segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Fazes-me falta: das asmas de Mozos aos bailes de Olmi

Queria contar-vos uma cena de …Quando Troveja (1999) que não me sai da cabeça. Creio, sem ter a certeza, ter sido filmada ali na Guerra Junqueiro, em Lisboa. Mas antes contextualizo: António foi abandonado pela namorada que o trocou pelo melhor amigo. Desde então, desgostoso, traído e infeliz, vive uma vida dos infernos. Copos e noitadas, trabalhos mal pagos para se sustentar, cigarros uns atrás dos outros, um fiozinho de esperança e a casa partilhada com Rosa, uma infeliz asmática que vive numa casa atravancada de cacarecos, aquários e penumbras. Nesta cena os dois, ele bêbado, ela doente, vão passear e param em frente de uma montra de roupas. O diálogo que se segue, transcrevo, porque qualquer descrição apressada seria crime de lesa-cinema:

Ele: “fazemos um casal de sonho: tu que nem um espantalho e eu a cair de podre”. (Vide still.) / Ela: “anda vamos embora!” (puxa-o pelo braço). / Ele, segurando-a ali em frente da montra: “Sabes uma coisa? Vou comprar-te um vestido”. / Ela, irónica: “boa ideia! Um vestido novo para o caixão”. / Ele, põe-lhe a mão no rosto: “Rosa, Rosa, ainda não é desta que vamos ao teu funeral. Vais ficar bonita, vais ver”. / Ela: “estou cansada, António”. / Ele insiste: “não estás nada! Precisas de um vestido de Verão. Não tens vestido de Verão! Dantes, you were always so charming!” / Ela, triste e tentando puxá-lo novamente para irem embora: “dantes eu era muita coisa. E tu tinhas juízo”. / Ele: “Nunca tive juízo no Verão, está demasiado calor”. / Ele dá-lhe uma volta e entra com ela numa loja, para logo voltarem a sair, a rir-se. Enganaram-se na loja. Não eram ali, os vestidos de Verão. / Cá fora de novo, a câmara mais perto deles. / Ela: “Anda vamos embora!” / Ele, bastante alto: “Rosa, Rosa! OS HOMENS, ROSA! Tu precisas de um vestido, ok?”. (O par voltará a entrar noutra loja mas o vestido não haveria de ser comprado. Um ataque de asma e têm mesmo de ir para casa.)

Este cena bela, brutal e directa de dois heróis amparados na “miséria sentimental” mostra bem que, no que diz respeito ao cinema, Manuel Mozos é o nosso poeta da desolação e da melancolia.


Aquela que por caminhos ínvios acaba por ser a primeira longa de Mozos a estrear em Portugal é uma obra sobre a ausência e a reconstrução, lenta, que se faz a partir da ruína que o amor pode deixar. Miguel Guilherme desenha na perfeição um desses heróis à Mozos, aqueles que parecem ser os “derrotados”, pára-raios das pazadas da vida. Contudo, ser poeta da desolação significa filmar contra a pena, a piedade, e aqui reside o grande twist artístico da sua obra. Mostrar plantas que, estando à beira de secar, sofrem o milagre e, como que inexplicavelmente, reflorescem. Seria um raccord surreal ligar esse viço à cena em que a diabinha onírica abraça António, numa chuva de alagar este mundo e o outro?

Uma das pistas do ressorgimento, da ressurreição de António, talvez esteja na forma como Mozos sempre sacode o tom trágico do seu protagonista – que se ouve que não “está nada bem”, que “dá pena”, que “só faz merda” – através de outros mundos. Um deles já referi: pertence à noite, à boémia, reconhecemos locais de diversão nocturna numa Lisboa por si documentada, mas também são os seus espaços de lar improvisado, um “tecto que apesar de tudo não cai”, o espaço ao qual voltar depois de se levar umas pêras – a tal casa de Rosa. O outro mundo é o do casal de duendes/diabos, amores impossíveis, espaço do onirismo, coro de fábula. E qual é a chave desse mundo? Um caroço e um calendário. António e Rosa comem cerejas e a dada altura ele atira um dos caroços ao calendário que tem uma imagem que devém plano: uma floresta de noite e névoa. Aqui está o casal mágico – Violeta e Gaspar (Anabela Brígida e Bruno Bravo) que seguiremos, paralelamente à vida de António. Vemos como se conhecem, em miúdos (uma presença curiosa do jovem João Salaviza, no papel de Gaspar) e como esse “amor” é maldito, dificultado pela mãe de Violeta. Uma das pistas deste mundo é essa superação da maldição – ao contrário do que acontece na realidade – que faz com que o amor destes triunfe. Este aliviar da tensão da desgraça, essa poesia que se filma a partir do trágico é portanto feita através de um vai e vem a esses espaços dos interiores. Espaços mentais, do poder da fantasia e da arte, espaços de fuga. Talvez só este ir e vir explique como é que Mozos consegue fazer um cinema que parte da encenação de situações de dor e piedade, e que chega ao seu contrário, a uma exaltação pela melancolia criativa, pela doçura cantada à beira do precipício. Pois uma coisa sabemos: no cinema de Mozos não se cai e, sobretudo, não se deixa cair.

