentuar, a sua dimensão dramática (percebemos bem a tristeza de Edward Norton ou Bruce Willis e o desgaste do casal Bishop). Por outro lado, nenhuma criança, seja os jovens amantes, sejam os restantes escuteiros, é mais criança do que qualquer outra personagem. Como se essa relação criança/adulto, crescer/não crescer deixasse de fazer sentido e desse lugar a uma circulação  e miscenização desses olhares como estratégia de enriquecimento. Obviamente que a inversão, o de ter os escuteiros como soldados adultos, é uma estratégia cómica e subversiva. Contudo, o filme de Wes Anderson quer posicionar-se num ponto onde já não há apenas ironia no olhar sobre o primeiro amor adolescente, e onde tudo não pode deixar de ser assim. Essa dupla dimensão é que é nova: trata-se de uma comédia irónica que afirma o lado vivencial como única forma possível de levar as coisas.




7- O tempo do amor. Sequência extraordinária essa que vai desde a dança à beira do rio dos jovens em fuga ao som de “Le temps de l’amour” de Hardy, ao primeiro beijo, passando pela perda simbólica da inocência com a oferta dos brincos. Se há um centro para o filme ele está aí e não é só porque tenta mostrar de forma sugestiva esse tempo do primeiro amor, da inocência misturada com a certeza do que sentimos, onde tudo o que é visto de fora parece ridículo e quando vivido por dentro não é. Se até agora o cinema de Wes Anderson tinha a táctica de filmar esse caricato pelo visto de fora (à distância do tempo, ou a outras distâncias) aqui ele baixa a guarda: “quand le temps va et vient, on ne pense à rien”. Se não se pensa, este é o momento em que só há compaixão, e o olhar miudinho da ironia (que ficou para trás e se seguirá à frente), só servirá para aprofundar este sentimento.



1 comentário:

  1. Ainda não o vi mas pelo que escreves, Anderson estará a demonstrar, cada vez mais, como é adepto confesso do rigor narrativo e visual de Kubrick.

    Só por isso, a minha expectativa cresce em relação a este MOONRISE KINGDOM.

    Cumps cinéfilos.

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