É
preguiçoso escrever sobre um filme que não apreciamos usando apenas adjetivos
como “mau”, “fraco”, “péssimo”, etc. Se assim é, quando se trata de filmes de
que gostámos muito, essa adjetivação indolente, a manchar a prosa, roça a
ofensa. Parece paradoxal chegar a um estado em que a palavra “fabuloso”, para
falar do último filme de Wes Anderson por exemplo, se torna estranhamente
insultuosa. Não quero explicar-me muito sobre isso que o meu caminho é outro e
é long and winding, mas só umas
breves palavras. O adjetivo costuma abrir um espaço de indeterminação
precisamente porque o seu objectivo é... determinar. E isto porque, ao utilizar-se
um número reduzido de adjetivos, as qualificações das coisas empobrecem e
tendem para a uniformização. Por isso, em cada adjetivação, assim sem mais,
parece que algo fica por dizer. E ainda mais importante do que isso: a pessoa
por detrás do texto (isto no caso da crítica é muito relevante) faz puf e desaparece.
Desta forma parece-me que a coisa mais singela
a fazer com um filme como Moonrise
Kingdom é um inventário de coisas que merecem ser ditas/refletidas/enumeradas.
Correndo o risco do “enjoo” do leitor, trata-se no fundo da homenagem menos
proibitiva que se pode fazer àquilo ou àqueles de quem gostamos.
1- Um, dois, três, ao lado, atrás e à
frente. Há cineastas que trabalham a hesitação, a incerteza, a suavidade,
como marcas disso que chamamos, (chamamos?) o humano. Expresso com clareza nos
movimentos de câmara isto pode ser um compromisso qualquer. De repente
lembro-me da estratégia deontológica (Rouch), ou da imperceptilidade contra a dureza de um
universo (há muitos, mas Ford e Anthony Mann parecem-me bons exemplos) ou ainda
a expressão clara de uma sensibilidade autoral (Ophuls é óbvio mas também são
tantos...). Ao invés, o que os movimentos de câmara de Wes Anderson nos
mostram, assertivos, a segmentar os espaços, nessas linhas implacáveis
horizontais, verticais, atrás ou à frente, é uma espécie de autismo criativo
(se é que isto já não é uma redundância). É a primeira das expulsões de Moonrise Kingdom. Não há espaço de
incerteza, há um olhar que tudo varre, de uma intencionalidade minuciosa. A
casa dos Bishop, os acampamentos de escuteiros, sobretudo estes, são “modelos”
(neste sentido, de modelagem) onde Anderson quer traçar pontos de vista seguros
da sua visão. E nesse aspecto, a escrita de Anderson não podia ser mais
equilibrada entre o facto (aquilo que aparece no plano) e o adjetivo (a forma
como aparece no plano).
2- A casa farol da família Bishop. Não
são propriamente novas estas construções de tom vagamente bizarro, cores
brilhantes, aparentadas de lego adulto. O filme abre precisamente com uma
exposição de 360º de alguns dos seus quartos e membros da família, passado essa
circularidade depois a uma lateralidade que nos faz lembrar a forma como Tati
filmava as janelas abertas dos edifícios citadinos em Play Time. Sendo ou não estratégia, o certo é que apesar de existirem
muitos recantos, de aspecto fabular (as portas de ombreiras redondas, o soalho
de um castanho brilhante; parece que lá vivem duendes) eles são sempre filmados
isoladamente. Não há comunicação entre eles na forma com Anderson trabalha as
cenas, isto apesar de serem muitos os membros da família (especialmente os
rapazes). De grande importância é a fachada da casa, uma torre vermelha no meio
do verde da ilha da Nova Inglaterra. Se de fora para dentro há uma relação
militarizada, com essa torre a simbolizar um quartel (local depois mimado
também no acampamento escuteiro de Harvey Keitel), de dentro para fora, o olhar
binocular de Suzy dá à casa uma dimensão de farol que observa e planeia.
3- What kind of bird are you? A
pergunta que Sam faz a Susy, e que tem o condão de servir quase como um “queres
namorar comigo”, é feita num plano absolutamente central. Dedo apontado a ela
(a nós). De entre os possíveis pássaros (as outras raparigas), Sam tem de repetir
a pergunta, como que a mostrar-nos, “não não és tu, nem tu, é ela que eu
quero”. Essa simetria quer no plano, quer na vontade, acho que é uma boa pista
para entrar nos seus valores de composição e mise-en-scène. Não existe nenhum momento que falte a esse desejo de
simetria, harmonia, centralidade. Tudo é agradável ao olhar, sendo esse
absoluto imperativo da linha, da cor, do movimento, aquilo que serve para
construir uma reflexão sobre a autoridade (dos pais sobre os filhos, dos
adultos sobre as crianças, das organizações sobre o indivíduo). Por outras palavras
e simplificando muito é preciso acentuar o “direito” para ver a falta do
“torto”. Além dessa certeza formal (às vezes parece a minúcia de Kubrick a
funcionar numa lógica de arquitetura limpa), há uma visão do plano ela própria
arquitetural. Excepto quando faz parte do gag
do plano - revelar algo que está fora de campo - dir-se-ia que este não
existe. Quer dizer, tudo é feito para pertencer ao plano, em todas os seus
inúmeros espaços de leitura. Lembramo-nos do plano, perto do final, em que à
direita Sam e Susy conferenciam sobre se devem mesmo casar e à esquerda um
rapaz salta no trampolim. Esta organização que privilegia sempre a inclusão
parece ter um lado “sacrificial”, isto porque o digital permitiria uma
abundância muito menos esforçada.