E como é que esta ideia – de mergulhar a ferida no lago da reparação – tem alcance cinematográfico? No tal caroço de cereja. Este é apenas um dos raccords selvagens que mostram a montagem de um rebelde. Também me lembro de outra: a água podre do lavatório e o peixe do lago, que sabe a lodo. São detalhes de uma montagem rough, mata-cavalos, que não tem medo da elisão, dos espaços da obscuridade e da degradação. Venham elas de uma prótese de perna, uma asmática que se mija, umas mãos de bêbado que tremem, um trejeito na boca de Miguel Guilherme que não sabemos explicar se do whisky ou da dor. Straight to the point. Anti-herói: filhos como cancros, nuvens, névoas, xilofones, pesadelos realistas, insónias produtivas, moitas que roncam, lobos, trovões, sinos e preservativos. E quando alguém cai, podia ser o nosso herói. Ele próprio o diz. Mas não, como já disse, no cinema de Mozos não se cai. Levita-se. Por milagre? É o poder gravitacional da melancolia, da delicadeza. Quando tudo desce, a câmara sobe e “um passo, outro passo e depois…”



E se falava desse ir e vir, há também um ir e voltar. Uma espécie de dança. E entro assim, num outro filme que discorre sobre a falta que pode fazer o amor, a separação. Falo da obra prima de Ermanno Olimi, I fidanzati (Os Noivos, 1963). O filme costuma ser emparelhado numa trilogia acerca da realidade laboral italiana do pós-guerra, e em que este seria o último tomo. Os outros dois, Il tempo si è fermato (1959) e Il posto (O emprego, 1961). Aliás a comparação com este último é bem interessante pois o seu herói, o jovem Domenico (Sandro Panseri) acaba por funcionar como uma versão mais nova de Giovanni (o também não actor profissional, Carlo Cabrini). No filme de 61 o rapaz vem para Milão trabalhar numa empresa e acaba por encontrar uma hipótese de amor, já em I fidanzati o movimento é inverso: Giovanni , já na casa dos 40 tem de se afastar da noiva e vir trabalhar para uma fábrica no sul, na Sicília. Como refere o próprio Olmi numa entrevista, o que estava em causa em ambos o filmes era a perturbação da divisão de uma certa paisagem rural e artesanal da Itália, com o boom económico do pós-guerra e a sua industrialização. A transformação que havia sido filmada em Il posto aqui tem uma continuação, nomeadamente nos efeitos colaterais dessas perturbações nas comunidades, na forma como os casais/famílias se podem separar em virtude do trabalho que passa a implicar deslocação. Aliás, um filme chave dos anos 60 italianos aborda precisamente esses efeitos de deslocação, de uma certa “orfandade” civilizacional, fruto de transplantes desta natureza. Falo de Rocco e i suoi fratelli (Rocco e os Seus Irmãos, 1960) de Luchino Visconti.

Quanto às influências de Olmi, elas não podiam ser mais claras. Quem passar os olhos pela sua filmografia percebe como o apelo de um olhar documental pesou na sua carreira. Naturalmente que Rossellini e Pasolini são os nomes que melhor configuram o cinema nessa relação com a realidade, não como uma forma de fugir a esta, mas de a compreender. Como em Roma città aperta (Roma, Cidade Aberta, 1945) ou Paisà (Libertação, 1946)], por exemplo, se descobre o cinema que há nas ruas. A viagem de Giovanni para o Sul – pelas suas festas tradicionais onde todos olham e dançam perante a câmara, pelos quartos atravancados, pelas tempestades de ferro e pinturas industriais dessa nova realidade metalizada das fábricas – é no fundo uma espécie de revelador emocional de uma relação que ficou em pausa. Por isso, me parece fazer sentido emparelhar o filme de Olmi ao de Mozos, sobretudo na forma como ambos estão a filmar um herói a quem lhe falta algo (ou alguém). Mas enquanto a estratégia de Mozos é, como escrevi, mais interior, de uma falso afogamento em si mesmo e nos seus potenciais oníricos, a do italiano permanece uma resposta exteriorizada. Uma balada de observação (de resto, já era o olhar incrédulo e humilde de Domenico que preparava o de Giovanni) que é também uma forma de procurar em si o espaço que deve ocupar. O dele na nova realidade e da noiva Liliana (Anna Canzi) nele próprio.

Outro elemento comum nestas duas obras de “resposta” à ausência é a dimensão transportadora da montagem. A de Mozos, já o disse, opera esse ir e vir entre mundos. Em I fidanzati estamos num certo território modernista de estilhaçamento do tempo, de trabalho sobre a memória. Em muitos momentos, a montagem agrafa tempo e espaços que não existem na realidade exterior, mas apenas numa visão subjectiva, num rememorar. Três exemplos de entre muitos. O primeiro é um raccord impossível entre um homem que cai na referida festa siciliana e o pai de Domenico que vemos levantar-se da cama no seu lar. O segundo pertence à maravilhosa sequência de abertura, a do baile, no qual os olhares tristes do casal de noivos e os momentos de dança vão fazendo aparecer, lentamente, os motivos de tal tristeza. A montagem entrecorta, sempre com a mesma música de baile, o serão aos momentos do passado em que Domenico é chamado pelos patrões com a proposta de ir para longe trabalhar e a conversa que este tem com Liliana. O último surge já quase no final, quando o casal de noivos trocam cartas e Olmi os vai aproximando, como se caminhassem na direcção um do outro, embora estejam a muitos quilómetros de distância. Montagem com poder de atracção magnética, como é o poder de evocação da literatura epistolar.

Evocação é uma palavra importante para definir I fidanzati. Sendo um filme sobre a memória, as imagens juntam-se para Olmi para dar uma certa visibilidade à lembrança, alternando momentos do presente e do passado. Podemos dizer, creio, que aqui a música acaba por funcionar como o grande combustível da lembrança. Em muitas cenas ela faz aparecer, isto é, evoca, uma lembrança ou assedia mesmo para uma acção. A maravilhosa abertura do baile, não por acaso é toda ela começada em silêncio. Ouvem-se passos, os homens e as mulheres posicionam-se, a câmara idem, os pós lançam-se à pista de dança. Depois chega o feiticeiro do ritual: o pianista cego que prepara o piano, que se prepara para dar corpo à música. Ou seja, o espectador espera pacientemente pela música, e é quando surge que ela vai fazer aparecer toda uma narrativa: do casal, dos grupos que dançam, da já referida proposta laboral. Numa cena adiante, Domenico começa por ouvir uma música no seu quarto de hotel e depois resolve sair para ir beber um café em frente. Só aí percebemos que a música vem de um radiozinho de pilhas no próprio estabelecimento. Contudo, Olmi ao dar-nos a música num outro espaço, muito antes, ultrapassa a convenção realista, mostrando o poder assediador, enfeitiçante da música. Música que faz aparecer na memória, música que faz fazer. Talvez esse fosse o poder originário da música e da dança dos salões de baile da altura, únicos momentos em que os casais se podiam tocar.

Olmi era um artesão do cinema e como tal I fidanzati não deixa de parecer como uma espécie de dança artesanal que se vai prolongando. Uma dança na qual o par de fidanzati se afasta, perdendo fiducia, para no final reganhar a tal confiança, em nova dança. Como alguns viram era esse regresso meio bressoniano: O Jeanne, pour aller jusqu’à toi, quel drôle de chemin il m’a fallu prendre! Como podemos de certa forma falar de drôle de chemin para António que depois de dançar com a perdição e o álcool acaba abraçado ao anjo de sombrinha vermelha e uma nova relação. Nesse caminho drôle, Mozos ri-se na cara da perdição e Olmi mostra-nos o cão que entra na igreja fazendo distrair os meninos, as partidas dos colegas de trabalho, o pai bêbado a olhar para a câmara ou mesmo a vizinha com os calores. Uma dança de alegria e melancolia, como um poderoso licor que fôssemos bebendo e saíssemos embriagados e ressacados de vida, embriagados e ressacados de risos e lágrimas. Mas sempre dançando. Sempre.



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