4- Casinhas, árvores e tendas às cores. As
cores fortes de Wes Anderson sempre carregaram com essa ironia toda. Talvez a
intencionalidade da coisa se tivesse esbatido um pouco com Fantastic
Mr. Fox, naturalmente por se tratar de uma animação. Aqui, a cor surge na
interseção dessa ironia (a cor como entrada numa dimensão de comédia e
estranheza pop) e uma dimensão bastante clássica de composição. Como Minelli ou
tantos outros a cor é sobretudo expressiva e adiciona esquemas de leitura nos
seus planos, ajudando a produzir rimas visuais. E como brinca Anderson com os
beges, os amarelos e os verdes na relação dos escuteiros e sua “parafernália”
com a natureza. Nunca se trata contudo da cor como forma de “explodir” a
visualidade das suas imagens. O garrido destas é sobretudo forma de compor uma
espécie de reino, kingdom, uma lógica
própria que o seu olhar impõe à realidade.
5- Com a boca cheia de palavras. Simon
é órfão, fugiu do seu acampamento e está apaixonado. Mas em todos os momentos,
anda, fala como se tivesse toda a certeza do mundo. Calmo, de olhos elevados
por trás dos óculos grandes, boca cheia, parece tornar tudo obviamente fácil e
natural. Já a certeza de Susy é vagamente diferente, mais rebelde e dorida. Nessa
milimétrica direção de atores, da insanidade à depressão, do amor à
ingenuidade, parece não haver espaço algum para o overacting. Este sobra sempre para o lado do excesso também ele
trabalhado. Win-Win situation. Um exemplo, os gestos de um dos
escuteiros na derradeira reunião na casa da árvore antes de tentarem salvar
Simon. É no trabalho com os atores que percebemos que a manufactura implacável
de Wes Anderson, não sendo aí travada (pois cada trejeito é apesar de tudo
manipulável), sofre um certo abrandamento. É que o analógico dos atores é, por
estes dias, uma “ave rara” que merece ser preservada.
6- Crescer ou não crescer? Wes Anderson
pertence a uma jovem geração de cineastas que pela primeira vez pode chegar ao
patamar da idade adulta e olhar para trás com a sensação de que o passado não
tinha acabado. De que muito do que
fizera e vivera na adolescência sofria apenas pequenos desvios ou cedências. O
seu universo compunha-se de uma infantilização adulta (a maturidade como
conceito em risco) sobretudo tendo como objectivo um outro olhar geracional que
minasse as concepções tradicionais dos laços familiares e de amizade. Chegados
a The Darjeeling Limited, o seu quinto filme, nascia uma sensação de amargura, como se se tratasse de um olhar
que já tinha exposto toda a sua razão e já não tivesse para onde ir. No
entanto, em Moonrise Kingdom essa
visão abre-se e confunde-se. Por um lado, prolongam-se os “adultos crianças” -
cuja excentricidade não permite apagar, antes acentuar, a sua dimensão
dramática (percebemos bem a tristeza de Edward Norton ou Bruce Willis e o
desgaste do casal Bishop). Por outro lado, nenhuma criança, seja os jovens
amantes, sejam os restantes escuteiros, é mais criança do que qualquer outra
personagem. Como se essa relação criança/adulto, crescer/não crescer deixasse
de fazer sentido e desse lugar a uma circulação
e miscenização desses olhares como estratégia de enriquecimento.
Obviamente que a inversão, o de ter os escuteiros como soldados adultos, é uma
estratégia cómica e subversiva. Contudo, o filme de Wes Anderson quer posicionar-se
num ponto onde já não há apenas ironia no olhar sobre o primeiro amor adolescente, e onde tudo não pode deixar de ser assim. Essa dupla dimensão é que é nova: trata-se
de uma comédia irónica que afirma o lado vivencial como única forma possível de
levar as coisas.
7- O tempo do amor. Sequência
extraordinária essa que vai desde a dança à beira do rio dos jovens em fuga ao
som de “Le temps de l’amour” de
Hardy, ao primeiro beijo, passando pela perda simbólica da inocência com a
oferta dos brincos. Se há um centro
para o filme ele está aí e não é só porque tenta mostrar de forma sugestiva
esse tempo do primeiro amor, da inocência misturada com a certeza do que
sentimos, onde tudo o que é visto de fora parece ridículo e quando vivido por
dentro não é. Se até agora o cinema de Wes Anderson tinha a táctica de filmar
esse caricato pelo visto de fora (à distância do tempo, ou a outras distâncias)
aqui ele baixa a guarda: “quand
le temps va et vient, on ne pense à rien”. Se não se pensa, este é o
momento em que só há compaixão, e o olhar miudinho da ironia (que ficou para
trás e se seguirá à frente), só servirá para aprofundar este sentimento.
Ainda não o vi mas pelo que escreves, Anderson estará a demonstrar, cada vez mais, como é adepto confesso do rigor narrativo e visual de Kubrick.
ResponderEliminarSó por isso, a minha expectativa cresce em relação a este MOONRISE KINGDOM.
Cumps cinéfilos.